O intelectual é um urubu

Padre Daniel Lima, no traço de Andrés Sandoval

Um bolo de rolo com o premiado padre-poeta Daniel Lima, morto em abril depois de passar 95 anos zombando da glória e da Moça Caetana. Esquina publicada na Piauí de maio

O que faço é uma bosta“, diz o velhinho, arregalando os olhos, erguendo de leve o pescoço ao tentar se elevar da poltrona verde onde afunda, pés descalços estendidos no pufe, em um simpático apartamento no bairro da Torre, Recife. Sua voz é trêmula, baixa e suave: ele acaba de retornar do hospital, onde se recuperava de pneumonia. “Logo de manhã você não sente a própria bosta? É a vida! Fiz muita bosta nessa vida. E não ria, não: porque fiz foi bosta da boa. Olhe, você tem a minha bênção pra escrever bosta, sabe?” O velhinho veste uma camisa listrada clara e óculos de lentes fundo-de-garrafa; o perpétuo olhar espantado e o sorriso aberto lhe dão um ar de tartaruga ninja bebê. A bosta a que se refere é seu livro Poemas, editado no fim de 2011, premiado pela Biblioteca Nacional. Era o primeiro livro que publicava em 95 anos.

Tem bolo de rolo lá em São Paulo?“, pergunta Daniel Lima, padre, professor de teologia, latim e filosofia, oferecendo uma finíssima fatia do mais famoso quitute pernambucano (depois das empadinhas de Garanhuns). Seu olhar arregalado é intenso, mas sua voz é fraca, escavada por uma longa tosse. Assim, ele mais escrutina o repórter do que desfia histórias – quem o faz são as fiéis companheiras, a escritora Luzilá Gonçalves e a bibliotecária Célia Veloso. Foram elas as responsáveis pela publicação de Poemas, espécie de contrabando: até seus noventa anos, Lima era notório por fazer livros cujo único exemplar emprestava a um amigo, pedindo-o de volta depois de um ano. Nunca quis publicá-los, por achar que era vaidade de intelectual, coisa que o horroriza.

O intelectual é um urubu/ que se julga vestido/ mas que está nu/ com uma pena de pavão/ enfiada/ no cu“, diz um de seus mais famosos poemas, conhecido de cor pelas centenas de alunos que passaram pelas anárquicas aulas na Universidade Federal. Célia datilografou os livros – 13 de filosofia, 14 de poesia, títulos como O cocô de Herodes, Deus de anarquia, Cordel quase modernoso, Instruções para Dom Quixote, Da teologia ao rol de roupa, Peregrinação divertida.

Luzilá publicou a seleta em edição caprichada, sem avisar o padre. A consistência de sua poesia metafísica, de linguagem direta, despida de pompa, alimentada por humor leve e exaltação à vida, impressionou o júri, formado por medalhões como Ivo Barroso e Alexei Bueno. O prêmio não impressionou Daniel Lima: ele chamou Luzilá de “traidora” e, no dia do lançamento, fechou a cara pra todo jornalista que o procurava. Contudo, agora olha o livro como um menino mira o brinquedo favorito: “Está cheio de erros. Não deviam ter publicado“, chia.

Fora os escritos datilografados zelosamente por Célia, na casa humilde que ainda mantém há dezenas de outros inéditos. Neles, onipresente são o tema do repúdio à vaidade e o flerte com a escatologia: “Deixa, Senhor, que eu blasfeme/ na danação desta hora./ Preciso ser maldito/ para sentir-me salvo.” Ou pequenas epifanias surrealistas: “Engarrafar o luar e sair por aí viajando/ de camisa listrada, sossega leão, sandálias japonesas,/ ai! meu louco sonho!/ A vida é essa mistura de flores e toucinho./ Estou bêbado de tanta leitura./ Quando voltarei de novo a ser gente?/ Queria ser agora apenas daniel (assim do com d pequeno, bem pequeno).

O miúdo padre é uma lenda. Educou gerações de pernambucanos ilustres; sua turma de amigos contava com Ariano Suassuna, Jommard Muniz de Brito, Paulo Freire, João Alexandre Barbosa e dom Hélder Câmara, que o chamava de “meu padre meio doido e meio gênio“. Genioso, Daniel Lima nunca teve paróquia, odiava freiras e beatas e era notório por ter soltado os pássaros raros do viveiro do padre Sidrônio, em Olinda, um escândalo. Tinha fundado um jornal aliado das Ligas Camponesas na região da zona da mata, onde nasceu (era natural de Timbaúba); virou padre numa “bunda-canástica“, explica, em pernambuquês – assim, de repente, sem explicação. Perguntado se praticava “socialismo cristão“, revidava: “Socialismo é socialismo; socialismo cristão é safadeza de padre“.

Tinha hábitos incomuns, como telefonar aos amigos de madrugada para discorrer sobre molho inglês, usar peruca para sair incógnito na rua, fritar ovo com óleo de peroba e cozinhar bife no ferro de passar. Jogava giz nos alunos indisciplinados, fingia-se de doente para pegar carona com ambulância e, certa vez, para provar que estava à beira da morte para conseguir uma licença da universidade, pediu emprestadas as fezes e a urina de um mendigo para forjar os exames. “Eu fazia isso?”, ri e tosse o padre, ante mais uma anedota contada por Célia e Luzilá.

Tinha também costumes perigosos, como soltar bolinha de gude na rua pra fazer derrapar os cavalos dos soldados do exército, esconder estudantes perseguidos pela ditadura e criticar abertamente os militares em suas aulas na Federal. Detido para interrogatório, passou um dia todo dando aulas de estética a um sargento. Abusava da amizade com o general Antonio Carlos Muricy, cujo casamento havia oficiado, e lhe pedia que soltasse este ou aquele militante. Porém, suas atividades incomodavam – e não se tratava só da defesa apaixonada que fazia da teoria da evolução das espécies na aula de teologia. Um amigo próximo, o padre Antonio Henrique Pereira Neto, foi mutilado, castrado e assassinado pelo Comando de Caça aos Comunistas, em 28 de maio de 1969. No bolso de Neto havia uma lista de nomes: o primeiro era o de Daniel Lima. “Me disseram: fuja!“, ele lembra. “Armei na cama um corpo feito de travesseiro, pus uma cabeça de coco, viajei para Natal. Uma semana depois, voltei, o telhado estava quebrado e a cama toda atravessada por balas. Não sobrou nada do coco“, ri e tosse Daniel Lima.

Quando o cabra começa a falar muito nele mesmo, fede. Quase todos os intelectuais são assim: me dá abuso. E tem gente que veste casaca de escritor e até fede que nem escritor, mas não é escritor“, denuncia o padre, explicando por que tenta convencer Luzilá a não publicar mais um livro seu. O aplicado leitor de Drummond, Thomas Mann e Cervantes acredita que não publicar seus próprios poemas foi “um ato enviesado de vaidade” – diz, depois de uma comprida sessão de tosse. “Ocultar a própria obra é um ato de vaidade. Se não fosse, eu não teria escrito nada. Foi o meu jeito de brilhar sem dar na vista“, arregala-se. Mesmo assim, logo deve sair a sua seleta de poemas fúnebres, o Sonetos quase sidos, com forte influência de Augusto dos Anjos: “Quando morreres ou te matares,/ come-te a ti mesmo com batatas/ e ervilhas (e um pouco de molho inglês)./ Comemora-te, ó imortal mortal:/ a tua morte bem merece/ o que a tua vida não valeu.

O flerte com o tema da morte o tornaria imortal? Se sim, o truque durou até o último 14 de abril, quando a Moça Caetana levou para sempre a verve diabólica e o sorriso infantil do religioso anarquista. Para lembrar aquela tarde pontuada a café, risadas e bolo de rolo, ocorrida somente um mês antes, busquei meu exemplar do Poemas e achei a dedicatória do padre: “Este livro era meu, agora é seu, depois será da lixaria. Com a amizade eterna do amigo Daniel Lima“. Amém.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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