
Os olhos cansaram de tanto que você os prendeu na timeline do Twitter e do Facebook atrás de notícias sobre os protestos pelo Brasil? Descanse retinas, mentes (ou pés, no caso de você ser um manifestante) com páginas estáticas para reoxigenar o espírito. Os textos a seguir foram publicados originalmente no Guia da Folha Livros Discos Filmes.

TODA ANTOLOGIA SERÁ CASTIGADA
> Poesia.br, org. Sergio Cohn. Azougue, 10 volumes
Antes, o porém: as ausências estridentes. Muito do que importa ficou fora desta bela caixinha. Seja pelos critérios peculiares do editor indie Sergio Cohn, seja por razões pessoais (poetas que desautorizaram a reedição de poemas, como Carlito Azevedo), seja por razões pecúnio-familiares (editoras e herdeiros que amesquinharam a publicação de Mário Faustino, Manuel Bandeira, José Paulo Paes, Oswald de Andrade etc). Não à toa os termos antologia e antolho se assemelham: também são instrumentos que inibem olhar para determinados cantos.Toda antologia será castigada — é do jogo.
Isto posto, vamos à caixa. Resultado do heroico trabalho do também poeta Cohn, o homem por trás da revista literária Azougue, Poesia.br tem a missão de fazer circular o mais nobre e menos lido dos gêneros literários; daí ter um olho na acessibilidade (ótimo preço) e outro na portabilidade (são 10 volumes de bolso).
Começa com uma boa surpresa: a compilação dos cantos ameríndios, de tribos como kashinawá, bororo e guarani — forte demonstração de que a poesia já existia aqui bem antes de Caminha. Seguem-no os volumes Colonial, Romantismo/Pós-Romantismo, Modernismo, e daí por décadas: 1940/1950, 1960, 1970, 1980, 1990. Tomando os buracos deixados pelos nomões como vantagem, Cohn ilumina obras pouco conhecidas, nada canonizadas e raramente lidas na academia. Mesmo nos volumes 1990 e 2000, onde é mais pesado o pega-pra-capar entre os que entraram e os que ficaram de fora, as escolhas promovem boa discussão sobre as muitas formas da poesia contemporânea — que, sob o olhar do editor, pontuam três qualidades referenciais: a leveza, a irreverência, o humor. Não por acaso, características que pairam sobre esta incontornável antologia.

ZONA DE CONFRONTO
> Três Mulheres Fortes, de Marie Ndiaye (trad. Paulo Neves). Cosac Naify, 298 págs.
A desgastada expressão “zona de conforto” nunca se aplica à literatura de Marie Ndiaye. Suas narrativas habitam a zona de confronto: moral, político, espiritual. Para cutucar os demônios do leitor, a premiada autora francesa de 46 anos maneja uma escrita límpida e uma perspectiva muito próxima de cada personagem — é craque no discurso indireto livre. Amplificando o que havia perpretado no tenso Coração Apertado, neste romance ela acompanha não uma, mas três mulheres acossada por situações insustentáveis. Na primeira história, Norah visita o pai, um sujeito áspero e intratável, e descobre que o irmão está preso; na segunda, Fanta, uma professora admirada, é menosprezada pelo marido, o medíocre e covarde narrador, que a faz perder o prestígio; na terceira, Khady perde o marido e, por não ter engravidado dele, é despejada pela família dele. Tempos desesperados exigem mulheres possantes — e nenhuma concessão a bons sentimentos.

MINHA GEOGRAFIA MUDOU
> Histórias de Paris, de Mario Benedetti (trad. Ari Roitmann e Paulina Yacht). Biblioteca Azul, 64 págs.
“Bobagens que você inventa no exílio para tentar se convencer de que não está ficando sem paisagem, sem gente, sem céu, sem país.” A sentença abre o delicioso conto “Geografias”, em que dois uruguaios exilados em Paris tentam descrever em detalhes um lugar específico de Montevidéu — até que um deles se envolve com uma compatriota que acabou de chegar à França, após um período na prisão. Levíssima, a história culmina com uma dolorosa descoberta: “Todas as paisagens mudaram, em toda parte há andaimes, em toda parte há escombros. Minha geografia também mudou”. Seguem-se mais três narrativas em que o autor flagra situações vividas por uruguaios que, como ele, foram obrigados a fugir da ditadura militar dos anos 70: viver na Cidade-Luz pode ser bem mais difícil do que parece. Com sua recusa ao discurso político fácil e o apreço às singularidades de cada personagem, descritas com suavidade e humor, com maestria Benedetti emula a dor excruciante de quem foi empurrado para fora de seu país. A bela ediçãozinha contém ilustrações de Antonio Seguí.

TARAS E ATRITOS
O Professor do Desejo, de Philip Roth (trad. Jório Dauster). Companhia das Letras, 251 págs.
O que é o desejo? De onde vem? Para onde vai? Com base em sua obsessão por sexo e literatura — e suas infalíveis intersecções —, Philip Roth escreveu um de seus melhores romances, O Professor do Desejo. Aqui, David Kepesh é um professor de literatura às voltas com suas taras e seus atritos com a moral enquanto bem-posto membro (ops) da sociedade carola norte-americana. A fachada impoluta do professor começa a desmoronar quando sua esposa é detida por tráfico de drogas e ele percebe que seu casamento era uma farsa. O reprimido Kepesh tem a possibilidade de abraçar o hedonismo quando conhece Claire e visita o túmulo do ídolo, o mais que reprimido Franz Kafka. Claro que as coisas não serão assim tão redentoras — como se pode ver nos outros romances estrelados por Kepesh, o surreal O Seio e o melancólico O Animal Agonizante.

ALTA LITERATURA, ARRAIA-MIÚDA
> Contos Reunidos, de João Antônio. Cosac Naify, 604 págs.
Recentemente a pesquisadora Regina Dalcastagnè publicou uma denúncia impactante em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (Editora Horizonte): na literatura brasileira contemporânea, 80% dos personagens são homens brancos, 57% de classe média, 20% escritores, jornalistas ou artistas. A estatística seria bem diferente se aplicada à obra de João Antônio, um dos raros escritores brasileiros egressos das classes populares que jamais abandonou seu objeto (e seu berço) de origem. Retratados-falados segundo sua sintaxe, prosódia, dicção e jargão muito particular, malandros sinuqueiros, prostitutas carinhosas, malandros e otários, boleiros, camelôs, guardadores de carro e outros tipos da arraia-miúda desfilam por seus textos — também eles OVNIS na nossa literatura, posto que adensaram e fragmentaram a potência do gênero conto aproximando-o da reportagem, da crônica, da prosa poética e até da saga. A belíssima edição tem prefácio do escritor (e editor) Rodrigo Lacerda, além do curioso caderninho Vocabulário das Ruas, com gírias e termos recolhidos pelo genial autor paulistano.

DUPLO FRACASSO DA ARTE
> Pulso, de Julian Barnes (trad. Christina Baum). Rocco, 237 págs.
Quem conhece a eficiência narrativa presentes nos romances de Julian Barnes — elegantes, polidos e confiáveis como um relógio inglês — terá a agradável surpresa de percebê-la em escala menor nos contos de Pulso. “Todos os que entendem de arte sabem que ela nunca correspondeu ao sonho de seu criador. A arte nunca atinge o objetivo, e o artista, longe de salvar algo do desastre da existência, estava condenado a um duplo fracasso.” A lapidar sentença, pensada por uma escritora e escrita em discurso indireto livre, talvez reflita o pensamento do próprio autor — um sagaz observador das mesquinharias, vaidades, fantasias e vilanias de personagens da classe média, sejam eles escritores consagrados sejam corretores de imóveis. Se o objetivo de Barnes foi o de retratar com humor e desconsolo o vazio e o fracasso dessas existências, a meta foi plenamente atingida nessas narrativas curtas e comoventes.

INCENDIÁRIA INDEPENDÊNCIA
A Voz do Fogo, de Alan Moore (trad. Ludmila Hashimoto). Veneta, 335 págs.
Ter um olho no tempo do mito e o pulso na estranheza dos dias que correm é uma marca de Alan Moore em toda a sua produção (que, nunca é demais repetir, passa por obras-primas como os roteiros de Watchmen, V de Vingança e a saga do Monstro do Pântano, as quais tornaram seu nome incontornável na HQ contemporânea). A sensação de ser parte de uma trama — típica nas narrativas paranoicas e nas teorias de conspiração — repete-se no romance A Voz do Fogo, ambientado em Northampton (cidade onde o autor nasceu e vive) entre 4 mil a.C. e 1995 d.C. O fôlego narrativo de Moore dá voz a bruxas, guerreiros, poetas, rebeldes e místicos de toda ordem — como o próprio autor, que narra o último capítulo. Bruxuleante, a linguagem vaga do tatibitate lírico de um caçador ao texto moderno de um vendedor de lingerie, passando pela dicção medieval de um templário, tendo como ingredientes humor mórbido e feroz crítica social — conforme se espera de quem deu as costas a Hollywood em nome de uma incendiária independência.