Aquele cantinho maluco e perigoso que você sabe bem onde é

ilustra Adams Carvalho
ilustra Adams Carvalho

Um capítulo de Monólogos do Poliamor, meu próximo romance

Desconfiei que o dia seria esquisito como geleia de bacon quando vi a letra da Nanda no bilhete grudado na geladeira com o ímã do Bowie:

“Gui, baby baby, cansamos de poliamor. Eu e a Jess vamos casar. Vamos adotar um bebê nigeriano. Ou sírio. Ou boliviano. Ainda não sabemos. O que eu sei é que não dá mais pra conviver com teus passeios noturnos de bicicleta. Você nunca tá aqui quando a gente quer ver um filme. Nunca comparece aos atos contra a gentrificação do bairro. Nunca comeu nosso brownie orgânico. E a viagem pra Berlim virou mito, né? Hahaha. Sim, esse bilhete parece farsa. Mas é isso que nossa vidinha virou. Gui, você está mais em casa quando não está em casa… Cansamos. Deu ruim pra nós, baby baby. A Jess falou de um retiro em Camanducaia e decidi ir junto. Um mês em silêncio. Mandamos lambidas naquele cantinho maluco e perigoso que você sabe bem onde é. Fuémmm… fuímos <3”.

O PS era escrito com a letra gelatinosa da Jess: “Também te amo, Gui, mas vê se pára de ser bunda mole“. Esvaziava o terceiro copo dágua mirando o dia nublado pela janela quando a campainha tocou.

Um cara gordo e suarento de bigodes pretos apontando pro céu e camiseta vermelha com os dizeres SAVE THE POLAR BEAR apareceu do outro lado do olho mágico. Quando abri a porta ele ficou um tempão olhando pra minha cueca boxer. Sabe como é: morning wood. Tinha olhos e olheiras de quem tinha passado a noite chorando, ou cheirando.

— Você é o Guilherme Scarpellini?
— Acho que sim, champ. Qual é o galho?
— Me disseram que você trabalha com casos de pessoas desaparecidas, é verdade?

Espiei meu velho Casio: já eram 11 da manhã e o alarme não tinha tocado. Outro presente inútil de Nanda & Jess que logo iria pro lixo.

— Entra, champ, por favor. Me perdoa, estava em um caso até de manhã e acabei de acordar. Pode sentar, vou ali fazer um café…

Já de uniforme — botas, jeans e camiseta pretos —, encarei o gordote que limpava o suor da testa alta enquanto segurava minha fumegante caneca com estampa da Frida Kahlo. Tudo em casa me lembra o par de malucas. Tudo em minha casa lembra outra coisa que não seja eu. Segurando o tablet, perguntei:

— O que é que tá pegando, champ?
— Meu namorado desapareceu.
— Qual o nome dele? E o seu, se não se importa.
— Desculpe. Meu nome é Rodolfo Muniz. O nome dele é Amaury Villaforte. Já faz uma semana que desapareceu.
— Desapareceu de verdade, champ? Foi comprar cigarros e nunca mais voltou? Sabe como é, Rodolfo, hoje em dia as relações são tão voláteis quanto a fumacinha deste café catuaí amarelo da Fazenda Baixadão do Imbiriza —, disse eu sorrindo. O maravilhoso café que as meninas compravam já havia melhorado meu humor. Rodolfo apertou os lábios e juntou as sobrancelhas em uma taturana grossa antes de bicar a caneca. Ao engolir o café, sua feição se suavizou.

— Amaury e eu temos uma relação estável. Vivemos juntos faz quase dez anos. Ele não dá um passo sem que eu saiba.

No tablet, notei que Villaforte não dava pinta em nenhuma rede social. Poucas menções a ele na rede: fotos ao lado de artistas plásticos, curadores, jornalistas, povo da moda. Uma das imagens mostrava o casal Amaury e Rodolfo abraçado ao secretário de cultura, todo mundo sorrindo muito; noutra ambos riam na reabertura do Masp. Fofos.

— Ele apagou o perfil dele nas redes antes de sumir?
— Amaury nunca teve perfil em nenhum lugar. É muito reservado. É colecionador de arte, sabe… Detesta assédio. Muito artista dá em cima.
— Mesmo, Rodolfo? E você não é ciumento?
— Não foi isso que quis dizer, Guilherme. Assédio pra que ele compre as obras de arte. Tudo o que o Rodolfo compra se valoriza no mercado. Com cada vez menos artistas autênticos e verdadeiramente geniais, Amaury ficou conhecido por caçar artistas que fazem coisas fora do comum… Ele tem um olho de ouro.
— Hum. Deve ter uma carteira cheia de ouro também — anotei “olho de ouro” no tablet. — Preciso que você me diga a última vez que o viu, o que estava vestindo, quem foram as últimas pessoas que falaram com ele. Você foi à polícia?
— Dei queixa na 14a DP. O delegado insinuou que o Amaury podia ser vítima de michê, de travesti. Mas a gente nunca trans…, a gente tem uma relação fechada.
— Mesmo, champ? Olha, não leva a mal, mas nesse ramo eu já vi muito mocinho virar bandido. E vice-versa. Não notou nada diferente na sua relação com Amaury?

Rodolfo tomou outro gole do café, fez “ahhh” e retorceu as pontas da bigodeira para cima. Lançou um olhar sonhador ao pôster de David Bowie com a cara cortada por um relâmpago que adornava a parede atrás de mim. Outro presente de Nanda & Jess. Bem, poderia me livrar delas; não do Bowie. Rodolfo voltou seus olhos úmidos para mim.

— Humm, ele estava reticente sobre uns artistas novos que tinha descoberto… Dizia que eram uns caras bem punks. Lembro que citava uma “arte perigosa”…
— Fala mais, champ — disse, ligando o gravador do tablet e me alongando no sofá, lembrando dolorosa e vagamente da noite anterior. Ainda sentia em mim o cheiro delas.

Rodolfo pagou metade do cachê e antes de sair deu uma bela manjada na minha calça. Sei. Relacionamento fechado que nem o meu cu.

Prendi a bicicleta na grade, encarei a enorme fila que serpenteava no parque em frente ao museu e respirei com preguiça. Toda a hipsterlândia paulistana se encontrava na entrada da feira de publicações independentes. Parecia uma festa à fantasia. Algum informante do mundinho cultural certamente devia estar naquele circo. Peguei uma cerveja e fiquei zanzando entre as dezenas de bancas quando ouvi meu nome soar esganiçado às minhas costas. Do lado de uma banca em que um garoto de turbante e barba até o umbigo vendia cervejas artesanais, uma menina baixinha de cabelo azul e piercing no queixo me sorria.

— E Nanda & Jess, cadê elas, Gui? — disse Gabi, meiga, me abraçando.
— Não quero falar dessas meninas. Preciso de uma dica tua… vamos fumar ali?

Gabi se sentou em um banco sob uma árvore, acendeu um fino e me mostrou a graphic novel que vendia na feira. Na página central uma garota lambia a própria vulva.

— É sobre uma menina louca por sexo…
— Autoficção de novo, Gabi? — ri. — Olha só, você conhece o Amaury Villaforte?
— Claro! Uma vez ele comprou uma gravura minha que me bancou aquela residência na Islândia. Você tá investigando o sumiço dele?
— Hum, você já tá sabendo. Alguma ideia?
— Olha… — Gabi soprou a fumaça por cima da minha cabeça enquanto eu folheava seu livro. — Eu vi ele na Sono Eterno faz uns dez dias, acho. Ele tava com uns doidaços que fazem um trampo de body art. Um deles é um punk fedido que tem um ateliê perto do Minhocão, um tal de Ugolini.
— Fedido?
— É, as bee diz que ele nunca toma banho, porque isso é antinatural. O Amaury deve curtir, né. Você sabe, teve uma época que ele andava com mindingo.
— Mendigo, Gabi, pô.
— Acho legal mindingo, é mais roots. Sabia que o Amaury pegava um mindingo corinthiano? Começou até a frequentar estádio. O amor não é lindo?
— Mas ele não é casado?
— Casada não tá morta, né, fofo.

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ilustra Adams Carvalho
ilustra Adams Carvalho

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O frentista do posto foi gente fina e me deixou prender a bicicleta numa coluna ao lado do lava-a-jato. Minha camiseta grudava de suor. Por que não fui de metrô? Por que minhas meninas me deixaram? Troquei a camiseta no banheiro do posto e conferi o celular. Nenhuma resposta de Nanda & Jess às minhas mensagens.

Encarei a câmera sobre a porta de ferro em que uma estrela negra havia sido grafitada e declamei meu nome. A porta se abriu com um clang seco; nenhum som à minha entrada. Um corredor de paredes pretas levava a uma nova porta de ferro que também mostrava uma estrela negra. Quando ouvi outro clang às minhas costas notei que as paredes portavam pequenos nichos iluminados, como relicários; cada um trazia uma escultura de um rosto delineada em uma forma cilíndrica entre 5 e 15 centímetros: uma face ultrarealista que emergia de um canudo cujas cores vagavem entre o amarelo claro e negro, salpicados de pequenos pontos, sempre nesta paleta castanha. Não era possível detectar o material das esculturas: madeira, bronze, ouro? Novo clang e abriu-se a porta. Conforme desconfiei, se do lado de fora o imóvel parecia minúsculo, por dentro ocultava-se um espaçoso galpão retangular, de cinco de frente por 30 metros de fundo.

— Por favor, senhor Scarpellini, sente-se — disse um homem pálido, indicando um banco sem encosto ao lado de uma longa mesa em forma de T. O sujeito era grande; sua camisa havaiana ocultava uma pança gigante; ostentava uma aranha tatuada na careca e tamborilava os dedos na mesa como se a um piano imaginário; tinha o sorriso que aquele teu namorado do Pavilhão 9 faz quando te pede pra espremer seus cravos. À sua frente havia uma larga folha de papel canson, lápis, canetas e uma série de ferramentas de corte de cerâmica. Apesar da aparente limpeza do ateliê, um cheiro de esgoto se irradiava no ar — não contive a vontade de fechar o nariz para respirar pela boca.
— Você é Arthur Ugolini?
— Não, meu nome é Rômulo — disse o careca de sorriso estático. Me cumprimentou com mão mole e suada, o que me deprimiu. — Sou assistente dele. Em que posso ajudá-lo?
— Um amigo me indicou o trabalho do Ugolini e eu fiquei interessado. Amaury Villaforte, conhece?

Rômulo não alterou um músculo da face enquanto me fixava um olhar mais gelado e quadrado que os cubos da caipirinha do bar Frank’s.

— Infelizmente não.
— Curioso, champ — disse, tomando um hausto de ar pela boca. — Porque aquela esculturinha aí é a cara escarrada do meu amigo Amaury — e apontei a campânula bem à frente do tal Rômulo. Ele não se alterou.
— Ah, sim?
— Do que são feitas essas esculturas?

Rômulo mostrou os dentes, amarelos feito diarreia de bebê fresco.

— Um material difícil de obter — disse, sempre em tom vagaroso, artificial, estudado. — Requer muitas transformações alquímicas. Você conhece os alquimistas, senhor Scarpellini? Já leu sobre o processo de transmutação? Sabe como funciona?
— Sim sim, a pedra filosofal…
— Justo. Os clientes do senhor Ugolini acreditam nesse processo.

Comecei a compreender o cheiro de esgoto que emanava do local.

— Mesmo, champ? E eles trazem… eles trazem o seu próprio material?

Rômulo emitiu uma gargalhada rouca, rápida, grave.

— Hahaha não! O material é produzido por mim! É pra isso que o senhor Ugolini me contrata — disse, batendo as duas mãos na pançola. E de novo aquele sorriso carinhoso de namorado no presídio.

Atrás de Rômulo, na parede de fundo, notei uma bancada equipada com pia, cooktop, geladeira, armário; sobre a pia, um cutelo. Dependurada sobre a torneira, um pano de prato com manchas marrons. O cutelo parecia conter marcas de sangue. Bem ao lado da geladeira, uma outra porta de ferro branca com uma estrela negra grafitada.

— E como são esses clientes, champ? Uma garlinha underground?

Escutei um som rouco, sufocado, como um gato miando dentro de uma máquina de lavar. Teria vindo do outro lado da porta? Afinal a face de Rômulo se contraiu. Ele se levantou e deu-me as costas, caminhando pesadamente.

— Os clientes do senhor Ugolini são pessoas sofisticadas — me disse, olhando-me de lado. — Artistas plásticos, atores de cinema, chefs de cozinha, empresários, advogados, políticos, esportistas, fazendeiros, cantores… colecionadores de arte…

Outro grunhido se ouviu. Sim, decerto vinha do outro lado da porta estrelada.

Aquele cantinho maluco e perigoso que você sabe bem onde é. Do que é que Nanda & Jess estavam falando?

Rômulo voltou-se para mim com o cutelo em riste.

— Mas nunca trabalhamos com detetives particulares…

Respirei fundo mal contendo a ânsia de vômito ao sentir o cheiro. O cheiro da merda que viria. Bem que desconfiei que o dia seria esquisito.

[Publicado originalmente na revista Super.]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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