Nem só de hoje vive o imediatamente agora. Livros lançados há meses, nem por isso menos interessantes: Laranja Mecânica, Oblómov, a bio de Neil Young e A Máquina de Goldberg

O livro que virou suco
Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (trad. Fábio Fernandes). Aleph, 350 págs.
“Nenhum criador de enredos ou personagens, por maior que seja, deve ser considerado um pensador sério, nem Shakespeare. É difícil saber o que o escritor criativo realmente pensa, pois se esconde atrás de suas cenas e de seus personagens. E quando os personagens começam a pensar e a expressar seus pensamentos, não se trata, necessariamente, dos pensamentos do escritor.” A tese parece cândida, até mesmo óbvia; espera-se que um leitor médio tenha esta premissa em perspectiva em relação a qualquer obra de arte. Esta verdade relativa, porém, nem sempre foi observada em relação à distância guardada entre o escritor britânico Anthony Burgess e sua criação mais famosa, Alex The Large, o protagonista de Laranja Mecânica. Afinal, uma das muitas originalidades do livro é o fato a narração onisciente na primeira pessoa — ponto de vista através do qual o leitor tem acesso à realidade descrita e, simultaneamente, à sua crítica. Mesmo que Alex tente manter uma certa distância dos absurdos que ele mesmo narra — e introduz sutis notas irônicas –, o mundo que nos é dado vem pelas lentes distorcidas de Alex, e não pelo olhar do autor, Burgess. É uma confusão infelizmente comum: aqui no Brasil, houve críticos, por exemplo, que indicaram um autor do porte de Rubem Fonseca como “fascista” ao ler contos ultraviolentos como “Passeio noturno” ou “Cobrador”.
A aspa que abre este texto é do próprio Burgess, em ensaio de 1973 escrito após o sucesso avassalador da adaptação de 20 dos 21 capítulos originais de seu romance ao cinema, por Stanley Kubrick. O cineasta norte-americano usou a edição publicada nos EUA para escrever o roteiro do filme — com isso, elidindo da narrativa o capítulo final, em que Alex, então um pequeno-burguês certinho e enquadrado, parece sinceramente arrependido e até mesmo enojado de toda a ultraviolência cometida por ele nos capítulos anteriores, com direito a um estupro grupal (que, conforme revela o próprio Burgess, foi inspirado em um assalto sofrido por sua primeira mulher). O epílogo, que não aparece no filme, foi carola e criminosamente cortado da versão norte-americana pelo fato de editor achar que não pegaria bem um final feliz, com o protagonista readaptado à sociedade; Alex deveria terminar como um criminoso castigado e “curado” pelo Estado, conforme o capítulo 20 conta, através de lavagens cerebrais.
Em sua “defesa”, neste ensaio de 1973, Burgess reafirma que, ao contrário do que escreveram vários críticos, ele não defendia o modo de pensar e agir de Alex: seu ponto de partida foi uma discussão em torno do livre-arbítrio, questionamento que nem o filme nem a edição norte-americana do romance permitem concluir. O buraco, para Burgess, estava bem mais abaixo do que as atrocidades cometidas por Alex: “É melhor ser mau a partir do próprio livre-arbítrio do que ser bom por meio da lavagem cerebral científica. (…) Liberdade de escolha é mesmo tão importante? O homem é capaz disso? O termo ‘liberdade’ tem algum significado intrinseco?“. De acordo com Burgess, essas são as verdadeiras questões que animam seu livro. Porém, e apesar da maravilhosa lucidez demonstrada pelo autor em relação à sua obra — fato raro entre ficcionistas —, Laranja Mecânica superou suas expectativas e tornou-se um dos romances icônicos do século 20 por razões que ultrapassam a mera discussão metafísica.
E esta edição do livro parece ser perfeita a quem queira mergulhar na multiplicidade de sugestões filosóficas e inquietações estéticas trazidas pelo livro desde 1961, quando Burgess o finalizou, em apenas alguns meses, temendo por sua morte (havia tido um falso diagnóstico de tumor no cérebro). Além da ótima tradução, a cargo do escritor Fábio Fernandes, que explica em detalhes a origem de cada termo do nadsat, a linguagem teen criada por Burgess a partir da mixagem entre russo e inglês, com derivações sobre o cockney e o elizabetano, a edição traz ainda artigos e ensaios de Burgess sobre sua obra, uma entrevista com o autor, reproduções do manuscrito original, ilustrações de Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo — tudo isso embalado em um belo projeto gráfico de Pedro Inoue, com direito a capa dura. O tipo de objeto artístico de alta classe que um arruaceiro vagabundo como Alex The Large adoraria destruir, ao som de Ludwig Van.
Zzzzzzzzzzz
Oblómov, de Ivan Gontcharóv (trad. Rubens Figueiredo). Cosac Naify, 736 págs.
Cuidado: este livro é perigosíssimo. Uma verdadeira afronta à sociedade. Sua leitura poderá envenená-lo com uma diabólica malemolência… uma doce modorra… um soninho gostoso… uma preguiça mais que macunaímica, siberiana: o resenhista mesmo avança neste comentário a golpes de bocejo. Mas, creia: não se trata de um livro chato! Pelo contrário. O prodígio perpretrado por Ivan Gontcharóv é fazer seu personagem principal passar quase setecentas páginas do romance praticamente entrevado em seu quarto, naufragado em sua própria cama, chafurdando entre migalhas do jantar de ontem em lençóis de anteontem e jornais do mês passado. Só por isso já o lança no terreno dos grandes personagens da literatura universal – um ser tão único quanto Quixote, Hamlet, Fausto e Don Juan. Antiépico como o protagonista de Viagem Ao Redor de Meu Quarto, de Xavier de Maistre (que Gontcharóv traduziu), Oblómov inspirou outro grande personagem: o escrivão Bartleby, de Herman Melville (aquele do refrão “prefiro não fazê-lo“), que por sua vez influenciou toda uma linhagem de ficções suspensas na inação, no perpétuo temor do vir-a-ser – dos catatônicos de Beckett aos paralisados de Vila-Matas, legista da “arte da recusa” no divertido Bartleby e companhia.
Talvez a preguiça que sustente o catatau tenha dominado por décadas nossos editores, pois somente em 2012 lemos em português essa maravilha publicada em 1859. Claro que o sedentário Gontcharóv (1812-1891) sofreu de outra síndrome, a de eclipse: sua diminuta obra, composta por apenas três romances, foi escondida pela repercussão de pares como Tolstói, Gógol, Dostoiévski – embora na Rússia seu romance tenha feito tanto sucesso que suscitou a origem do vocábulo “oblomovismo“, referência à inércia causada pelo processo de vampirização que a aristocracia projetava sobre seus servos. E Gontcharóv também foi um personagem, como Oblómov, pouco afeito ao convívio social, um alto funcionário do Império que nunca se casou, embora tenha sido renomado como escritor e conselheiro de Estado: sua maior aventura foi estreitar laços entre os impérios russo e japonês em uma longa viagem que contou nas crônicas e cartas reunidas sob o título Fragat Pallada, nome do navio que o levou ao Japão (como informa o crítico literário italiano Renato Poggioli no delicioso posfácio).
Sua perspectiva na vida, como a de um aristocrata que se contentava em assistir aos acontecimentos do lado de fora, mais por escolha do que por azar, é o mesmo olhar mole do morbidamente obeso proprietário de terras que mofa na morrinha de sua cama, tendo o criado Zakhar, com quem tem uma relação estranhamente sadomasoquista, como mais frequente companhia. Oblómov passa páginas e mais páginas apenas se decidindo se calça os chinelos, para, afinal, desabar sobre uma poltrona, e, dali, dezenas de páginas depois, voltar à cama… A ação concentra-se na sua tentativa de agir, nas engraçadíssimas tretas com o criado e nas visitas dos amigos. No início do romance, o cenário jamais muda: Oblómov, sempre vestido num nojento roupão persa, está cercado de amigos interesseiros (que desconhecem o fato de que o ex-jovem herdeiro está prestes a ser despejado de seu apartamento e próximo de falir apenas porque simplesmente não conseguiu gerir sua fortuna). Lá pela metade do livro, o gorducho protagonista é finalmente convencido a acompanhar um amigo em um passeio por São Petersburgo – até que acaba conhecendo uma mulher por quem se apaixona, e por quem tenta mesmo emagrecer. Ilusão: o breve amor pelo mundo do lado de fora é destruído pelo extremo niilismo de Gontcharóv, que faz Oblómov concluir, após uma bizarra sequência de jantares e bailes, que seu mundo não passa de um teatro – e que nada pode ser mais verdadeiro que dormir, “talvez sonhar“.

Hey hey my my
A Autobiografia, de Neil Young (trad. Renato Rezende e Helena Londres). Globo Livros
Neil Young está com 65 anos, parou de fumar maconha e beber álcool porque o médico detectou “algo estranho” em seu cérebro, passa os dias planejando um novo formato de reprodução digital de música, reunindo ex-companheiros de estúdio, como a mitológica Crazy Horse e consertando os trenzinhos que começou a colecionar quando seu filho Ben nasceu – tetraplégico, a ele é dedicado este livro. E, claro, cada uma dessas atividades faz com que o autor de “Like a hurricane” revisite continuamente o passado, suas amizades e suas experimentações ao redor do folk, do rock’n’roll e até da música eletrônica. Neil Young diz que gosta de coisas em movimento: trens, carros, aviões, barcos. E assim a escrita de sua autobiografia se move: erraticamente, para todos os lados – porém nunca destituída de um olhar direto, afetuoso, generoso e vagamente maluco. Como sua música.

Bullying universal
A Máquina de Goldberg, de Vanessa Barbara e Fido Nesti. Quadrinhos na Cia., 112 págs.
Todas as infâncias felizes são iguais; as infelizes o são cada uma à sua maneira – mas parece que todas sofreram com bullying. E este é o mote do roteiro da jornalista e tradutora Vanessa Barbara para este romance gráfico desenhado pelo animador, ilustrador e quadrinista Fido Nesti: as agruras do jovem Getúlio, um adolescente gordinho, punk e asmático que, enviado a um acampamento de férias, é zoado pelos colegas e maltratado pelo instrutor de esportes. Uma situação universal (que certamente será a chave do sucesso deste livro) distorcida psicodelicamente quando Getúlio conhece o bizarro zelador Leopoldo, criador de engenhocas geniais que levam o binômio causa-e-efeito ao limite do impensável. Trata-se, assim, de uma história de perversões, em que nada é o que aparenta: um passo mal planejado pode dar em tombo ou risada; e o que seria uma história infantojuvenil resolve-se numa tragicomédia com toques de horror – um chiaroscuro acentuado pelo contraste entre a ironia de Barbara e o traço exato de Nesti.
Nenhum pensamento