Tsunami prateado

Retrato de Amis quando angry young man

Para o romancista inglês Martin Amis, o avanço da medicina e o aumento da expectativa de vida não contemplam a difícil questão da senilidade: contra a maré de grisalhos, ele defende a criação de “cabines de eutanásia”. Amis acaba de lançar o livro A Viúva Grávida, em que um homem de 60 anos observa seu passado durante a revolução sexual. Falando à ALFA #11, Amis afirma: “Não consigo pensar em nenhuma razão para prolongar a vida depois que a mente se foi”

Tão logo completou 61 anos, Martin Amis mal punha o pé para fora de casa que já escutava xingamentos e gozações dos vizinhos. Satirista brilhante, um dos grandes romancistas ingleses vivos, perdeu totalmente o respeito dos sexa, septa ou octogenários de seu bairro quando, há dois meses, fez um exercício de futurologia no jornal The Guardian em que evocava a imagem do “tsunami prateado”.

“Daqui a alguns anos haverá uma população de velhos muito senis, como uma invasão de imigrantes horríveis, fedendo pelos cafés e restaurantes”, disse. E o que fazer com os velhotes? Simples: Amis sugere “haver um estande de eutanásia em cada esquina, onde você pode pegar seu martíni e sua medalha”. Hoje existem cerca de 900 mil links relacionando “Amis + Eutanásia” no Google. À ALFA, falando por telefone de sua casa em Londres, mastigando vorazmente um chiclete, seu tique característico, Amis admite ter tirado onda. “As pessoas extraem a frase do contexto. Mas, sinceramente, não quero pisar com cuidado neste tema, nem editar a mim mesmo. Não foi um ataque aos velhos: eu estava fazendo uma digressão sobre as complexidades legais. Mantenho meu ponto de vista: você precisa ter meios de dar um termo à sua própria vida.”

Mas e a transcendência? Além das tragédias já ocorridas em sua vida – morte da irmã, do pai, de amigos –, ele vive de perto uma fatalidade em curso: o câncer no esôfago de um seus parceiro de longa data, Christopher Hitchens. “Em matéria de transcendência, eu estou à direita de Hitchens”, brinca ele – Hitchens é conhecido por sua controvertida profissão de fé no ateísmo. Não é na religião que Amis busca transcendência, e sim na arte em si – em sua voraz entrega ao trabalho: mal entregou as caudalosas 600 páginas de A Viúva Grávida (Companhia das Letras), já está imerso em outro romance.

Parece uma contradição, mas mesmo a defesa que este sexagenário faz do direito à eutanásia é vitalista – e ele não se coloca fora do assunto. Quando se comenta que seus comentários sobre o “tsunami prateado” tenham ofendido idosos, Amis – que já é avô – rebate, ironicamente: “Bem, eu mesmo não estou a milhões de milhas longe disso”. Ele lembra o quanto é pessoal esse drama ao citar a filósofa irlandesa Iris Murdoch, uma amiga que estava desesperadamente doente e tentou ir à Suíça para procurar a organização Dignitas, que oferece cuidados paliativos.

“No fim, ela não conseguiu; acabou sendo vencida pela burocracia. É muito terrível sentir que a vida pode ser algo de que você não consegue escapar, como uma prisão. Iris era uma amiga que eu amava. Ela era maravilhosa. Lembro de conversar com ela quando soube de sua doença e ela disse: ‘Entrei num lugar escuro’. Até mesmo a consciência da perda se vai, entende. Você não sabe mais que desperdiçou um dia assistindo Teletubbies. A coisa simplesmente desaparece.”

Amis comenta que seu padrasto morreu “de modo horrível”. “Ele sempre pensava que estava melhorando, mas não melhorou, e a negação da morte foi sua grande maldição. Francamente, não consigo pensar em nenhuma razão para prolongar a vida depois que a mente se vai. Você não tem mais dignidade.” Ele admite que, por gozar de boa saúde mesmo aos 60 anos, a morte ainda não é um assunto tão presente. No entanto, se assusta ao pensar que pode não haver uma “saída civilizada” para si próprio.

“A força das religiões acabam minando e rejeitando a mera discussão desta ideia. Mesmo assim, acredito que a eutanásia é inevitável. Seria uma boa ideia se o suícidio medicamente assistido fosse parte da vida. Claro que em termos legais é algo bastante difícil de lidar, mas deveríamos tratar o assunto com responsabilidade”, recomenda. É curioso que, no mesmo intante em que ele defende a eutanásia, cientistas e filósofos estejam oferecendo a ideia de que o homem pode – e até mesmo deve – viver para sempre. Contudo, para um materialista como Amis, o simples conceito de Singularidade está fora de questão. “Ser imortal é uma punição mitológica”, ele ri. “O problema com a imortalidade não é que sua vida nunca termina – e sim, que ela nunca parece realmente começar!”

Amis em 2011

Afastando a lúgubre eutanásia da conversa, voltamos a seu livro. Parcialmente autobiográfico, A Viúva Grávida retorna ao início dos anos 70, auge da revolução sexual, para focar um grupo de jovens intelectuais em férias num castelo na Itália. Um deles, um certo Keith, é o alter ego de Amis – nasceu em 1949, tem pouco mais de 1,70m, tem fascínio e temor por mulheres mais altas e uma irmã muito semelhante à do autor, descrita por ele como “patologicamente promíscua”. Embora o tom irônico de Amis esteja afiado como nunca, um indisfaçável amargor corrói a linguagem do meio para o fim da narrativa, quando ele enfoca o por vezes medíocre e triste fim de seus personagens – tão libertários nos anos 60, tão pragmáticos e frustrados nos anos 00. Mesmo relatando com cruel objetividade o calvário da própria irmã, uma “vítima da revolução sexual”, Amis segue defendendo as viscerais mudanças nos costumes ocorridos nos anos 70 – a Década do Eu.

“A revolução foi inevitável, abriu possibilidades à humanidade. Se você ler os romances dos anos 20, percebe que havia muita angústia, travação, uma bolha de frustração sexual presente em tudo”, diz. À parte a liberdade sexual, Amis afirma ser grande admirador da pornografia. “Ela expõe uma sugestão da revolução sexual: deixar emoções ao largo do que acontece com nossos corpos. Hoje você pode dizer que o sexo é melhor somente porque está menos conectado com as emoções. Além disso, a revolução sexual desconectou de uma vez por todas o sexo da procriação. Assim, a pornografia contemporânea exclui qualquer sentimento do sexo. Isso é algo que aprendemos não na escola nem dos nossos pais – mas diretamente da pornografia. Agora, quais as consequências disso, ainda não posso aferir”.

Como sempre ocorre na obra de Amis, A Viúva Grávida é repleto de descrições de cenas de sexo. Ele não tem medo de cair no ridículo – ou mesmo vergonha? “É quase impossível falar de sexo em literatura, porque é indescritível”, diz. “Muitos grandes escritores falharam na missão. Henry James dizia: ‘quando você conta um sonho, perde um leitor’. Falar de sexo é como contar seu sonho. Não é algo universal, que se pode contar para alguém comunicando exatamente a mesma sensação. Sexo tem a ver com suas preferências, medos, sua história freudiana… é pessoal. Já o sexo pornográfico é recreativo, não tem a ver com emoção: por isso pode ser descrito”, analisa.

Durante uma cena sexual, tudo pára. Não há uma ação verdadeira durante o sexo. Nenhum desenvolvimento é possível enquanto aquilo está sendo descrito. É como parar o relógio e entrar em uma digressão. No meu livro, quando o sexo aparece, ele é meramente pornográfico – porque não há emoções”, explica. A divisão entre sexo e emoção parece ter feito bem à forma como Amis descreve as mulheres em sua literatura atual. Ele admite que, depois de uma crise de meia-idade nos anos 90, descoberto a “pureza do amor”, do “amor sem ego” – e as mulheres, que eram tratadas como troféus pelo jovem Amis, agora se tornaram especialmente redentoras.

Por falar em redenção, inevitável concluir o papo com Amis citando a morte de Osama bin Laden. Seu fascínio pelo Onze de Setembro e sua mão pesada ao discutir o terrorismo o tornaram ainda mais controverso: em sua palestra na Flip, na Paraty de 2003, Amis afirmou que “a comunidade muçulmana terá de sofrer até colocar sua casa em ordem”. Por que o fascínio com a Al-Qaeda? “Nunca esperei que um evento daquela magnitude acontecesse na minha vida”, diz. Ele vê o islã como uma tirania, tal como o nazismo que dissecou em A Seta do Tempo ou o stalinismo que atacou em Koba the Dread (não traduzido no Brasil). Qual foi a sensação que teve ao saber que Osama havia sido morto?

“Admito: me senti satisfeito quando bin Laden morreu. Todo mundo sabe que seria impossível julgar Osama. A história nunca terminaria, um julgamento duraria no mínimo 5 anos. Agora, sobre a legalidade do assassinato… você precisa pensar que foi uma operação arriscada, um momento tenso, talvez Osama tivesse uma granada… De todo modo, ele foi responsável pela morte de 3 mil pessoas; matá-lo não é algo de que alguém se arrependeria.”

Acelerando a sua mastigação de chiclete, Amis dá sinais de que o papo se encerraria – não sem antes agradecer polidamente a conversa e prometer voltar ao Brasil em 2012: “Adorei Paraty, e meus filhos sempre vão ao Rio de Janeiro e voltam falando maravilhas”, afirma. Próximo livro? “O nome provisório é Lionel Asbo. Uma história satírica, um romance curto. É sobre um criminoso muito violento que ganha muito dinheiro na loteria. Estou quase no fim…” No fim do romance, torcemos.

TRECHO

“É assim que é. Em seus quarenta e algo, você tem sua primeira crise de mortalidade (a morte não vai me ignorar); e dez anos depois você tem sua primeira crise de velhice (meu corpo sussurra que a morte já está de olho em mim). Mas algo acontece quando você está no meio disso. À medida que seu 50o aniversário se aproxima, você tem a sensação de que sua vida está se estreitando, e vai continuar a se estreitar, e ficar tão magra até desaparecer. E você às vezes diz a si mesmo: Que venha rápido. Que venha bem rápido. Em alguns momentos, você pode querer fazer uma forcinha para que venha mais rápido. Tipo Ueba! ISSO sim é RÁPIDO PRA CARALHO!!!… Mas então os cinquenta vêm e vão, e os 51 e os 52. E a vida se complica de novo. Porque existe então uma enorme e insuspeita presença em seu ser, como um continente por ser descoberto. É o passado.” – Martin Amis, em A Viúva Grávida

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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