
Por que tanta gente copia e cola frases fofas?
Um espectro ronda as redes sociais: as frases de Clarice. Não só a Lispector, mas outra artista também criada no Recife – Clarice Falcão, compositora, atriz e roteirista. É um fenômeno curioso, porque, tal como aconteceu com a escritora de Laços de Família, a cantora de Problema Meu tem contaminado as redes com frases, pensamentos e versinhos de sua autoria – e outros que ela jamais escreveu.
Saem, então, sentenças crípticas como “Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender: viver ultrapassa qualquer entendimento”. E empoderam-se fofices espertas como “Você vai ficar por quanto tempo? Preparo um café ou preparo minha vida?”, “Se o meu olhar cruzar com o seu, é só porque você tá no caminho”, “Se não desse errado, não seria eu” etc. Mas o que dizer das frases apócrifas que colocam nas bocas das pobres Clarices?
Debruçado sobre esse mistério clariceano, ou melhor, deitado mesmo (melhor jeito de divagar em uma pensata-playground), é fácil concluir que tudo tem a ver com o zeitgeist pró-feminista. Recortar e colar frases de autores famosos não é nada novo – nossas avós já faziam isso em seus caderninhos. É um comportamento adolescente, e tem seu tanto de auto-ajuda. Compartilhadas nas redes sociais, as frases ajudam tanto o ídolo copiado quanto o fã que copia. Têm algo de mágico, e de magia tanto a Lispector quanto a Falcão entendem.
Um dos maiores escritores da língua portuguesa, Clarice Lispector dispensa apresentações – e dispensar apresentações é um dos critérios para popularizar a frase de seu autor. Além da óbvia glória literária, Lispector era uma figura enigmática. Escreveu textos belos e inclassificáveis como o conto “O ovo e a galinha” e indevassáveis como Água Viva (Cazuza, outro eterno citado, teria lido o romance 111 vezes).
Tinha manias excêntricas para seu tempo, como virar a noite escrevendo, fumar demais, ser reclusa, solteira convicta ou participar de convenções de bruxaria. É protagonista de histórias saborosas: certa vez, ao ser internada em um hospital, quando viu os lençóis de sua cama empapados de sangue, tentou sair do quarto e foi contida; desesperada por não poder fugir, gritou para a enfermeira: “Você matou meu personagem!”. Mesmo desvirtuadas, suas frases mais famosas embutem raciocínios tortuosos e linguagem requintada. Sua arte trafega sob a luz de Lilith, a fêmea primordial críptica e inacessível.
A novíssima Clarice é em tudo diferente. Surgiu para o estrelato muito mais jovem, e como atriz global. Mas ao mesmo tempo, multitalentosa, lançou-se como roteirista e dramaturga. Ao lado do então namorado, Gregório Duvivier, criou e protagonizou esquetes humorísticos do grupo Porta dos Fundos que foram acessados milhões de vezes. Como a Lispector, a Falcão também é dona de beleza não muito convencional.
Mas não é a beleza quem põe sua mesa, e sim suas obras, sejam músicas, sejam dramas. Em um zeitgeist de crescente empoderamento feminino, ela se destaca pela militância feminista firme porém suave. O ex Duvivier lhe dedicou uma crônica carinhosa, contrariando a norma em que relacionamentos terminam mal. Tal como a Lispector nos anos 60, a Falcão é uma mulher moderna, que desafia convenções de modo original e ao mesmo tempo seguro. Bem mais singelas que as frases da Lispector, no entanto, as sentenças da Falcão primam pelo encanto nonsense, pelo soft power e pelo tom agridoce. É o arquétipo da companheira de viagem, a Louise que toda Thelma quer.
Contudo, acho que a disseminação de frases das Clarices tem muito mais a ver com o Enigma do Petisco, comportamento captado pelo cartunista Bruno Maron, e com o método de trabalho do ensaísta Walter Benjamin.
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Maníacos do trechinho
Como se sabe, brasileiro tem preguiça da coisa inteira: gosta do petisco. Beliscar, tirar uma casquinha, bolinar, dar um pega, bicar resto de copo. Roubar uma batatinha do prato do vizinho é mais gostoso que pagar pela porção de fritas. O sarcástico Maron captou o comportamento na HQ O Enigma do Petisco.
Por este raciocínio, a citação é o petisco da arte. Pra que ler livros? Pra que escrever um textão que ninguém vai ler? Podem até curtir, mas ler, ler mesmo, ninguém vai, sejamos honestos. Em vez de ler livros, comentá-los, analisá-los, compará-los a outros, mais prático é citá-los. Recortar um trecho, colá-lo na página pessoal em uma rede qualquer, e voilà.
Um amigo autodenominado maníaco do trechinho faz sucesso com as mulheres ao citar em seus ouvidos bobagens que ele mesmo produz, só agregando à frase um “como diria Baudelaire”, “como diria Nelson Rodrigues”, “como diria Platão” etc. Afinal, a pessoa que ganha tais babadas citações talvez não tenha lido Baudelaire, Rodrigues ou Platão. Citar também é uma forma de teatro.
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Roubo logo existo
No ensaio “O autor como apropriador” (Serrote #23), o escritor carioca Leonardo Villa-Forte analisa uma obra do poeta Kenneth Goldsmith: a transposição de boletins radiofônicos de trânsito em livro, reinvidicando a autoria do texto. A “escrita não-criativa” de Goldsmith lembra o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, em que Jorge Luis Borges fala de um sujeito que quer reescrever Cervantes sem mudar uma vírgula: “A autoria de Menard estaria precisamente na ideia de reproduzir o Quixote (…) O texto nem precisa ser diferente do original. O novo contexto gera o novo conteúdo”.
Assim, ao viralizar e memetizar os petiscos das Clarices, seus fãs tomam para si sua própria autoria. Se hoje, graças à acessibilidade universal da internet, qualquer um se justifica como artista, por que não se tornar artista justamente no ato de incorporar a arte de outrem? Editar e curar também é criar. “É fácil contagiar-se pela promessa de que a escrita não-criativa pode ser produzida por qualquer um”, diz Leonardo Villa-Forte. “Ela é tão acessível e possível quanto a escrita de próprio punho (…) O que está em jogo é a construção de um sentido pessoal em meio ao excesso de fontes e possibilidades que a sociedade tecnológica nos oferece (…) A diferença entre os consumidores/leitores/autores é estabelecida pelo que uns e outros selecionam e deixam de fora”, analisa o escritor carioca.
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O fast-food da auto-ajuda
Existe um teor prático por trás de tais frases. Elas não são escolhidas pelo prazer estético que suscitam – e sim por um suposto conselho, um ensinamento, uma lição de vida. Descontextualizadas da arte de que fizeram parte, as frases das Clarices se tornam aulas de auto-ajuda. São utilidades. Sequestradas do propósito primordial de entreter, narrar ou refletir, ao serem consumidas passam a ser produtos, cuja finalidade é trazer uma bússola moral para o seu consumidor.
Depois de editadas e consumidas, passa-se à fase da incorporação de frases dos fãs à suposta obra do ídolo. Daí ser comum a viralização de um texto apócrifo sob autoria de autor conhecido – e uma frase qualquer vai parar na pena de, por exemplo, Fernando Pessoa (como a hipercopiado “Pedras que colocam em meu caminho, recolho todas: servirão para construir meu castelo”, um texto horrível que nenhum dos cem heterônimos do poeta assinaria).
Para mergulhar nesse estranho fenômeno de falsificação de citações, ao qual não está infensa nem mesmo a jovem Clarice Falcão – o perfil fake @agridoceclarice, que tem quase 400 mil seguidores, junta frases dela a banalidades pueris –, precisamos recorrer a Walter Benjamin.
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Citações na era da hiper-reprodutibilidade técnica
No ensaio “Pescador de pérolas”, sobre Benjamin (Homens em Tempos Sombrios), a filósofa alemã Hannah Arendt conta que o autor de Magia e Técnica, Arte e Política somava uma coleção de 600 citações. Notório bibliófilo, Benjamin ansiava por um ideal de ensaística todo estruturado em citações – “montada com tanta maestria que dispensaria textos de acompanhamento”.
Este método de “perfurar” um texto para obter o essencial em forma de citação “é o equivalente moderno das invocações rituais, e os espíritos que agora surgem são aquelas essências espirituais de um passado que sofreram a ‘transformação marinha’ shakesperiana dos olhos vivos em pérolas, dos ossos vivos em coral”, diz Arendt, citando A Tempestade.
“Para Benjamin, citar é nomear (…), trazer a verdade à luz”. Citar, para Arendt, ou seja, falar através de vozes alheias, é a maneira como Benjamin escolhia para lidar com o passado. O pescador de pérolas desceria ao passado para trazer à superfície “fragmentos de pensamento”, que então ganham novo contexto.
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O ídolo como um avatar memético
O que os fãs citadores de Clarice fazem é o contrário. Ao transformar e supermultiplicar citações próprias em falsas aspas de Lispector e Falcão, não trazem nenhuma verdade à luz. Há o desejo de praticar a “invocação ritual”, conforme Arendt, de receber um espírito do passado sob o disfarce de um fragmento de sua voz. Mas a voz não é trazida como pensamento criativo, e sim como mercadoria: tem utilidade pragmática e multiplicável. Dentro da economia do compartilhamento de likes, a citação é uma moeda que se autocopia ao infinito.
As citações das Clarices são moedas-mercadorias funcionais. Pretendem invocar o espírito de suas autoras. Pode ser o espírito de uma gênia da literatura, dona de olhos estranhos, cuja aura misteriosa guarda-se em textos inclassificáveis como Água Viva. Pode ser o espírito de uma musa folk, dona de olhos doces, que tem coragem de expor em canções singelas seus descaminhos afetivos. Ao incorporar as vozes desses espíritos através da mera menção de suas assinaturas, os fã-clubes vampirizam um verniz autêntico para suas falsas apropriações.
Os fãs não criam arte, como propõe Kenneth Goldsmith com sua escrita não-criativa, ou Walter Benjamin com seus aquários de citações; mas flertam com a magia. A magia de transformar o fã no próprio ídolo. A narcísica conjuração do petisco das Clarices, uma magia fast food praticada através de frases surrupiadas ou inventadas, tem dupla função: consolo moral e projeção de sua identidade em outro. O ídolo, através da frase monetizada e memetizada, se torna um avatar do citador.
“Eu sou ela”, uma vez me disse minha filha de cinco anos, apontando uma personagem que via em um desenho na TV, me dando uma dica do mecanismo. Na frase roubada, o fã afasta-se da arte para petiscar um fragmento da vida do ídolo. “Viver ultrapassa qualquer entendimento”, diria a Lispector – uma frase que serve para qualquer coisa, qualquer momento, qualquer lugar. Um feitiço infantil, de efeito rápido, que alimenta o ego menos do que um nugget mata a fome.
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*Ensaio originalmente publicado na revista Bravo!.