
Por que o Brasil dá as costas aos seus vizinhos? Existem símbolos que nos unem à América Latina? Temos mais em comum ou nada que ver com nuestros hermanitos? Pensata-playground para a Continuum , de saudosa memória
Conversando com o músico Siba, ele elogiava a semelhança entre a música do Brasil e da Colômbia – havia sido convidado para levar sua Fuloresta do Samba ao carnaval de Barranquilla. Lá se pratica folia afeita à pernambucana, calcada em blocos de rua e diversidade musical, embora tenha também desfiles meio cariocas. Pelas tantas, Siba reclamava da rara liga cultural entre Brasil e países vizinhos.
“A gente cultivou uma aversão estranha em relação à América Latina. E nos achamos muito: esse mito da supermusicalidade brasileira nos coloca como música mais rica do mundo… é uma ignorância”, afirmava o rabequeiro pernambucano. Parece que tudo o que vem da vizinhança é meio brega, inferior ao que se cria nos EUA e na Europa. Será uma vergonha da nossa herança ibérica comum?
Siba soltou uma tese: nos anos 70, tudo que fosse falado/ cantado/ escrito em espanhol teria conotação subversiva. “Dos anos 70 para cá, o Brasil não quis mais saber da América Latina porque engoliu o preconceito inventado pela ditadura. Exaltar a latinidade na mídia era sinal de subversão”, refletia o mestre. Integrar o continente sul-americano seria se indispor com o grande irmão nortista – à época orquestrando a Operação Condor, destinada a varrer todo sinal de pensamento revolucionário.
Faz sentido. É só pegar um jornal ou revista e comparar a centimetragem gasta com as culturas européia e norte-americana. Se a imprensa espelha ou estimula nosso desinteresse já é tema para outro artigo… O que se pergunta é se há algo que liga Brasil aos vizinhos fora a geografia ou o passado colonialista comum, e se existe, como apontou o músico Siba, uma afastamento natural da simbologia brasileira em relação à cultura latino-americana – conforme sugerido pelo próprio desenho da América do Sul, em que o Brasil parece dar as costas ao seus vizinhos.
El hombre muerto e a musa mexicana
Em “Soy loco por ti América”, canção de 1968, Caetano esboçava o retrato do continente. Como não podia dedurar o nome do guerrilheiro Che Guevara, recém assassinado na Bolívia em 1967 (“El nombre del hombre muerto/ Ya no se puede decirlo, quién sabe?/ Antes que o dia arrebente”), Caetano resolvia a questão poetizando: “El nombre del hombre es pueblo”.
Que povo identifica cada nação da América Latina? Todos e nenhum. Por isso um argentino barbudo que liderou revolução em Cuba e foi morto na Bolívia pode ser um rosto possível. E se procurássemos por uma mulher para simbolizar nuestra tierra? Não pensemos em Nossa Senhora, puer fabor. Da de Guadalupe, índia mestiça, à de Aparecida, nossa Virgem negra, a mãe de Cristo é a imagem que une os povos mais católicos do planeta. Mas não creio que as mulheres latino-americanas sejam hoje assim tão católicas: é clichê tão recorrente quanto o da sexualidade vulcânica de nossas irmãs y hermanas.
Em lugar dessa sexualidade midiática, turística e exagerada – e o kitsch é adjetivo que nos folcloriza – , privilegio o sensualismo como força política, não-sexual. Parece que nós latinos gostamos mesmo de nos pegar, de nos tocar, nos cheirar, de chegar junto. Distancio a sensualidade de sexualidade: assim como quem dança salsa a noite toda com una chica pode só ganhar um beijinho na despedida, nem sempre as cachorras em suas poses safadas num baile funk estão prontas para o crime. É mais jogo que verdade tropical.
Nem Virgem de Guadalupe ou de Aparecida ou de Copacabana, nem as pudicas deusas do sexo de Copacabana nem as capitalistas jineteras de Havana. A América Latina como o Viagra do mundo é imagem tão equivocada quanto a de Evita Perón como Mãe dos Pobres. Do meu ponto de vista, toda mulher latino-americana é meio Frida Kahlo: trágica e apaixonada, libertária e conservadora, feia e bonita ao mesmo tempo. A mulher latino-americana é uma improvável.
Quizas, quizas, clichês
Falar em clichê, tem que parar com esse negócio de carimbar o continente pelo negativo. Da preguiça do povo que se perde em siestas y fiestas às repúblicas bananeiras trambicadas por ditadores, a carnavalização da latinidade funciona mais como método turístico que como identidade cultural. No mercado da arte, transformar em produtos a esculhambação da política, o culto do machismo, a paródia dos sincretismos religiosos e a inserção de traços de paganismo e elementos tragicômicos populares típicos vende bem a imagem da América Latina como o Éden do subconsciente planetário.
Nos anos 60, o boom literário puxado pelo Realismo Fantástico de García Márquez, Guimarães Rosa e Julio Cortázar impôs uma arte de altíssimo nível. Seu contraponto ideológico, porém, reforçou o subtexto de que no continente o intuitivo predomina sobre o cerebral, o espontâneo sobre o premeditado. À ambição por habitar um paraíso terrestre opõe-se o desleixo com o planejamento: somos uns irracionais. Assim, a arte da gambiarra e o senso de improviso, o Jeitinho, expressam, na chave popular, essa falta de apelo à razão, à organização.
Isso tudo acaba mal. Quando a política não resolve a equação do subjacente ódio à autoridade – desde sempre personificada nos colonizadores –, que se caracteriza de um lado no desafio ao conceito de ordem, e, de outro, no temor à “otoridade”, a solução é a prática do massacre. De Canudos a Iquiques, da Violencia colombiana aos desaparecidos na Argentina.
Prefiro os latino-americanos que separam o folclore do subdesenvolvimento, como o escritor Roberto Bolaño. Chileno, fundou um movimento literário no México e se tornou ícone da literatura na Espanha. Sua obra paradoxalmente tão visceral quanto matemática dinamita as falsas fronteiras que estabelecem a latinidade como território do irracional. Simboliza tanto os escritores latino-americanos exilados quanto os seres globalizados órfãos de chão. Não é à toa é o autor mais falado no mundo.
Em recente viagem à Colômbia, fiquei pensando no que nos une. De todos os países latinoamericanos, a Colômbia talvez seja o mais próximo do Brasil em termos de miscigenação – lá, como aqui, a mistura de partes iguais de etnias européias, africanas e autóctones funcionou, resultando em um povo bonito, diversificado e surpreendente.
Um povo amante do alto contraste, simbolizado pela Serra Nevada de Santa Marta, a maior cadeia de montanhas do mundo à beira-mar. Uma pátria tão amante do fatalismo quanto a mexicana (“Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”) ou a argentina (“el mundo fue y será una porquería”, canta o tango “Cambalache”), que produz mundialmente famosos como García Márquez e Fernando Botero e gênios do crime como Pablo Escobar.
Do fatalismo latino-americano, cheguei no abismo como símbolo. Não o buraco em si – mas a vertigem de descer e de subir. Embora o rei da arte que nos une no continente, o futebol, seja o brasileiro Pelé, nunca houve jogador com tanta fome de abismo quanto o argentino Maradona. Este, porém, foi ultrapassado por um outro obcecado por ressurreições e mortes, títulos e vexames: Ronaldo Nazário. Assim, se é para escolher um símbolo latino-americano, fecho com o Fenômeno, enquanto está em alta – e, por favor, sem aquele ridículo cabelo do pentacampeonato.
no concuerdo!
besito
tt
Olá, Ronaldo. Muito bacana o post sobre o Rodrigo de Souza Leão. Você fez um ótimo apanhado dos poemas dele, intercalados com textos precisos. Abraços.