Cozinha extraordinária

Joca prestes a trinchar uma costela em retrato de Renato Parada
Joca prestes a trinchar uma costela em retrato de Renato Parada

Em novo romance, o cuiabano que vive há duas décadas em São Paulo recria sua receita baseada em seres excêntricos, humor bizarro e linguagem estranha. Perfil gastroafetivo do amigo Joca Reiners Terron para a bela revista pernambucana Continente

Engraçado é que sempre que eu lembro do Joca eu lembro de comida. Não que ele seja exatamente gostoso. Tampouco gordo — o vôlei da adolescência o deixou musculoso, boa sustentação para a pancinha proeminente da cerveja da juventude (da meia-idade? Ele já está com 45 anos e a sede segue grande). É que quase sempre que nos encontramos estamos a uma mesa. A primeira vez que bati os olhos no nome Joca Reiners Terron foi em 1999, no finado Fran’s Café da rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena: no café havia uma rara livraria que dispunha em uma grande mesa livros de autores mais tarde convencionados sob o rótulo Geração Noventa (ou Geração Nojenta, para alguns), gente como Marçal Aquino, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire. Ali estava seu primeiro livro de poesia, Eletroencefalodrama, publicado por sua editora Ciência do Acidente. Mais tarde nos vimos em pessoa em um Bloomsday no Finnegan’s Pub de Pinheiros munidos de cervejas pretas e fish’n’chips. Depois viriam os encontros revezados entre pizzaria Mandrágora e os bares Platibanda, Filial, Ponto X e Empanadas, até que por fim concentraríamos nossas conversas ao redor dos balcões e mesas da Mercearia São Pedro — onde, glória dos botequeiros, o assíduo Joca chega a batizar um sanduíche de pastrame.

Conforme Joca foi sofisticando sua literatura, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a tornava mais acessível, também ia requintando sua gastronomia (comer/cozinhar e ler/escrever são atividades complementares; desconfie de um escritor que não goste de comer, que não tenha prazer em degustar uma específica iguaria, e que não tenha ao menos um jeito autoral de fritar um ovo). Pai de Júlia, hoje com 14 anos, aprendeu a cozinhar para a filha na marra; a intimidade com as panelas o fez recriar os pratos favoritos em seu próprio fogão. Suas especialidades são puceros e cozidos (traindo a ascendência ibérica), costelas, pernis e outras carnes ao forno, bem como uma sobrenatural feijoada — servida em raros sábados em sua casa, em convescotes recheados com vinis de Erasmo Carlos, Black Keys e Cartola, tendo como MC a inseparável Isabel Santana Terron, fotógrafa e editora cognominada Egípcia do Crato (pela discreta procedência cearense). Embora esfomeado, Joca é um chef à moda antiga; somente se serve quando todos os seus convidados já finalizaram o primeiro prato.

Há uma explicação simples para este emergente talento da culinária brasileira: a cozinha de Joca é colada a seu escritório, e há quase 20 anos o homem vive na frilândia. Seja como designer, cozinhando capas e projetos gráficos, seja como tradutor, editor, dramaturgo, professor, roteirista, curador ou até mesmo escritor, os proventos de Joca vêm de seu home office, onde junta a fome por frilas com a vontade de comer. Foi neste apertado quartinho atulhado de livros, anotações, desenhos e perdidos pedaços de bacon que Joca concluiu o terceiro romance, A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves. A fome de bola deste renitente torcedor do São Paulo o levou cozinhar a obra em somente dois meses. Talvez a velocidade seja a responsável por uma escrita tão leve, limpa dos trocadilhos, das frases sinuosas e das imagens complexas que temperaram livros como o romance-em-contos Não Há Nada Lá, as narrativas fragmentárias de Hotel Hell ou os contos autobiográficos de Curva de Rio Sujo.

Isso não significa, no entanto, que seja um livro feijão-com-arroz. Ao contrário: tal como o chinês da anedota, o ágil romance equilibra vários pratos giratórios ao mesmo tempo. Um taxista psicopata amante da música clássica, um escrivão insone cujo pai é moribundo, uma bióloga com pretensões televisivas, um entregador coreano apaixonado e evangélico, uma enfermeira especializada em cuidados paliativos para pacientes terminais. Cada um dos personagens ganha o olhar parcimonioso do chef — além de uma criatura estranha que nunca sai de casa e do melancólico leopardo-das-neves cujo canto foi enjaulado. Todos se movem ao redor de um crime enigmático, praticado em um zoológico noturno, e todos se cruzam no bairro paulistano do Bom Retiro, caldeirão multicultural (Joca vai detestar esse clichê) onde fervilham bolivianos, judeus, coreanos, nordestinos — e até cuiabanos como Joca, que há alguns meses vive ali perto, no bairro de Santa Cecília; apaixonou-se pela área ao bater perna por quase dois anos reunindo material para a dramaturgia de Bom Retiro 958 Metros, peça encenada pelo radical Teatro da Vertigem. Foi ali na vizinha Santa Cecília, mais especificamente no clássico Esquina Grill, onde cerramos maminhas, fraldinhas e algumas ampolas, que Joca concedeu a entrevista a seguir. Ali mesmo ele rabiscou, em um guardanapo com manchas suspeitas, a receita de uma requintada iguaria, baseada em situações e cenas de seu novo romance. Bom apetite.

Escritório terroniano
Escritório terroniano

Nunca sua linguagem esteve tão enxuta e certeira quanto neste livro, em termos estritamente fabulares, ligados à trama. Por vezes me peguei pensando em livros de Mario Bellatin e Roberto Bolaño. Essas leituras influíram? Certamente, mas não só. O que influi com absoluta certeza é a falta de tempo para escrever, que acabou me levando ao osso da linguagem, ou ao tutano, que é o que realmente interessa.

Como você descobriu o leopardo-das-neves? Atualizando o sistema operacional da Apple ou assistindo National Geographic? Lendo a Enciclopédia Barsa quando eu tinha uns 7 anos. Acho bastante estranho quando me perguntam se o leopardo-das-neves é uma invenção minha. Não consigo conceber o mundo sem o leopardo-das-neves.

Ainda sobre a linguagem: em seus primeiros livros de ficção é visível o grande esforço de tornar cada frase impactante e esteticamente redonda. Neste livro houve uma depuração, já sinalizada no anterior Do Fundo do Poço Se Vê a Lua. Este é o caminho para onde se dirige sua escrita? Se o esforço era visível, quer dizer que era ruim. Infelizmente, diante das circunstâncias em que me encontro hoje, não dá para saber ao menos se existirá um próximo texto. Cada dia é uma batalha, que não é completamente perdida apenas quando surge espaço suficiente para levar adiante uma narrativa. Mas seria assim mesmo se eu tivesse todo o tempo do mundo. Terminar um livro é quase tão difícil quanto ganhar na loteria.

A peça que fez para a Vertigem foi estímulo fundamental para descobrir um cenário novo para sua narrativa. Por outro lado, mesmo surgindo elementos novos vindo do “real” (bolivianos, coreanos, judeus), você manteve um pé fixo na imaginação, na fantasia — e este é o verdadeiro norte da escrita, menos que a apreensão do “real”. Concorda? Para mim uma coisa não está separada da outra. A imaginação e a realidade vivem trocando fluidos o tempo todo. Se a gente parar para observar, acaba notando que a realidade desenvolveu sua maneira própria de imaginar. É essa capacidade que me interessa, aquilo que Alexander Kluge chama de “o mundo fantástico dos fatos objetivos”.

Um bairro como o Bom Retiro foi salutar para a inspiração? Qualquer escapadela do escritório é boa para a imaginação. Ao sair de casa e andar pela rua é o momento em que escrevo com maior fluência. O problema é que não há registro dessa escrita, então sou obrigado a voltar correndo e anotar antes que as idéias sumam, misturadas à fumaça do cano de escapamento dos carros.

A São Paulo que você apresenta é uma cidade muito mais multicultural e pluralmente étnica do que a cidade normalmente decantada pelos próprios paulistas, orgulhosos de sua NY tupiniquim. Aliás, você, apesar de morar em SP há décadas, não é paulista. Ainda se sente estrangeiro a esta cidade, daí sua compaixão aos gringos que aqui residem? Me sinto estrangeiro em qualquer lugar, principalmente dentro de meu próprio corpo. Tenho lembranças de um corpo que conseguia saltar e nadar sem sentir dores, então me sinto alienado neste corpo, pensando “onde será que meu eu de antigamente fui parar?”. São Paulo é o lugar onde menos me sinto assim, pois com raras exceções ninguém é daqui. Como em toda cidade composta por imigrantes, porém, o nômade chega ao novo mundo e imediatamente o toma para si. É como se tivesse sempre pertencido àquele lugar. Veja só o pensamento racista dos europeus que migraram para São Paulo no início do século 20 em relação aos nordestinos que chegaram depois. É dessa fricção que São Paulo é feita.

O livro é cheio de prisões e seres detidos: o leopardo (que me lembrou o King Kong e também o William Blake do filme Dead Man), o taxista, a criatura, o garoto violador, o escrevente sarará — todos seres apartados, deslocados, alheios a um convívio. Por que o Outro é tão inacessível na sua obra? É o problema essencial de minha vida, que acabou invadindo os livros. Tem a ver com minha história pessoal, ter morado em diversos lugares sem nunca ter tido tempo para me envolver com esses lugares, e também com um passado fugidio de descendente de imigrantes sem lembranças nem contato com suas origens. Quando saio na rua, me pergunto: quem são essas pessoas, do que vivem? É uma preocupação constante, da qual nunca extraio respostas.

Uma questão interessante da escrita foi a velocidade: é seu livro mais rápido, não? Isso também influiu no ritmo do texto? Escrevi em dois meses, mas entre um mês e outro o livro ficou esquecido por mais de ano, e acredito que isso tenha sido importante. Escrevi o livro muito rapidamente pois surgiu o tempo necessário para isso, e eu queria ter a primeira versão com urgência, pois sabia que o tempo logo desapareceria. Depois de um ano, reli, encontrei os problemas com maior facilidade — devido à isenção por causa da distância — e reescrevi durante mais um mês. Mas note que o livro tem dois ritmos: um é o dos capítulos ímpares, que reproduz circunvoluções do pensamento do narrador, o escrivão de polícia. O outro é o ritmo em que são narrados os eventos, muito mais factual e cheio de ação. O contraste entre esses dois ritmos faz a narrativa avançar.

Você é um dos 70 autores que vão representar o Brasil em Frankfurt. O que aguarda da feira? O governo ainda continua tímido na questão das traduções de obras brasileiras ou já podemos ter mais esperanças? Não sei ao certo. Se não me obrigarem a jogar futebol e a sambar já vai estar valendo. O sistema de subsídio à tradução de obras brasileiras da FBN anda fazendo sua parte, o mundo é que anda muito tímido em seu interesse em ler a literatura brasileira.

O que está cozinhando? Novo romance? Aquele livro de poemas sairá algum dia? Estou ensaiando retomar a escrita de um romance já iniciado, o que é bastante difícil. Tenho vários livros de poemas inéditos, e isto me envergonha um pouco. Não o ineditismo — mas os poemas.

Bolañismos
Bolañismos

FEIJOADA DO NOCTURAMA (servida somente às sextas-feiras)

Esta feijoada é feita com feijão negro, variação pouco conhecida do popular feijão preto. É um tipo de feijão de poucas colheitas ao ano, às vezes apenas uma, daí ser tão raro. Na noite anterior, coloque o feijão de molho em leite de cachorra rottweiler. O contato com esse leite de sabor ácido expulsará os carunchos do feijão. Não ligue para o que os carunchos digam (têm idéias maléficas). Separe, jogue fora. Cozinhe lentamente por duas noites seguidas o feijão negro acompanhado dos seguintes ingredientes. Lembre-se que o segredo para que o feijão fique macio e suculento é a ausência de sal no processo de cozimento.
• duas folhas de mandrágora;
• buquê garni com: olho de vidro de escrivão de polícia, calcinha usada de assassina serial e coentro.
• azeite judaico de Heilel Ben-Shachar.

CARNES
Prefira carnes tenras.
• paio de criança gorda.
• bulgogui coreano (churrasco).
• cauda de leopardo-das-neves em rodelas (toque especial).

Tudo cozido, tempere com sal a gosto. Acompanhamentos: o feijão negro deve ser consumido sempre desacompanhado. Igualmente, o comensal deve estar sozinho. (JRT)

O segredo é organizar as armas brancas
O segredo é organizar as armas brancas

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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