A culpa é do revisor

Rodolfo Walsh era bocudo. Foi metralhado
Rodolfo Walsh era bocudo. Foi metralhado

Com Variações em Vermelho, o argentino Rodolfo Walsh cria um investigador criminal que sempre leva a culpa quando acontece algum erro de redação: o revisor. Em homenagem a este erro crasso que é o fim da revista Bravo!, uma resenha encomendada que ficou engavetada

Para atiçar a fúria dos argentinófobos, chega ao país a terceira tradução de mais um (mais um!) grande escritor vizinho: Rodolfo Walsh. Em Operação Massacre (Companhia das Letras), descobrimos a existência de um Gay Talese pré-jornalismo literário – no livro, Walsh se atirava em uma grande investigação que revela uma chacina perpetrada pela ditadura do general Aramburu, em 1956. Um clássico do jornalismo. No conto-título de Esta mulher (Ed. 34), Walsh sussurra uma das histórias mais manjadas e também mais obscuras da Argentina: o sumiço do corpo de Eva Perón – cujo nome, sutilmente, jamais é mencionado na narrativa. Sabíamos então do Walsh excelente contista e jornalista investigativo. Mas só agora se pode conhecer a fonte de ambos os talentos: Variações em vermelho (Ed. 34, 239 págs., trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina), coletânea de contos policiais estrelados pelo humilde, tímido, discreto e brilhante revisor Daniel Hernández.

O revisor de provas é o mordomo do mundo editorial. Discreto, humilde e tímido, em geral esse personagem é aquele em que editores, repórteres e leitores mais ou menos bem-intencionados atiram pedras ao notarem num jornal, numa revista ou num livro um erro, uma gralha, uma falha grotesca. Walsh, que na época de Variações, aos 26 anos, também trabalhava como revisor, aqui promove o profissional a Sherlock Holmes. Menções a Conan Doyle já começam pelo título, referência a Um Estudo em Vermelho. No primeiro conto, a vítima é um tradutor que acaba de verter ao espanhol a obra do poeta, prosador e médico Oliver Wendell Holmes. O tradutor se chama Raimundo Morel – alusão a um famoso personagem de Adolfo Bioy-Casares, que, ao lado de Jorge Luis Borges, foram grandes influências de Walsh e também mestres no gênero criminal (e no conto “Assassinato à distância” há um personagem cujo sobrenome é Funes, homônimo da lendária figura borgiana).

Conforme o próprio Walsh nos faz saber no posfácio, seu revisor homenageia o primeiro detetive da história: o bíblico Daniel, intérprete de sonhos e de histórias mal-contadas na velha Judéia. De modo que, embora transitem pelos contos de Walsh personagens comuns – um fazendeiro angustiado, um pintor arrogante, uma dona-de-casa infeliz –, sua matéria-prima é a própria literatura. Em “A aventura das provas de prelo“, as marcas de revisão do pobre Morel são capitais para que Hernández desvende o crime. Em “Variações em vermelho“, Walsh expõe a prostituição do artista pelo mercado como cenário do assassinato. Em “Assassinato à distância“, um mero jogo de xadrez (hobby de Walsh) entrega a solução. Em “A sombra de um pássaro“, é um verso escrito por um poeta hesitante que dá a pista ao cerebral Hernández. Todos os contos são tratados com humor finíssimo, implacável com os desvios morais dos argentinos.

Implacável era também Walsh com os desmandos da política. Egresso de uma pobre família de imigrantes irlandeses que viviam na Patagônia, Walsh lavou pratos, limpou janelas, revisou livros e, graças ao inglês impecável, virou tradutor na editora Hachette. Grande divulgador da literatura policial e fantástica, editava revistas e livros até mergulhar na investigação dos crimes da ditadura pós-Perón. Em 1959, pleno ativista da esquerda, viajou a Cuba, onde decifrou para o governo uma mensagem que colocou em xeque a sobrevivência do planeta, ao deduzir o plano dos EUA de invadir a Baía dos Porcos. De volta a Buenos Aires, publicou o livro-reportagem Quién mató a Rosendo?, ao mesmo tempo em que militava no sindicalismo. Em 1976, sua filha Vicky, guerrilheira montonera, morria em confronto com o exército. No ano seguinte, Walsh escreveu uma impactante carta à filha; logo depois de enviá-la aos jornais, caiu numa emboscada e foi metralhado. Ao contrário do que aconteceu com Eva Perón – e também ao contrário dos crimes elucidados por seu personagem Daniel Hernández –, o corpo do detetive-militante-escritor Rodolfo Walsh jamais foi encontrado, e seu assassino permanece desconhecido.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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