Selvagens da bicicleta

A bicyclist dreams of people hopping over a fence on their bikes, counting them to fall asleep

Hoje os ciclistas estão onipresentes, graças à uberização do trabalho, que transformou os entregadores de comida de bicicleta no primeiro degrau do delivery – primeiro você é entregador movido a suor, depois é motoboy, aí vira motorista de aplicativo e finalmente você se torna condutor de rabecâo (se tiver sorte). Essa visibilidade melhorou um pouquinho a atenção que a sociedade dá aos ciclistas. Mas, dez anos atrás, não era assim…

[Reportagem publicada originalmente na revista Alfa, ano de 2011]

SELVAGENS DA BICICLETA

Os cicloativistas são: (a) punks arruaceiros? (b) vítimas do trânsito? (c) mauricinhos arrogantes? (d) naturebas anti-carros? (e) nenhuma das anteriores?

POR RONALDO BRESSANE   CARTUNS ANDY SINGER

       Montada em uma verde bicicleta de 10 marchas, Lady Godiva desce a rua Augusta cantando “Mais amor, menos motor”. Veste meias azuis até os joelhos, uma máscara dourada de carnaval veneziano – e mais nada. A nudez superbranca e o penteado moicano exacerbam sua atitude combativa, aditivada por gritos roucos e mensagens pintadas no corpo: Get Nude / Keep Calm (Fique Nu / Mantenha a Calma). O motorista do Audi, preso no trânsito, lhe manda a letra da clássica canção dos Raimundos: “Eu queria ser/ o banquinho da bicicleta…”, etc. Lady Godiva devolve a gaiatice com um convite: “Você aí parado/ Vem ficar pelado!”. E pedala sorrindo sem querer ouvir a resposta, seios empinados, uma latinha de cerveja na mão, flores no bagageiro. Lady Godiva, que pede para não divulgar seu nome, é uma das mais chamativas participantes da Pedalada Pelada. No evento, que aconteceu na nublada noite de 18 de março em São Paulo, cerca de 300 ciclistas desfilaram nus ou seminus pelas ruas da zona oeste, entre avenida Paulista, Augusta, Jardins, Ibirapuera, Pinheiros e Vila Madalena. Apesar do viés carnavalesco, o clima da bicicletada era tenso: afinal, as relações entre ciclistas e não-ciclistas andam um tanto desequilibradas.

       O estopim foi o atropelamento de participantes da Massa Crítica, em Porto Alegre, 25 de fevereiro. Irritado com a lentidão do trânsito causada pela bicicletada, o bancário Ricardo Neis investiu com seu Golf preto para cima de dezenas de ciclistas, provocando um strike em série. O chocante registro em vídeo correu o mundo. Um dos efeitos colaterais do ato – que rendeu a Neis dezessete denúncias de tentativas de homicídio – foi chamar a atenção da sociedade para o movimento cicloativista. Por todo o país se organizaram bicicletadas para condenar o crime, que, num primeiro momento, chegou a ser qualificado pela polícia como “acidente”. Refletindo o eterno ciclo ação/reação do trânsito, a onda de bicicletadas encontrou ressonância nada festiva em algumas vozes. Politicamente incorreta, a colunista Barbara Gancia soltou a provocação em texto publicado na Folha de S.Paulo logo após o incidente de Porto Alegre, em que condenava a bicicleta como transporte viável em São Paulo e chamava os cicloativistas de meninos mimados, donos de bicicletas importadas caríssimas: “Querem se passar por movimento popular, mas não conseguem esconder sua fuça elitista e seu flagrante desrespeito às leis de trânsito toda vez que sai em grupo alegremente pela noite, iluminadinho e barulhento, gritando palavras de ordem, brincando de maio de 68 de roupa spandex, se achando moralmente superior e atravancando os semáforos”.

       Barbara Gancia não está só. Um passeio por sites de relacionamento como Orkut e Facebook encontra dezenas de comunidades cujos tópicos vão de “Odeio ciclistas” a “Lugar de bicicleta é no parque”. Em termos gerais, quem se manifesta contra o uso da bicicleta exibe cinco argumentos:

       a) as vias das grandes cidades são território exclusivo para o automóvel;

       b) as bicicletas devem ser usadas em parques ou, no máximo, em ciclovias segregadas;

       c) ao contrário do que afirmam, os defensores do uso da bicicleta são originários de uma elite cultural e econômica;

       d) os cicloativistas são eco-chatos que detestam a tecnologia moderna e lutam contra o capitalismo;

       e) os cicloativistas são arrogantes, desqualificam quem faz uso de automóvel, dirigem perigosamente e se consideram seres superiores.

       Afirmações fortes, quase lugares comuns. Mas, como diz o velho e bom clichê, todo clichê tem um grão de verdade – e cada um dos cinco pontos acima não está exatamente errado. Qualquer um pode ver que nas ruas desenvolve-se uma guerra por espaço, entre carros, táxis, motos, caminhões, bicicletas e pedestres, e como em toda guerra, para lembrar outro clichê, a primeira vítima é a informação. De perto, é sempre dever nuançar a verdade. E por falar em vítimas, alguns dados são incontornáveis. Apenas duas semanas após o atropelamento dos 17 ciclistas da Massa Crítica, outros dois foram atropelados em Porto Alegre – o motorista fugiu. Na mesma semana, o jornal Folha de S.Paulo cravava a manchete: “Com ‘bicicletadas’, ativistas do ciclismo declaram guerra aos ‘monstroristas'”. A reportagem foi intensamente criticada na internet por diversos grupos de cicloativistas. Tudo o que o cicloativismo não quer é falar em guerra.

       Contudo, toda guerra tem seus mártires; não é diferente no front do cicloativismo. No caso da Bicicletada paulistana, atende pelo nome Márcia Regina de Andrade Prado, que foi atropelada por um ônibus na avenida Paulista em pleno meio-dia, em 14 de janeiro de 2009. Não é uma exceção – a cada 6 dias um ciclista morre atropelado em São Paulo; foram 69 em 2008, 61 em 2009. (Como comparação, a cada ano morrem 40 mil pessoas e 440 mil sofrem acidentes automobilísticos no Brasil.) Até ter o crânio esmagado pelo pneu traseiro direito de um ônibus articulado, Marcia Regina era signatária do Manifesto dos Invisíveis, que propõe a criação de ciclofaixas, e não de ciclovias, na cidade. “A insistência em afirmar que as ruas serão seguras para as bicicletas somente quando houver milhares de quilômetros de ciclovias parece a desculpa usada por muitos motoristas para não deixar o carro em casa”, escreve o manifesto. ‘”Só mudarei meus hábitos quando tiver metrô na porta de casa’, dizem, enquanto continuam a congestionar e poluir o espaço público, esperando que outros resolvam seus problemas, em vez de tomar a iniciativa para construir uma solução.”

       Como homenagem, Márcia Regina ganhou uma bicicletada de 300 participantes e uma ghost bike – uma bicicleta branca acorrentada a um poste, na Praça do Ciclista; a ghost bike é um ritual replicado por cada Massa Crítica do planeta a cada vítima fatal. Mas a maioria dos ciclistas atropelados acaba ganhando somente a atenção de familiares e amigos – e o esquecimento. Afinal, a maioria dos ciclistas de qualquer cidade não participa de nenhum movimento politizado como este – que surgiu em San Francisco, EUA, em 1992, com a movimentação de 60 couriers ciclistas (já chegavam a 1000 participantes na Massa Crítica de1993).

       Um de seus fundadores, Chris Carlsson, descreve no panfleto Como Criar uma Massa Crítica as ideias que devem nortear uma bicicletada. O texto espalhou-se por EUA, Europa e América do Sul, especialmente em Seattle, Portland, Nova York, Berlim, Paris, Bolonha, Barcelona, Bogotá, Buenos Aires, São Paulo – 300 cidades replicam o procedimento clássico da Massa Crítica (no Brasil é chamado de Bicicletada; há 40 no país). O estatuto é um blend curioso de regras rígidas e anarquia controlada. Por definição, jamais existe um líder numa Massa Crítica. O objetivo é criar uma “coincidência organizada”: pessoas andando de bicicleta em massa, fazendo um coágulo semovente no trânsito, como expressão completa de reinvidicar o respeito ao seu espaço nas ruas – os dois lemas básicos são “Um Carro a Menos” e “Nós Somos o Trânsito”.

       Entre as regras estritas estão a obrigação de conhecer a fundo o código de trânsito local; a proibição de qualquer ato violento ou discriminatório em relação aos motoristas; e a postura de ignorar pura e simplesmente a polícia. “Na cultura antiautoritária do meio ciclístico, a Massa Crítica não trata com a polícia”, diz o estatuto, que, por outro lado, proíbe terminantemente infringir qualquer lei durante a Massa. E é por este motivo que uma bicicletada nunca avisa seu próximo ato à companhia de trânsito local. “A lógica é que, se a bicicleta tem, no código de trânsito, o valor idêntico ao de um carro, não faz nenhum sentido pedir licença para ocupar o espaço público”, explica Thiago Bennichio, micro-empresário e cicloativista que milita na ong Ciclocidade, apenas uma das dezenas de entidades que defendem os ciclistas no país.

       Estamos em plena rua Fradique Coutinho, Vila Madalena, São Paulo. ALFA acompanhou a Pedalada Pelada de 2011 – parte do evento World Naked Bike Ride – metade do trajeto em scooter, metade em bicicleta (por motivos estritamente mecânicos: o escapamento da scooter caiu). Enquanto desce a Fradique numa velha Caloi, o repórter (vestido, como convém à imprensa) conversa com Bennichio, que pedala sem camisa, no rosto uma maquiagem de palhaço terrorista, bicicletas negras pintadas no peito e nas costas. “Não gosto do termo cicloativismo”, diz ele. “Não acho que somos como os ecologistas dos anos 60; não queremos defender o panda. A sociedade vê a bicicleta como um veículo impossível: acha idílica a ideia de compartilharmos as mesmas vias. A bicicletada prova que isso não é nada demais”, afirma. Compartilhar é palavra-chave: os cicloativistas desdenham das ciclovias segregadas e lutam para que o poder executivo inaugure e controle ciclofaixas por toda a cidade. Seu mandamento sagrado: educar o motorista que afaste seu carro 1,5 metro do ciclista, conforme determina o Artigo 58 do Código de Trânsito Brasileiro em vigor desde 1997.

       Jornalista de classe média, Bennichio já teve carro, mas hoje tem uma conta no Twitter no endereço @luddista. Embora a homenagem a Ned Ludd (o líder dos tecelãos ingleses que, em 1890, incitou à destruição de teares para fazer frente à Revolução Industrial) sugira o contrário, a verdade é que Bennichio não é um radical.  “O desejo não é o de implantar uma ditadura das bicicletas: a bike não pode ser o principal veículo de transporte, nem em Amsterdã ou Copenhage é assim”, entende Bennicchio. Ele assina o blog Apocalipse Motorizado, homônimo da coletânea de textos anticarro publicada pela editora Conrad em 2004, que elenca ensaios de filósofos do pensamento ecológico radical, como Ivan Ilich e André Gorz. No Brasil, o movimento anticarro encontra entre seus ideólogos em desde o sociólogo Roberto DaMatta até o pneumologista Paulo Saldiva.

       No entanto, há nas bicicletadas quem defenda o carro. É o caso de Eliseu S*, cujo sustento é, justamente, uma mecânica de automóveis em Santana, zona norte paulistana. “Mas vou e volto da mecânica de bicicleta”, diz o homem atacarrado, de 54 anos, parecendo meio envergonhado por conversar com a reportagem com a bunda de fora. Constrangida também estava Maria G*, uma professora de ginástica um tanto gordota, moradora de Diadema, Grande SP. Ela diz ter começado a pedalar para diminuir uns quilinhos e também economizar os quatro ônibus diários que lhe tomam R$ 240 por mês e ao menos três horas no trânsito. “Não queria que meus parentes soubessem que estou aqui, porque eles não iam entender direito”, diz ela, de camiseta e calça de lycra. Maria diz também economizar… para comprar seu primeiro carro. Dentro de um biquíni preto, a farmacêutica Valéria N* afirma ir da casa em Pinheiros ao trabalho em Alphaville de ônibus fretado, “mas pelo menos uma vez por semana me obrigo a ir de bicicleta”. E por quê? “Para sentir a rua, para não perder o contato com a realidade. As ruas são das pessoas, não dos carros”, diz, séria.

       Infalivelmente, o movimento atrai outros ativismos. Há anti-carros radicais, como o professor Odir Z*, há militantes GLS, como o designer Marcio C*, há naturistas, como Daniela R*, há anticapitalistas, como o advogado André P*, e há vegetarianos extremistas. (Como a elegante Lady Godiva, que revela à reportagem jamais ter comido carne antes de vestir suas roupas civis, tirar a máscara – e desaparecer.) O movimento é claramente de classe média, e aqui se incorre em um registro bizantino: algum movimento político, nos últimos 2000 anos, à esquerda ou à direita, não foi impulsionado pela classe média? À parte esta escolar constatação, é preciso recordar a última e cristalina pesquisa feita pelo Metrô paulistano, publicada n’ O Estado de S.Paulo de 20 de março: 70% dos paulistanos usam bicicleta para trabalhar, só 4% para o lazer; 214 mil moradores utilizam diariamente esse transporte. “O uso está mais ligado à periferia e à população de baixa renda”, afirma Jaime Waisman, professor de Transportes da USP. “E agora há jovens de classe média que usam por ideologia.”

       Enquanto a reportagem acompanha o analista de sistemas Akira K*, que equipou a bike com um alto-falante que difunde pela noite o bebop de Charlie Parker, percebe-se que nem todos os cicloativistas estão sérios, claro. É uma festa. Embora a Pedalada Pelada seja um evento midiático, declaradamente realizado para despertar atenção à causa – e seus participantes portavam dezenas de câmeras e filmadoras – , a atmosfera é de micareta. Não é sempre que uma cidade sem espaços públicos como São Paulo vê 300 pessoas passearem seminuas na rua. “Obsceno é o trânsito”, cantam. Na chegada à Paulista, subindo a Augusta, a reportagem (ofegante) testemunhou palmas e apupos, tanto de pedestres quanto de motoristas. Hippismo pleno. Ao contrário de Pedaladas Peladas anteriores, em que houve confrontos de ativistas com a polícia (e os próprios participantes da bicicletada entendem que houve provocação de ambas as partes, quando alguns ativistas foram detidos por desacato ao pudor), na PP de 2011 não houve um único incidente. Em alguns casos, quando encontrava pela polícia, as forças da lei simplesmente deixaram passar as forças da Massa Crítica, sorrindo e abanando a cabeça como quem diz “mas que malucos”.

       Sim, porque o passeio, que começou às 20h e terminou perto das 23h, não é só uma dionisíaca apropriação do espaço público. É também uma impávida demonstração de força, que deixa bem claro: uma batalha acontece no espaço febril da cidade. No fechamento desta edição, 25 de março, aniversário de um mês do incidente em Porto Alegre, organizou-se uma Bicicletada em todo o país. Em São Paulo, território de 7 milhões de automóveis, zanzava uma massa de mil bicicletas. Na ocasião, Lady Godiva usava meias cor-de-rosa. E máscara dourada de carnaval.


Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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