>> Comentário sobre Iniciantes, de Raymond Carver, publicado ontem no Estadão. Segue a versão sem cortes [por falta de espaço no jornal, evidentemente…]
A voz do dono
Reedição dos contos de Raymond Carver traz o texto integral de suas narrativas e joga luz sobre o trabalho excessivo de um editor [ou a excessiva complacência de um escritor]

Já pensou descobrir que Capitu se chamava Picaxu? Ou que, antes da publicação final, a travessia do Liso do Sussuarão, em Grande Sertão: Veredas, demorava cinco vezes mais, de acordo com o imaginado por Rosa? Ou que Josef K foi um nome inventado por um editor de Kafka – que na verdade teria chamado seu personagem de Francis Q? Ou que o conto “O cobrador”, como o conhecemos, é só metade do que escreveu realmente Rubem Fonseca?
É mais ou menos essa a sensação ao ler Iniciantes (Companhia das Letras, 296 págs.), antologia que traz os contos de Raymond Carver conforme eles foram originalmente concebidos – antes de conhecerem a tesoura e a caneta do editor Gordon Lish. Ou melhor dizendo, o cutelo: há narrativas fatiadas em 70%, personagens renomeados, frases inventadas, ritmo do texto alterado… Tudo em nome do minimalismo de Lish.
Antes, a história por trás das estórias de Carver – conhecido por inspirar o roteiro de Short cuts, de Robert Altman. Nascido em 1939, Carver foi um escritor cronicamente duro, que oscilou sua vida entre o alcoolismo e pequenos trabalhos. Certa vez conheceu Gordon Lish, editor em ascensão, e ficaram amigos. Carver mostrou seus textos ao escritor, professor de escrita criativa e editor, que se surpreendeu com sua literatura minuciosamente realista. Iniciaram uma correspondência literária em que Carver aceitava dicas do amigo – um dos primeiros a publicá-lo, em revistas como Esquire.
Porém, ao mesmo tempo em que Carver era estimulado pelo editor, contrariava-se com as crescentes intervenções em seus textos. Logo Lish saiu da revista – onde se autonomeava “Captain Fiction” –, e foi dirigir a prestigiosa editora Alfred A. Knopf, para onde levou os textos do amigo.
Ao ver a edição de What we talk when we talk about love (Do que falamos quando falamos de amor), base deste Iniciantes, Carver tomou um susto. Havia nos contos mudanças sutis – e cortes radicais. Pouco antes de a prova final ir para a gráfica, pediu ao amigo que interrompesse o processo. A New Yorker, em reportagem publicada em 2007, conta que Carver, então se recuperando do alcoolismo (ele encerrou a vida em 1988, aos 51, limpo há quase 10 anos), sentia-se “confuso, cansado, paranóico e com medo.”

Além da mulher, a poeta Tess Gallagher, outros amigos haviam lido seus contos antes de terem passado pelo açougue de Lish. Se o livro saísse “daquele jeito”, Carver escreveu a Lish, sentia que talvez nunca pudesse escrever de novo; se brecasse a publicação, talvez perdesse a amizade do editor. O escritor temia sobretudo o retorno àqueles “dias negros” não muito tempo atrás, quando estava na lona. “Isso está me deixando no limite da minha sanidade”, lamentou-se a Lish. O mui amigo respondeu mostrando um contrato assinado por Carver dando ao editor controle sobre o texto final.
O livro foi publicado – e imediatamente aclamado pela crítica. No Washington Post, Doris Betts elogiou Carver pela “precisão vernacular, a pungência destilada, o foco em uma visão implacável da vida.” Em abril de 1981, o livro parou na capa do Times Book Review, raridade para uma antologia de contos, com crítica de Michael Wood: “sua escrita é plena de quases e silêncios. Carver inventou um país próprio. Em seus silêncios, foi feito um acordo sobre coisas que não poderiam ser ditas.” Muitas dessas coisas tinham a ver com os cortes de Lish.
Carver ficou numa sinuca de bico – e, para se livrar do conflito, que antigamente o levava à bebida, resolveu deixar pra lá. Continuou escrevendo suas histórias ordinárias sobre losers da classe média baixa californiana, em textos chapados, privados de sentimentalismo ou psicologismo, porém poderosamente detalhados, em que subrepticiamente ocultava-se uma tensão insuportável não raro explodindo em horríveis epifanias – jamais julgadas pelo narrador, o que tornam ainda mais impactantes seus relatos.
Lish chamava a isso “minimalismo”, procedimento que tem mais a ver com seu estilo literário do que com Carver – que nunca ficou satisfeito com o trabalho de amigo, e que nunca viu publicados seus contos conforme originalmente concebidos.
Até que a viúva de Carver, Tess Gallagher, começou a chiar na imprensa. Temia que o marido fosse conhecido mais pela verdade do editor que do autor. De quem é o texto, afinal? Os acadêmicos William L. Stull e Maureen P. Carroll recuperaram os manuscritos de Carver (mais de 50% do trabalho original havia sido limado da edição de Lish) mediante a transcrição das palavras datilografadas por baixo das supressões e alterações feitas à mão pelo editor. A edição chegou ano passado aos EUA. Lish, hoje com 75 anos, recusou-se a comentar o novo livro, publicado agora no Brasil.
O interdito do não-dito
E o cotejamento dos originais com a edição de Lish é espantoso. Tomando-se somente um conto fundamental de Carver, “Diga às mulheres que a gente já vai”, a sensação é nada menos que de revolta, traição, assalto, quero meu escritor de volta. No Brasil, o conto saiu em 1994 em Short cuts – Cenas da vida (Rocco), traduzido pelo mesmo excelente tradutor que ora verte a prosa seca de Carver ao português, o romancista Rubens Figueiredo (Barco a seco). Sete páginas a menos!
Toscamente, Lish fez o que no jargão jornalístico se chama “cortar pelo pé” – editar um texto a partir do fim, expediente de editores preguiçosos e medíocres. Foi arrancada toda uma seqüência, perturbadora pela tensão sexual, suspense emocional e acúmulo de pormenores grotescos – essencial para a compreensão física de um ato espantoso, uma negra iluminação, que não se contará aqui. Comete-se contra o texto violência semelhante à perpetrada em relação a uma personagem do conto.

É forçoso afirmar, no entanto, que em alguns momentos Lish acertou. Em outro extraordinário conto, famoso pelo não-dito (e o alusivo, a entrelinha e o subentendido são habilidades aprendidas com Anton Tchecov, maior ídolo literário de Carver, que usou o contista russo como personagem do último conto que escreveu, “Errand”), “Iniciantes”, uma conversa aparentemente banal entre dois casais, Lish cortou páginas de diálogos que, devo reconhecer, havia passado os olhos mais rápido ao ler o original.
Por ralentarem o ritmo, tais diálogos são firulas essenciais à dinâmica e dramaticidade do texto, trazem nuances e espasmos sugestivos à psicologia dos personagens, porém prejudicam o impacto do final. Rudemente, é como se tirássemos de Garrincha meia-dúzia de pedaladas antes de chutar a bola direto ao gol; como se Garrincha tivesse simplesmente disparado em direção à meta.
Em outras palavras, mesmo para o mal ou para o bem, Lish alterou o ritmo de jogo de Carver – e se tornou um (mas na verdade jamais poderemos saber) desnecessário intermediário de uma obra de arte exata justamente por conta de seus descaminhos. Para quem somente agora tenha acesso a Carver e fique pela primeira vez maravilhado por uma escrita tão simples quanto redentora em sua opaca e oca humanidade, talvez fosse recomendável esquecer essa polêmica. Que fique o dito pelo não-dito: a arte de Carver já é suficientemente silenciosa – e sempre resistirá a um silêncio roubado.
O luxo de Lish
“Eu aviso vocês. Já estive no hospício duas vezes e na cadeia uma. Façam o que eu mando, não façam o que eu faço. E anotem aí: ‘Nunca seja sincero – sinceridade é a morte da escrita’.” Assim conta David Bowman sobre as aulas que teve com Gordon Lish, na revista Salon.
O excêntrico editor de Raymond Carver é um escritor tão respeitado (autor do singular romance Peru) quanto temido – e por vezes ridicularizado: entre suas fanfarronadas, está o fato de ter acreditado piamente na existência de Dean Moriarty (personagem de Jack Kerouac na verdade inspirado em Neal Cassady) e em em publicar textos atribuídos a J.D. Salinger (foi obrigado a se retratar sob pena de tomar um processo).

Aos 75 anos, Lish não consegue falar mais de três frases seguidas sem mencionar o próprio nome (conforme recente entrevista à The Believer). No auge da carreira, ocupou espaços importantes como a editoria de ficção na revista Esquire (onde tomou para si o cafona epíteto “Capitão Ficção”), e, à frente da Alfred. A. Knopf, editou Carver e Don DeLillo.
Sobre eles, disse: “Lançar DeLillo é fácil; quero ver publicar Carver”, menosprezo que muitas vezes confundiu críticos e leitores – que até a publicação de Iniciantes, acreditavam ser Lish o verdadeiro responsável pela escrita do autor de contos como “Vizinhos”. Graças aos esforços da viúva e de amigos de Carver, hoje percebemos que Lish, como editor, segue sendo um bom escritor. Como ser humano, as opiniões são controversas.
Anotação: uma tese solta, para quem quiser pegar
Editor bom é como um bom relojoeiro: seu trabalho deve ser tão invisível quanto indispensável. Existem muitas nuances entre este elogiável modelo – do editor como um sujeito que ajuda o autor a focalizar sua própria escrita –, o paradigma do editor intrometido, tipo Gordon Lish, e o exemplo do editor preguiçoso, que simplesmente apanha os originais e os envia à gráfica.
Mas nem sempre o material editável é de primeira. E quando o autor não é assim um Carver, porém tem um editor amigo que levanta sua bola e o faz parecer um craque? (O futebol sempre explica tudo.) Um editor leal e criativo pega um jogador de físico excepcional mas de futebol apenas voluntarioso e o faz bater 200 cruzamentos e chutar a gol 200 vezes, manhã, tarde e noite. Depois de um tempo, o jogador vira um Cafu.
Porém, embora nem todo editor seja um Telê Santana, muitos assim se sentem. E tem muito Cafu por aí que nega até o fim a existência de um Telê na sua escrita.
A vaidade, a vontade de poder de alguns editores e a lassidão e incompetência de muitos autores colocam nas livrarias títulos bastante diferentes de sua concepção original. Se temos dúzias de Cafus pelas prateleiras, o leitor nem sempre é avisado que aquele futebol foi longamente maturado por um técnico: crê que aquela arte já veio à luz assim, pronta. Agora que vivemos uma espécie de lusco-fusco da autoria, seria interessante uma pesquisa jornalístico-acadêmica que identificasse o instante preciso em que o editor X passa a ser co-autor do livro Y.
A pesquisa deveria ser meticulosa e corajosa – não se negando a aventar a deduragem do medalhão que abriu as pernas às ingerências de seu estimado editor. Muitas vezes, o pesquisador irá descobrir que certo livro respeitado pela crítica, babujado por Flips, incensado em saraus e multiplicado em listas de best-seller foi, vá lá, 60%, 65% escrito de verdade pelo nome impresso em sua capa.
Cena 1. Eu tinha 20 e poucos anos e chefiava o departamento de propaganda de uma grande editora. Toda sexta-feira ia à redação da então segunda maior revista semanal do país apanhar as notícias, para criar um anúncio. No começo, pegava as hardlines direto com o diretor de redação ou o redator-chefe. Mais à vontade na redação, passei a catar direto da impressora os textos que sairiam na revista, mas ainda não haviam sido editados nem revisados. Lembro como me assustei pela quantidade absurda de erros primários, equívocos gramaticais sérios, repetições de palavras e displicências estilísticas daqueles textinhos…
Tudo aquilo seria reescrito; ou seja, os textos sob assinaturas bacanas, de nomes importantes da imprensa (metade deles diplomados), haviam sido cozinhados antes de servidos ao leitor – crus, seriam intragáveis. Em minha ingenuidade, até então acreditava que todo bom jornalista deveria ter um texto final irrepreensível; para mim, todo jornalista era um pouco Nelson Rodrigues. Não era bem assim…
Cena 2. Em uma mesa formada por autores, editores e jornalistas, um falante editor detalhava o processo de criação de uma reconhecida “voz da nova geração” – ocupante de várias primeiras páginas na mídia nacional, traduzido em alguns países, finalistas em alguns prêmios, os direitos para o cinema comprados por uma importante produtora. No caso, o “processo de criação” era vivamente partilhado pelo editor, que alardeava como teve de trocar “nós vai” por “a gente vamos” para “dar mais consistência estilística” (exemplo fictício, por supuesto).
Ele cortava, mudava parágrafos de ordem, invertia tempos verbais, socorria pronomes, advérbios e adjetivos, sugeria nomes para personagens (“tem um que agora ficou com o nome da minha avó!”, ria), pedia que o autor mudasse o final de alguns capítulos, e, depois de tudo pronto, ainda cortou uns 30% da fatura. “Deu um trabalhão, mas ficou essa maravilha aí”, contava o editor. Me segurei para não perguntar por que o fanfarrão não se havia incluído na foto da orelha.
O Twitter nos ensina que vivemos a Era dos Editores. Só sobrevive quem recortar a massa de informação e encontrar “o” sentido. (Deus, caso exista, não deve passar de um habilidoso mestre no cut-copy-paste.) No jogo moderno, a romântica idéia do autor como dono de 100% do que lhe é imputado não passa mesmo disso – de idéia romântica. Mas falta avisar os leitores. Eis aí uma boa tese: até onde vai a mão do editor na literatura brasileira contemporânea?
Infelizmente, ocupado demais tesourando minhas próprias coisas, não vou ter tempo de tocar mais este projeto… Fica a dica.
Gostei do texto sobre o Carver.Já a “anotação”, deixou a desejar.Por que você mesmo não escreve essa tese?Deve ter muito material,pelas indiretas.”Segredos dos editores”…venderia bem.
Cuide-se.
um beijo,
tt
Tess Gallagher é a cara de sua mãe mais jovem.