
Resenha de Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas, para o Guia da Folha LDF de agosto
“A arte é também escapar do que acreditam que você é ou do que esperam de você“, afirma, um tanto dúbio, o narrador de Ar de Dylan, novo romance do espanhol Enrique Vila-Matas. Nada mais falso: pela profissão de fé no meta-literário, seu livro parece mais um no longo continuum narrativo do barcelonês, um dos mais festejados autores europeus contemporâneos, que já abarca cerca de trinta livros. Salvo por romances “lineares” como A viagem vertical, a sensação de mais do mesmo (ou, em trocadilho vilamatiano, “menos do mesmo”) é obtida pelo mote do livro: o fracasso.
A ideia pós-moderna de literatura em branco, em pânico, em crise, em suspensão ou em impasse flutua por livros como Bartleby & Cia, Suicídios exemplares, O mal de Montano, Doutor Pasavento, Dublinesca. Seus personagens são escritores que param de escrever e artistas cuja arte principal é desaparecer da arte. São intelectuais obcecados por uma imagem, uma frase, uma ideia, uma sensação, uma memória – dando à realidade a consistência de geleia (que horror conjugar uma frase com as palavras geleia e ideia), de tão autoconscientes da farsa que é a literatura. Autores, livros, cenas, sentenças de gente tão díspare quanto Rulfo, Kafka, Dylan (o Bob) estruturam a narrativa – causando ao leitor a impressão, ao final da maioria de seus livros, de que ele não leu um romance: antes presenciou um dança ou uma luta entre os livros de uma infinita biblioteca.
Um escritor que tem uma obra razoavelmente parecida em toda a sua extensão, exausto de si mesmo, resolve escrever um último livro para dar fim a esta tarefa que agora lhe parece inútil. É barcelonês, viaja pelo mundo e esteve até em São Paulo, onde passeou pelo Mercado Municipal com Emilio Fraia (escritor e editor de Vila-Matas na “vida real”). Participa de um congresso literário sobre o fracasso, onde conhece Vilnius Lancastre, filho de um escritor amigo, Juan Lancastre – cuja principal característica era ser um escritor camaleão, mudando a cada livro. Vilnius, que é igualzinho a Dylan na época de sua metamorfose do folk para o rock, sofre de uma terrível angústia de influência do pai, e, desde que este morreu, sente que seu cérebro está sendo “contaminado” pelas memórias de Juan. Ao lado dessa neurose, o Little Dylan, ex-publicitário de sucesso e cineasta falido, é obcecado pela frase “Quando escurece, precisamos sempre de alguém“, dita no filme Três camaradas, de Frank Borzage, que teve entre seus roteiristas ninguém menos que Scott Fitzgerald, e, de tanto odiar o pai, envolve-se com a amante dele, Débora… Zimmerman (sobrenome real de Dylan).
O narrador anônimo, fascinado pela deambulação aleatória do casal, que funda uma “sociedade infraleve” (cuja arte é não fazer nada, para conservar o “esquivo ar de Dylan”), resolve ajudá-los a escrever as memórias apócrifas do Lancastre pai, uma vez que as reais teriam sido incineradas pela tirânica mãe de Vilnius, e fazer de seu último livro uma exaltação à literatura como um “drama da sucessão” – trazendo ao romance a sombra de Shakespeare e seu mais famoso órfão, Hamlet.
“Quanto existe de real na realidade?“, pergunta V-M a dada altura. “A realidade tem um caráter circular e estrutura de pesadelo“, responderá, mais à frente. Entrelaçando refrões obsessivos que vão e voltam como uma longa canção de erros e acasos, V-M criou um romance que, tal como sua própria obra, caminha para nunca sair do lugar. Exausto e tonto com tantas rasteiras em seu mundinho verossímil, o próprio leitor é arrastado a este pesadelo e, ao fim, se perguntará se realmente existe – ou o quanto de sua própria matéria é formado de ar.