
Escale para a sua cabeceira um francês, um americano, um grego e um alemão

Amor louco
A espuma dos dias, de Boris Vian (trad. Paulo Werneck). Cosac Naify, 256 págs.
“Existem apenas duas coisas: o amor com garotas bonitas e a música de New Orleans. O resto é feio” escreve Boris Vian no prólogo a seu A espuma dos dias. O livro, que ocupa no imaginário afetivo francês o mesmo lugar d’O apanhador no campo de centeio para os norte-americanos — é o típico presente que se dá a um flerte, uma paixão ou mesmo uma amizade em preto e branco — , ganha bela edição no Brasil. A tradução de Paulo Werneck atenta para os trocadilhos do texto, como o “miranimim“, dança criada por Vian para acompanhar os inúmeros números de jazz que fazem serpentear o casal de enamorados Chloe e Colin. O jazz de Duke Ellington é tão importante que motiva Colin a criar coisas como o “pianoquetel”, drinque criado à base de canções de swing tirado diretamente de um piano. A linguagem é uma festa de sinestesias e associações livres: “Alguns insetos de élitros tentavam subir a correnteza produzindo um pequeno marulho parecido ao das rodas de um vapor singrando na direção dos grandes lagos“. Ligações diretas entre sons e sabores, cheiros e sensações, cores e pensamentos fazem o texto fluir em uma onda lisérgica humorada e hedonista. Entre o existencialismo (Jean-Sol Partre, jogo com Jean-Paul Sartre, é personagem-chave) e a ainda nem nascida nouvelle-vague, os amigos Chick, Nicolas, Alise e Isis gravitam surrealisticamente ao redor da desmesurada paixão do rico casal protagonista — que se no começo tem toques de Romeu e Julieta, Paolo e Virginia, Tristão e Isolda, aos poucos vai ganhando os tons beges da rotina própria a todo casamento, até despencar na tragédia.
Clássico hoje, o livro passou em branco durante a curta vida de Vian, que morreu aos 39 anos após ter agitado a cena cultural parisiense escrevendo artigos sobre jazz e cinema, tocando alucinantemente seu trompete e criando dezenas de poemas, contos e canções. Sob o pseudônimo de Vernon Sullivan, publicou outro romance, Vou cuspir no seu túmulo (Ediouro), que escandalizou a sociedade por mostrar cenas de sexo entre um negro e uma branca. Vian foi o mais americanófilo dos franceses, e sua delirante paixão pela velocidade e leveza do jazz fez de sua obra um importante farol para tirar o mofo da cultura francesa iluminando-a com ritmo pop. Do som de Serge Gainsbourg aos filmes de Godard, Truffaut — e, agora, de Michel Gondry, que, não por acaso, o adaptou ao cinema em uma obra-prima psicodélica — , todos são filhos do amor louco entre Colin e Chloe.
Queima, demônia
Condenada, de Chuck Palhahniuk (trad. Santiago Nazarian). LeYa, 308 págs.
Uma garotinha gorda de treze anos se mata e vai parar no inferno. Na verdade ela se mata por overdose de maconha — como se isso fosse possível (é a pergunta que ouve de todos os diabos o livro todo). Filha de um bilionário e de uma atriz de cinema, a pobre menina rica castiga os pais do lado de lá com revelações cruéis sobre suas vidas vazias (como se a sua fosse muito plena) enquanto curte seus novos amigos: uma cheerleader, um jogador de futebol americano, um nerd que sabe tudo de história, um punk de cabelo azul — amigos que ela não teve enquanto viva. Mas o pior não foi parar no inferno. O pior, para uma adolescente imaginativa, hiperativa e narcisista é parar no inferno e não conseguir falar com Satã — invocado a cada parágrafo deste divertido romance do autor de Clube da Luta. Professor de escrita criativa, Chuck Palahniuk exibe toda a sua musculatura técnica: parágrafos com ganchos bem-formulados que levam ao seguinte, capítulos bem amarrados, adjetivação esquelética, frases curtas e na ordem direta, personagens excêntricos, autoironia, cinismo, um ódio compassivo pela humanidade em geral. Boa metáfora da adolescência: num tempo que não acaba, o centro de suas atenções não está nem aí pra você.

Chupa, Xerxes!
Os Persas, de Ésquilo (trad. Junito Brandão). Mameluco, 357 págs.
Esqueça Rodrigo Santoro, ou melhor, esqueça o Xerxes do filme-HQ 300: o Xerxes aqui retratado por Ésquilo está bem longe do semideus vivido pelo ator brasileiro sob o roteiro de Frank Miller no filme de Zack Snyder. Aquele rei persa havia vencido a Batalha das Termópilas à frente de um exército de 300 mil homens sobre o bravo contingente de 300 espartanos, em 480 a.C. A infame vitória persa serviu para inflamar o patriotismo grego, que, ao final do mesmo ano, venceu a Batalha de Salamina — expulsando de uma vez os monarquistas persas dos domínios dos democratas atenienses. É este Xerxes — que vendeu caro sua derrota, teve de engolir a soberba e ainda tomar uns cascudos da mamãe, a rainha Atossa — um dos protagonistas de Os Persas, de Ésquilo, a peça teatral mais antiga que se conhece.
Esta não é sua única originalidade: Os Persas concorre na raia de Os Sertões como um dos expoentes do jornalismo literário de todos os tempos — afinal, trata-se de um registro de um fato ocorrido havia apenas oito anos. Na plateia de Ésquilo estavam generais e soldados que combateram em Salamina, ao contrário de peças como Édipo Rei, que tratam de eventos bem mais antigos. A batalha é mostrada de modo indireto: um mensageiro leva a má notícia da derrota ao palácio real em Sisa. A rainha Atossa lamenta a desdita com seu coro e, como toda mãe, preocupa-se com o destino do indomável pimpolho. Dos mortos surge para consolá-la o rei Dario, que critica o filho por ter ultrapassado os domínios da hybris (descomedimento, orgulho, arrogância) sempre punida pelos deuses (o historiador Toynbee usa a hybris como conceito central para explicar o declínio dos grandes impérios — e, por que não, das grandes corporações, né, Eike?). Por fim, surge no palácio o próprio Xerxes, que volta cabisbaixo, mendigando desculpas. É aí que alguém na plateia soltaria um “Chupa, Xerxes!” (em grego, claro).
A maravilha ganha edição finíssima no Brasil. Tradução direta da edição estabelecida por Denys Page feita pelo grande helenista carioca Junito Brandão, que também apresenta a obra com divertida verve; artigos de Luis Seabra (sim, ele mesmo, o bilionário fundador da Natura), Antonio Medina Rodrigues e Adriano Machado Ribeiro. O belo projeto gráfico, de Vanessa Lima, propõe uma leitura confortável.

RIP Herrndorf
Areia, de Wolfgang Herrndorf (trad. Claudia Abeling). Tordesilhas, 440 págs.
“Seu rosto trazia a expressão simplória de alguém que pensa e não se esforça em esconder isso.”
A capciosa frase é uma das deliciosas epígrafes espalhadas por Wolfgang Herrndorf (Tchik) nas aberturas de capítulos de seu volumoso romance; e se pode-se medir a ambição e a diversidade de uma obra pelo acerto de suas citações, eis aqui um exemplar bem-sucedido. As epígrafes de Areia passeiam do Kafka acima a Stendhal, Godard, Dylan Thomas e Hitchcock. Dão uma boa medida do que quão ilusoriamente simples é este romance noir ambientado no deserto do Saara: o argumento investiga o assassinato de quatro hippies que viviam em uma comuna e uma mala de dinheiro desaparecida — tendo como pano de fundo os atentatos do Setembro Negro nas Olimpíadas de Munique, em 1972. Paralela à trama policial, acompanhamos a busca de um homem desmemoriado para redescobrir sua identidade, coadjuvado por uma fabulosa loura. É um livro muito mais inteligente do que aparenta, como sugere outra ótima epígrafe, esta do físico Emerson Pugh: “Se o cérebro humano fosse tão simples que pudéssemos entendê-lo, então seríamos tão simples que não conseguiríamos fazer isso“. Por falar em cérebro: lamentavalmente, mal o resenhista virava a última página deste livro, seu autor morria de um tumor cerebal, com escassos 47 anos.
[Resenhas originalmente publicadas na revista Poder (Vian) e no Guia da Folha.]