Na Vida Simples de dezembro [capa Tambor], a pensata-WC da vez
Boca maldita
Em tempos de Twitter, quem for profundo e ao mesmo tempo veloz herdará o topo da cadeia alimentar. Para pensar com leveza, sem ser leviano jamais, coma fibras, apanhe um livro, papel e caneta, dê um tempo – e vá para a casinha
“Enquanto esvazio o corpo no vaso, um livro me preenche a alma.” Mais ou menos assim Rubem Fonseca descreveu, em um de seus perfeitos contos, a dupla operação que empreendemos ao ler no banheiro (desculpe, leitor, não achei o livro aqui, devo ter lido isso no lavabo de alguém). Com efeito, a posição meditabunda em que animalmente nos fixamos durante o grandioso momento cotidiano pode ecoar, a quem interessar, uma elegante epifania. Basta voltar os intestinos da mente a reflexões nobres; ou lendo, como indica o autor de Romance negro, ou rabiscando na parede, como manja todo imaginativo estudante.
“É no anonimato da fétida anti-Ágora que os filósofos atuais divulgam seus pensamentos”, encafifa-se o blogueiro Fernando Gouvêa em Gravataí Merengue. “Suas teses às vezes se resumem a três frases, ou mesmo uma. Ou uma palavra. Já vi um único desenho representando toda uma doutrina“, afirma o ciberpensador. “Quando alguém se põe a ler Kant ou Nietzsche, não faz só exercício de leitura, mas um profundo estudo, que não se encerra antes de bons vinte anos. Os filósofos de banheiro, cientes das urgências da modernidade líquida, sintetizam a Escolástica numa frase; a Patrística em um desenho; o Existencialismo num respingo de mijo – obviamente deliberado e sartreano.”
Relegando ao cesto de lixo as frases escatológicas ou de cunho sexual (a maioria), vejamos obras de autoria desconhecida, recolhidas em banheiros por aí:
“Se caminhar fizesse bem, os carteiros seriam imortais.”
“Casar pela segunda vez é o triunfo da esperança sobre a experiência.”
“Eu achava que era indeciso, mas agora não estou tão certo.”
“Se um cão bater em tua porta, não abras. Não é cão, pois cães não batem à porta.”
“Comecei uma dieta: cortei a bebida, cortei a comida, e em quatorze dias perdi duas semanas.”
“Deus morreu, Nietzsche também, e eu não estou me sentindo nada bem.”
Não pense o leitor que somos uns ociosos metidos a intelectuais, usando matéria-prima vil para formar um bonito discurso. Ao contrário de todo anônimo habitante de reservado, não estamos sós. “Inscrições encontradas nas paredes de Pompéia atestam a antigüidade desse comportamento. Esse tipo de material, portanto, pode ser analisado sob o ponto de vista da cultura“, anotaram Renata Plaza Teixeira e Emma Otta em Grafitos de banheiro: um estudo de gênero, tese de doutorado de psicologia na USP (1998). Existem portanto vasos comunicantes entre o ato de excretar e o ato de escrever. Se Arquimedes soltou seu Eureka numa banheira, quem sabe não foi numa fedida retrete que Platão teve o insight para o mito da caverna?
Modernamente, outros intelectuais encontram ressonâncias entre o mais baixo dos atos e as altas esferas das idéias. O filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, em ensaio famoso que pode ser assistido no YouTube (jogue “Zizek + toilets”), lê as diferenças entre as latrinas alemãs, francesas e anglo-saxãs de acordo com a tríade antropológica de Lévi Strauss: o cru, o cozido e o podre, simbolizando o natural, o cultural e o tabu.
“Num banheiro alemão tradicional“, fala o Elvis da filosofia contemporânea, “o buraco em que a coisa desaparece depois da descarga está bem na nossa frente, podendo ficar imóvel, o que facilita o diagnóstico de prováveis doenças – costume bem germânico. Ao contrário, em um típico banheiro francês, o buraco fica meio oculto, do lado de trás – assim a coisa desaparece o mais rápido possível. Já um banheiro norte-americano ou anglo-saxão [o modelo usado no Brasil] apresenta uma síntese, uma mediação entre opostos: o fundo do vaso está cheio de água, possibilitando que a coisa fique visível – mas não a ponto de poder ser inspecionada“, desenvolve, em sua alucinada prosa, o barbudo esloveno.
Mas o que isso tem que ver com filosofia? “No território mais íntimo das relações humanas, a tríade antropológica se relaciona com o modo europeu de fazer política. Hegel, entre outros, notou que a atitude do chefe alemão em relação à vida é de reflexão escrupulosa, enquanto que na maneira francesa predomina a urgência revolucionária, e, do lado inglês, o pragmatismo utilitário. Politicamente, os alemães são conservadores, os francesas radicais revolucionários, e os ingleses, liberais. Pode ser fácil para um acadêmico afirmar que vivemos em um universo pós-ideológico em que todo mundo abraça o mercado livre e uma ordem política liberal“, Zizek conclui com um floreio, “mas, no momento em que ele visita o banheiro depois de uma acalorada discussão, vai revelar toda a sua ideologia“.
Filosofia para boi dormir
Se todo banheiro é um think tank, por que não fazer o percurso contrário e apresentar a filosofia como um conjunto de idéias tão acessíveis quanto um rolo de papel higiênico? Esta foi a proposta do humorista e filósofo Gregory Bergman em, claro, Filosofia de banheiro (Madras, 2005). Ele faz uma espécie de história da filosofia, dos pré-socráticos aos contemporâneos, contada pelos olhos de uma… vaca. Em “Um boi vê os homens”, Drummond já considerava os bovinos os mais resignadamente intelectuais dos seres. Após Bergman passar um pano na biografia de cada filósofo e no contexto histórico em que as doutrinas vieram à luz, rumina para a vaquinha Mimosa as principais teorias dos últimos 25 séculos. Em itálico, as grandes idéias universais, mascadas para nós, leigos:
Mimosa, a real.
Para Aristóteles, uma vaca não seria vista como mera cópia da forma universal platônica de “bovino”. A matéria em particular (Mimosa) é entendida como potencialidade, enquanto a forma é entendida como realidade. Assim, se a forma universal de “bovino” é separável da vaca em pensamento, ela não é separável em ontologia (realidade). Isto é: a forma “bovino” não existe em um “mundo de formas” – existe, porém, dentro da própria Mimosa. Uma vaca é uma vaca é uma vaca.
Mimosa, a racional.
Kant diria que nunca poderemos conhecer a natureza de Mimosa fora de nossa experiência com ela. Por outro lado, se Mimosa surge pintada de amarelo e em seguida de azul, reconhecemos mais que apenas uma mudança na cor (isto é, uma sensação empírica). Na verdade, reconhecemos que a mesma entidade (a vaca) sobreviveu à mudança. Não importa o que a vaca amarela fez na panela: antes ou depois disso, será a mesma vaca.
Mimosa, a comunista.
Para Rousseau, a sociedade é mais bem organizada quando cada indivíduo participa de sua vontade geral. Não apenas a soma das vontades individuais diferentes, mas uma vontade que cada um compartilha para o benefício de todos. Assim, todas as vacas na sociedade de Mimosa compartilham de uma “vontade” comum, uma mesma consciência coletiva ou nacional. Para o benefício de todas as vacas, Mimosa deve desistir de sua vontade individual de votar contra o projeto de lei da “ração do capim”, uma lei que declara que cada vaca pode apenas ter 350 gramas de capim por dia. Porque todas as vacas são iguais.
Mimosa, a voluntariosa.
O princípio absoluto do mundo para Schopenhauer é a Vontade, não-espacial, atemporal e completamente sem causa. Para os humanos, a vontade procura atingir a consciência; uma vez que assim tenha sido, a vontade se torna representação ou Idéia. Essencialmente, nossa natureza é a mesma que a Mimosa; somos ambos parte do princípio universal de vida. Ambos parte da Vontade. Entre todas as vacas, eu quero ser Mimosa.
Mimosa, a Super-Vaca.
Nietzsche fala muito a respeito da “mentalidade do rebanho”. Para Mimosa alcançar a auto-realização, deve escapar do rebanho das amigas vacas e ignorar os ensinamentos morais com que elas têm sido envenenadas. Exercite seu desejo de poder. Fuja, Mimosa, e seja você mesma.
Filosofia em 140 caracteres
Se esse papo ficou muito sertanejo e você ficou com vontade de ter acesso à metafísica em roupagem mais urbana, filosofia rápida porém não rasteira, a dica é levar seu smartphone para o WC e entrar no Twitter. Muita bobagem tem sido despejada no microblog; mas o leitor paciente encontrará pérolas ali. Como os poéticos aforismas do gaúcho Carpinejar (@carpinejar):
“O mais grave anonimato é o do sábio. Não há como reconhecê-lo. Não é sádico para humilhar. Nem vaidoso para ostentar.”
“Ansioso é o que tem medo de não conseguir fazer. Precipitado é o que tem medo do próprio medo.”
“Toda alegria depende de público. Alegria que não cria ciúme é somente euforia.”
Ou, ainda, os posts de um jornalista que começou na labuta literária, veja a ironia, pichando iluminações em forma de haicai pelos banheiros do Recife, lá nos anos 80. Hoje, Xico Sá, cearense do Crato, o Parnaso nordestino, os reescreve em menos de 140 toques:
“Psicanalítico./ Que coisa feia:/ Complexo de Édipo/ com a mãe alheia.”
“Anarco-comunista./ Mais-valia,/ operário,/ se fosses menos otário.”
“Zen-budista./ Contemplo a lua/ Enquanto cago/ Na beira do lago.”
Ainda na chave humorística, o grande mestre brasileiro da concisão, Millôr Fernandes, o guru do Méier carioca, aos 86 anos segue demonstrando que, em filosofia, menos pode ser muito mais:
“O sujeito que me fará acreditar na imortalidade da alma ainda está pra ressuscitar.”
“Se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. A felicidade começa com a constatação do óbvio.”
“A falsa modéstia é o rato escondido com o rabo de fora.”
“Você não pode aumentar sua estatura. Mas pode mandar rebaixar o teto.”
“Feliz é o que você percebe que era, muito tempo depois.”
CQD: a filosofia, como o ato de aliviar-se, todo mundo pode fazer. Recomenda-se uma vez ao dia.
Update: sobre banheiros de todo o mundo, indispensável a visita ao blog Toaletes, do Bernardo Esteves, que acabo de descobrir.
Que raio de aspas são essas, com citação atribuída a mim? – com meu sobrenome grafado errado.
Não entendi, sei lá.
Abs.
Ah, sim, a frase da dieta é do Tim Maia. Não confunda “autor desconhecido” com “não conheço o autor” – e nem precisa tanta erudição assim, né? 🙂
Caralho! Agora que vi! Vc pegou isso de um texto antigo! Putamerda! 😀
AC DC
“O mais grave anonimato é o do sábio. Não há como reconhecê-lo. Não é sádico para humilhar. Nem vaidoso para ostentar.”
Adorei teu filô-cocõ.
Adorei porque cagar é humano, não Demasiado Humano.
Adorei porque filosofia vem do grego “amigo da sabedoria…” e filô-cocô, amigo do cocô. Interessante ser amigo do cocô, pois tua reflexão é literalmente escatológica. Alguns pintores também eram amigos do cocô…
enfim…é isso aí!
pois então velho…
não sei se foi o vinho, mas não encontrei o autor dda obra e/ou fotõgrafo da “latrina dentada”.
realmente, a coisa mais óbvia e ululante é a grande cagada do “Pensador”, do Rodin. há uma real semelhança entre o ato de pensar e excretar. o pensamento de alguns realmente são uma excrescência (no sentido pejorativo), mas, como todo ato fisiológico tem algo de prazenteiro, essa excressência, no seu âmago, guarda um excesso essencial. daí o pensamento ser o fumo de uma incandescência, como o sentimento o fundo irracional do sentido, essa porção que os sentidos não abarcam. bah! viajei. diz aí o nome do cara da latrina (se souberes) no xandre.brito@hotmail.com
valeu!