Laub, Beckett, HQs, Aira

Chica leyendo

Romances, contos, quadrinhos, biografias autorizadas e não-autorizadas: o dilúvio de livros segue
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Plateia do famigerado show de Nirvana em uma boa capa
Plateia do famigerado show de Nirvana em uma boa capa

Teen spirit
A maçã envenenada, Michel Laub, Companhia das Letras, 120 págs.

Lembro até hoje a primeira vez que ouvi: o riff matador em três acordes, a súbita diminuição de volume, a voz rouca, bêbada, zombeteira e infeliz, o refrão chiclete, as variações inconstantes na dinâmica, do silêncio ao grito sem escalas, algo entre Beatles, Black Sabbath e Sex Pistols. “Smells like teen spirit” cheirava a encrenca e tive de parar o carro pra olhar espantado meus colegas de banda, igualmente boquiabertos: vocês também anotaram a placa do caminhão? Anos depois nos encontraríamos para ver a lenda Nirvana no Morumbi, mas o senso de humor corrosivo de Kurt Cobain já tinha se voltado contra ele mesmo — eu e meus amigos ainda não sabíamos, mas seria um dos shows mais deprimentes que veríamos e a pior apresentação da banda, como Cubain mesmo apontou. E é este show o cerne de A maçã envenenada, quinto romance do jornalista e editor gaúcho Michel Laub.

O romance pega em cheio a geração grunge: a identificação com seu narrador é imediata. Ele é um soldado raso prestes a chegar ao fundo do poço: sua namorada está enlouquecendo, seu melhor amigo não parece ser tão amigo assim, um colega de quartel o chantageia por conta de um mero baseado. Tudo isso a dias de ir ao famoso show do Nirvana em 1992, quinze meses antes do suicídio de Cobain. O registro falsamente autobiográfico é magnificado pelas idas e vindas na trama — dividida em 101 capítulos curtos — , em que o narrador, vinte anos mais velho, jornalista estabelecido, revê o passado como soldado perdido. A escrita sóbria de Laub é aqui assombrada por clarões de auto-ironia e ternura surpreendentes. Como uma inflexão entre a memória e a História, outro dado importante: um dia após Cobain engolir seu coquetel de heroína e chumbo tinha início o genocídio em Ruanda, em que os hutus mataram cerca de dois milhões de tutsis. Uma sobrevivente do genocídio seria entrevistada pelo jornalista, fornecendo-lhe uma visão oposta ao niilismo que ainda contaminava sua vida. Habilmente construído e de leitura viciante, o romance finaliza em cena arrebatadora — pena que seu grande responsável já não esteja vivo para ler a história.

O pop projeto gráfico da coleção Otra Língua é de Joca Reiners Terron sobre as inquietantes imagens de sua esposa, Isabel Santana Terron
O pop projeto gráfico da coleção Otra Língua é de Joca Reiners Terron sobre as inquietantes imagens de sua esposa, Isabel Santana Terron

Um menino de saias
Como me tornei freira, de César Aira (trad. Angélica Freitas), Rocco, 254 págs.
Um dos maiores mananciais de narrativas excêntricas está bem sob nosso nariz e se chama César Aira. Crítico, tradutor e dramaturgo nascido em 1949 em Buenos Aires, Aira publicou mais de sessenta títulos. E tudo em alto nível — o que, para Aira, significa um texto bem-humorado e prosaico, mas que oculta camadas de maldade insuspeitadas para o leitor que se deixe levar por seu estilo leve. No caso deste Como me tornei freira, que agrega a novela-título e a noveleta A costureira e o vento, a maldade está contida em um sorvete de morango: você nunca verá um sorvete de morango do mesmo jeito após esta narrativa. Seu centro é o menino chamado César Aira (nada a ver com o autor), que é forçado a sorver a iguaria pelo pai irascível, o que desencadeia um crime tenebroso. Outro crime de César é escancarar pecados alheios. A outra novela é o romance entre entre uma costureira e o vento — que, mais que uma brisa, é um verdadeiro monstro.

Passou da hora de a Rocco caprichar nas capas de seus livros
Passou da hora de a Rocco caprichar nas capas de seus livros

Família depressiva
Amanhã não tem ninguém, de Flávio Izhaki, Rocco, 199 págs.

O puzzle narrativo, narrativa-coral ou romance polifônico é geralmente a forma buscada por narradores excessivos: Roberto Bolaño em Os detetives selvagens, Cabrera Infante em Três tristes tigres, Jennifer Egan em A visita cruel do tempo, Osman Lins em Avalovara. A novidade neste segundo romance de Izhaki (autor do elogiado De cabeça baixa) é seu comedimento e seu tom menor, melancólico. Seis narradores diferentes — porém com vozes muito semelhantes — contam vários momentos na trajetória de uma mesma família. Através de precisos instantâneos narrativos, do patriarca, o relojoeiro judeu Natan, a seu bisneto, o gói Patrick, passando pelo tio Marquinhos, o pai Nicolas, a mãe Mônica, temos narradores silenciosos, que mal e mal conversam uns com os outros, que mal e mal interagem com a realidade a seu redor. A comunicação que se esgarça é uma metáfora do judaísmo que aos poucos vai sendo abandonado à medida em que a família se deixa penetrar pelas contradições brasileiras. Mas atenção: ao fim do livro, o quebra-cabeças se completará em uma imagem bastante triste.

A bela e seca edição tem design de Paulo Chagas, que conta o processo em http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=14892
A bela e seca edição tem design de Paulo Chagas, que conta o processo em http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=14892

Primeira esquisitice
Murphy, de Samuel Beckett (trad. e notas de Fábio de Souza Andrade), Cosac Naify, 254 págs.
James Joyce era um sintetizador, tentando trazer para dentro o máximo que podia. Eu sou um analisador, tentando deixar de fora o máximo que consigo.” Assim Beckett se definia em relação ao mentor e talvez secretário na época em que discutia com ele o Finnegans Wake e começava sua própria escrita, nos anos 30, em Paris. Lutando contra a pesada sombra do amigo, a penúria, a saúde frágil e as cobranças maternas foi que o irlandês concluiu seu primeiro romance. Embora ainda seja um texto distante do seu melhor — em que lograva atingir o texto oco proposto na comparação acima — , ainda um tanto barroco, já é o Beckett da incomunicabilidade, do fracasso, do humor negro e do flerte (ou do terror) com o vazio. “O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo“, o romance abre de forma memorável, para logo em seguida nos apresentar seu excêntrico protagonista: Murphy, um sujeito qualquer, que vive há seis meses encerrado em uma cela, por conta própria, para fugir aos encantos do mundo. Nisso divide sua vida da namorada, a prostituta Celia, e dos amigos, que não o entendem, e aos quais o ceticismo e o fatalismo sonegam qualquer afeto. Personagem totalmente, hum, beckettiano. Posfácio sagaz a cargo de Nuno Ramos.

O ótimo projeto gráfico exibe antes da narrativa uma série de imagens sombrias — já sugerindo o espírito do romance
O ótimo projeto gráfico exibe antes da narrativa uma série de imagens sombrias — já sugerindo o espírito do romance

Amoral
Coisas que o diabo contra, de Eromar Bonfim, Ateliê, 239 págs.

Um empresário milionário descobre um prazer superior aos que o poder lhe trouxe: matar. Matias Tavares de Aragão, após a morte da esposa, sente-se impelido a matar um homem — o filho bastardo de um empresário rival, que o procura para pedir sua ajuda; em troca, lhe daria a vida do próprio filho. Leopoldo Tavares de Aragão, filho de Matias, presencia o ato nefando. Estamos nos domínios de Raslkonikov ou de Merseault: o mal que pode ser cometido tanto pela suposta superioridade de seu autor quanto por seu enfado em relação à vida. A tese que perpassa a história — narrada por um secretário de Matias — é a de que só a morte pode valorizar a vida. Este segundo romance do baiano Eromar Bonfim inscreve Matias e Leopoldo em uma galeria de personagens perturbados criados por gente como João Gilberto Noll, Rubem Fonseca e Marçal Aquino.

Algo triste, a sóbria capa flagra a autora em algum momento dos anos 50
Algo triste, a sóbria capa flagra a autora em algum momento dos anos 50

Maria-teclado
Memórias de uma beatnik, de Diane di Prima (trad. Ludimila Hashimoto). Veneta, 214 págs.

Com tantos gays na vanguarda (Allen Ginsberg, William Burroughs etc etc) e na retaguarda (Jack Kerouac dava umas escapulidas do seu estereótipo machão-beberrão para curtir o amigo Neal Cassady), o movimento beat certamente foi um dos meios culturais mais misóginos, ainda que não necessariamente machista. Ainda que Kerouac e poetas como Gary Snyder tenham louvado as mulheres, estas costumaram ter um papel secundário no masculino universo beatnik. Ali um nome como Diane di Prima surgiu como bela e honrosa exceção. Neta de anarquista, amiga de Ezra Pound e Timothy Leary e editora da revista beat Floating Bear, Diane acelerou como raras mulheres de sua época. No erótico ano de 1969 ela publicou este livro, misto de autobiografia e ficção — testemunho em primeira mão das experiências comunais dos anos 60, a narrativa acaba por unir as descobertas dos beats dos anos 50 às experiências radicais dos hippies dos 60. Mas não só de biografia se alimenta o livro: o ritmo certeiro e a descrição direta e bem-humorada das práticas das moçoilas beatniks apontou caminhos para muitas escritoras —e escritores, por que não — e construiu cenas memoráveis. Quem largar o livro após o boquete das primeiras páginas, por exemplo, é melhor pegar uma carona na 66.

A capa é boa, mas... nenhuma imagem no miolo? Zero
A capa é boa, mas… nenhuma imagem no miolo? Zero

Shazam!
Marvel Comics — A história secreta, de Sean Howe (trad. Érico Assis), LeYa, 556 págs.

Tudo bem, dona Alice Munro merecia o Nobel, pela qualidade indiscutível e original de seus contos, mas… se o alcance cultural e a capacidade inigualável na criação de mitos modernos que circulam por quase todo o planeta fossem critérios, os suecos deveriam ter dado seu prêmio a Stan Lee. Não que o moderno Homero precisasse de dinheiro: o super-apetite pelo vil metal faz do pai de Homem-Aranha um dos homens mais poderosos da indústria do entretenimento — indústria de que ele foi um dos criadores. Mas até faturar, ele quase faliu e morreu – e roubou muitas ideias de seus parceiros. Esta é só uma das descobertas na fantástica pesquisa do jornalista Sean Howe, que devassa a nada limpa história das histórias em quadrinhos nos EUA, vista da perspectiva de uma das duas casas que cimentaram a indústria da HQ (a outra é sua rival DC Comics, que abriga o Batman e o Superman). Nem tudo foi sucesso na carreira de Lee, entretanto; em 1961, quebrado emocional e financeiramente, ele quase entregava os pontos — quando tomou um enquadro da esposa. Dias depois, tinha criado o Quarteto Fantástico; mais tarde viriam Thor, Homem-Aranha, os Vingadores, Surfista Prateado, Hulk, Demolidor e centenas de outros deuses… não só à custa de muito neurônio e suor, mas também de muito sangue. Senão importantíssimo: com trocentos nomes de quadrinistas e roteiristas sendo citados no livro, a editora poderia ter caprichado e incluído um gráfico para o leitor entender melhor as entradas e saídas de cada artista, bem como seus respectivos personagens — em um livro sobre quadrinhos, não incluir uma única imagem de super-herói para que se possa entender o estilo de cada artista é uma clamorosa falta de imaginação (ou de vontade).

O próprio autor (e editor) fez o belo projeto gráfico
O próprio autor (e editor) fez o belo projeto gráfico

Videogame castiço
Quatro soldados, de Samir Machado de Machado, Não Editora, 319 págs.

A literatura de invenção, embora olhada com desconfiança e preguiça por parte da crítica (sem falar no mercado), segue a passos largos no país. Basta ver este impressionante romance do editor Machado de Machado, literatura pós-moderna exemplar, situada no século 18. Um jovem líder alferes, um triste capitão cavaleiro, um desertor contrabandista de livros e um tenente mentiroso são os Quatro Soldados que desbravam fronteiras movediças e labirintos estranhos em um país que colocava de um lado índios e de outro jesuítas. Mulas sem cabeça, massacres indígenas e o terremoto de Lisboa são alguns dos temas dessa prosa alimentada tanto por um português castiço quanto pelas estruturas narrativas de videogames como Uncharted. “Todo leitor de romances deve ser considerado uma alma em perigo“, alerga, na epígrafe, Thomas Pynchon; um alerta que deveria servir, na verdade, para todo leitor desconfiado ou preguiçoso da literatura de invenção.

Uma capa simples, apoiada em uma clássica personagem de Larsson
Uma capa simples, apoiada em uma clássica personagem de Larsson

Retrato do artista quando jovem
Stieg Larsson antes de Milleniun (trad. Letícia de Castro), de Guillaume Lebeau (roteiro) e Frédéric Rébéna (arte), Veneta, 64 págs.

Poucos autores conseguem aliar sucesso de público com respeito da crítica (pense em Paulo Coelho. Pronto, pode parar de pensar) como Stieg Larsson. Bem antes de se tornar um dos escritores mais pop do planeta — vendeu 60 milhões de livros com a trilogia Millennium —,Larsson levou vida digna de romance. Passou a infância com os avós, no meio da floresta sueca, onde aprendeu, desde cedo, a matar seus inimigos — como as raposas que caçava com o avô. Mais tarde, na juventude, desembarcou na África para treinar um grupo de guerrilheiras, mulheres que lutavam pela libertação da Eritreia. Finalmente adulto, fundou uma das mais importantes revistas anti-facistas da Suécia e combateu duramente a extrema direita. Morreu de um ataque cardíaco aos 50 anos depois de subir uma escada rápido demais. Sequer viveu para ver seu primeiro livro publicado, quanto mais o inesperado sucesso, que acabou por abrir caminho para toda uma geração de narradores policiais nórdicos. Esta graphic novel divide a vida de Larsson em três atos. Breve, como a própria vida do autor sueco, usa um preto-e-branco de traços rápidos, pontuados por diálogos chispantes e carregados de ideologia.

[Notas publicadas originalmente na revista Poder e no Guia da Folha de S.Paulo]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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