Nome sujo

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

Conto publicado na revista Granta, edição In Memoriam



The people you love

become ghosts inside

of you and like this

you keep them alive

Robert Montgomery

1. A escrita

O arquiteto se inclina para dentro do armário e percebe lá no fundo um pequeno rolo de papel branco. O objeto em si era como um punho fechado, uma figa, uma superstição. Antigo, sim, mas ainda branco, umas duas polegadas de circunferência, com caracteres muito nítidos e linguagem gráfica específica. Qualquer pessoa daquela época teria percebido o que era aquele rolo de papel, e também teria se surpreendido com a sua espessura. Um objeto fascinante que, desenrolado, tinha a magnitude de um papiro muito antigo. Um pergaminho que escreve o futuro e o passado simultaneamente, que não se move mas nunca para de se mover. Um objeto que, desenrolado, teria dezenas de metros de comprimento. Metros e mais metros de inscrições, em uma linguagem própria, tão certa quanto errada. Pois 99,9 por cento das inscrições estavam equivocadas. Somente uma inscrição era a verdadeira, e as chances de encontrá-la eram as mesmas de um cometa cair na avenida Paulista. Mas qual a probabilidade? Infinitesimalmente possível, eis uma, e só uma das inscrições naquele quilométrico papiro. Uma única inscrição levaria à glória, todas as demais levariam ao fracasso. Qual seria a inscrição lida pelo destino e, então, como ler o destino na direção do próximo plano? O único ato possível frente a este absurdo: desenrolar esse longo pergaminho, usar o verso em branco para desenhar uma cidade, a sua cidade, a única cidade possível.

E então, atear fogo.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

2. O edifício

O arquiteto se inclina sobre o rosto de Amarílis e beija sua testa. É o último beijo, ela não habita mais sob a testa alta e sábia. Os olhos estão profundamente fechados e enterrados nas órbitas, os ossos despontam sob os malares, pontiagudos, e as rugas circunflexas nas esquinas dos lábios lembram as adoradas covinhas que se formavam quando Amarílis sorria.

Por mais que eu fume não consigo estar imune, incólume desse ciúme quando sinto o seu perfume de flor-de-lis, perfume de orquídea, perfume de amarílis, ele canta para ela, numa festa tantos anos antes. Como tu sabe que eu gosto de Itamar? Essa cantada é manjada. Quem lhe deu essa letra?, ela brinca, no delicioso sotaque baiano. Estão muito bêbados e a festa termina e Amarílis confessa estar com desejo de cachorro quente paulista cheio de porcaria. No trailer perto da igreja da Consolação, eles se entregam a beijos de purê de batata, mostarda e ketchup. O arquiteto aponta a montanha sinuosa onde vive: Copan, o edifício menos fálico de São Paulo. Ali perto. Copan é fetiche, nunca entrei, bora, ela diz. Entram no estúdio e a baiana pula pela janela para se encarapitar no brise e fascinar-se com a cidade que resplandece vinte e três andares abaixo. Vem não? Vais ficar aí cheirando mole, é?, Amarílis convida incisiva, enquanto tira os All Star pretos. As covinhas dela rimam com o sorriso dentuço e a língua lépida. O arquiteto nunca antes havia explorado nu o brise do Copan.

Ainda inclinado sobre o rosto da ex, o arquiteto tira do bolso uma pedra branca e a deposita no último leito de Amarílis.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

3. O astronauta

O arquiteto se inclina sobre o corpo do pai na cama da enfermaria. Seus grandes olhos verdes esbugalhados, felizes por verem o filho depois de tanto tempo, mas também aflitos por notarem o filho a espreitá-lo naquela situação, como se fosse um astronauta perdido e despencado na Terra. Sempre foi tão forte e agora está à mercê de tubos e geringonças que piscam, cercado de moribundos, um avental ridículo descobrindo a perna negra que cheira a chiqueiro. Na enfermaria lotada, o único luxo é uma TV, que mostra os lances de Romário e Bebeto na recente Copa do Mundo de 1994. O pai havia saído para andar de bicicleta e foi mordido por um cachorro. Sua doença autoimune havia minado todas as veias da perna, agora quase morta. O médico oferece: podemos salvá-lo, mas teremos de cortar a perna. Como decidir? O pai tem o corpo fechado, como serrar uma parte dele?

No dia seguinte, o médico anuncia que a situação do pai melhorou tanto que talvez não seja mais necessária a cirurgia. Essas coisas acontecem, os pacientes têm uma evolução estranha quando recebem visitas, o médico diz. Vai sair daqui andando com as duas pernas, o arquiteto diz ao médico. Vai sair daqui andando, diz ao pai, que o observa ainda arregalado. Só que nunca mais vai gastar dinheiro com essa merda aqui, entendeu?, diz, estranhando o próprio tom de voz raivoso, tirando do casaco o rolo de jogos da loteria, pela primeira vez pai de seu pai, já se sentindo mal com a bronca, já se arrependendo por antecipação por este diálogo grosseiro, uma última troca de palavras que lamentaria por muito tempo, mas da qual não poderia fugir. Como pode gastar todo esse dinheiro com esse jogo? Como você pode continuar gastando seu dinheiro todos esses anos? Se não tivesse gasto todo o seu dinheiro, poderia estar pagando um hospital melhor, já não tinha perdido tudo com esse vício idiota? Como você pode ser tão burro?

E você viu o resultado, pergunta o astronauta, em plana interrogação. Corre hoje. Corre hoje, você viu? A sorte corre hoje, diz, as pupilas gigantes avançando sobre as íris verdes.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

4. O corpo

O bate-estacas invade a mente do arquiteto aos poucos, corroendo o sonho em que ele sai cercado de amigos de um tempo antigo de uma festa em um apartamento para ir a outra festa em outro apartamento e daí a outra festa em outro apartamento e sair de novo. Então seus olhos encontram o teto e seus dedos automaticamente procuram o celular. Não fosse o bate-estacas da obra na avenida vizinha que o desperta todas as manhãs e o arquiteto teria a sensação de que habita um limbo onde as pessoas de sua vida são incorpóreas, exauridas de seus fôlegos.

Uma tarde dessas, encontra por acaso na avenida São Luís dois amigos, mas eles não parecem tão felizes por vê-lo mesmo depois de tantos meses sem convívio. Talvez fosse por causa das máscaras que todos portam em plena pandemia. Seu filho também não parece tão feliz assim ao vê-lo em seu último encontro, através de uma tela. Uma ex-namorada, surgida em outra tela, tem uma reação burocrática quando ele telefona sem avisar. E os amigos para quem ele liga nunca atendem. O bate-estacas desaba contra o solo em intervalos de um segundo, e da cama o arquiteto puxa o celular para medir: 110 decibéis. Tirando os clientes e os credores, os amigos demoram horas e às vezes dias para responder suas mensagens. Os amigos mais próximos, antes frequentes, se tornam textos espasmódicos ou imagens esporádicas e falam de um pedestal imaginário para uma audiência também imaginária. Há pouco tempo o arquiteto descobriu que a obra onde trabalha o bate-estacas será um condomínio de apartamentos de dois metros quadrados. A ideia de viver em um espaço-esquife lhe ocorre a cada vez que puxa o celular para conferir se chegou alguma nova mensagem ou imagem que se conecte com sua vida. Vai deslizando a barra de rolagem para baixo, como se estivesse caindo do lado de fora de um prédio, tentando se agarrar desesperadamente a alguma janela, em busca da mensagem que desse sentido a tudo.

Desenhar um edifício é falar com o vazio, e o arquiteto carece de espaços dentro dele para domá-los com o lápis – mas sente-se atulhado de coisas indigestas. O arquiteto havia começado a carreira desenhando catedrais, depois projetou edifícios públicos e em seguida prédios de apartamentos e daí casas para abastados, hoje projeta reformas – o trabalho mais recente é o retrofit de um banheiro. Enfiando o travesseiro na cara para tentar não ouvir mais o bate-estacas, sonha com o dia em que será contratado para desenhar um túmulo.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

5. Um certo futuro

O arquiteto se inclina sobre a arca do tesouro e enfia a mão lá dentro. Por trás da espessa luva de amianto, seus dedos reconhecem algumas formas: um colar de pérolas, um diadema de diamantes, uma guirlanda de flores, uma garrafa de rum presenteada ao rei da Espanha, um cordeiro recém-assado, um rolo de pergaminho do século XII. O arquiteto vai retirando suas preciosidades da arca enquanto a depõe com suavidade na verdadeira cornucópia que é sua carruagem, acompanhada por um batedor de cada lado: um leão africano e uma tigresa albina. Apesar do forte vento contrário, que lambe em redemoinhos o derrotado asfalto da avenida São Luís, o arquiteto toca pela rota que se abre à sua frente em um trote leve, pois não tem pressa. Contorna o Edifício Itália, ganha a avenida Ipiranga e em seu olhar se perdem de vista as avenidas vazias da vasta cidade abandonada.

Meus queridos irmãos de fogo, hoje é meu aniversário de 75 anos, a mesma idade que meu avô tinha quando o filho dele, meu pai, morreu. Mas meu avô não tinha os cabelos longos que eu tenho, nem tantos tesouros, ele diz à parelha de animais. Doravante viveremos no nosso palácio central, anuncia o arquiteto, apontando com o cajado cravejado de pedras preciosas um colossal edifício cinzento. Irmãos de fogo, o tempo trabalha a favor da destruição. A destruição nunca é instantânea. É como a hera que sobe pelas paredes de casa: se subisse de um dia para o outro, veríamos um monstro; como sobe devagar, a tratamos como um bichinho de estimação. Neste edifício vivi há cinquenta anos; aqui viveremos nossos últimos dias. Então o arquiteto estaciona a carruagem, coloca as mãos na cintura e eleva o rosto até o topo do edifício de 80 anos e 35 andares.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

6. Um outro futuro

O arquiteto se inclina na direção do que parece ser seu filho: ele faz aniversário de 50 anos, e comemoram brindando suas taças de cristal líquido. Jantam uma lasanha à bolonhesa e dividem uma garrafa de vinho argentino. O arquiteto está em sua casa no sertão de Paraty, o filho em seu alojamento à sombra do monte Olympus, em Marte. Há décadas se encontram com uma barreira de cristal líquido entre eles. Nos últimos anos, porém, se veem como hologramas fluidos, sentados à mesma mesa, comendo a mesma comida, só que feita em lugares distantes. O arquiteto ainda tem prazer em assistir ao filho comendo, como quando era criança.

Tem falado com sua mãe?, pergunta o pai.

Mamãe está impossível, diz o filho.

Sua mãe já era impossível antes de você nascer, por que seria possível agora?

Riem e emendam outros assuntos. O sorriso do filho continua tão faiscante quanto é possível sugerir um holograma de alta definição. O arquiteto fica feliz em saber que o filho ataca com vontade a lasanha à bolonhesa que o pai preparou, lambuzando de molho a barba que começa a ficar branca. Sempre gostou de ver o filho comer da comida que ele fazia. Em seus olhos azuis, lembra dos olhos azuis de seu avô. Mas agora o filho parece um monstro de olhos azuis. Lembra de uma ida a uma livraria quando ele tinha cinco anos. O filho azucrina os livreiros, corre para cima e para baixo, despenca livros das estantes, pede para ouvir CD, quer brinquedos. Segurando-o de ponta-cabeça pelas pernas rechonchudas, o arquiteto pergunta: onde foi parar aquele menino? Seu filho ri, ri, e pergunta: que menino, papai? O arquiteto se refere ao Enigma das Crianças Perdidas: com três meses é uma, aos seis meses você se acostuma à de três meses mas ela já é outra, com um ano a de seis meses sumiu, com cinco anos desaparecem todas as crianças anteriores com quem você havia se acostumado. Por muitas semanas o filho lhe devolve a pergunta: papai, onde foi parar aquele menino?, como se também estivesse assombrado com o próprio enigma. Agora, aos 75, o arquiteto tem ganas de que o filho afinal responda ao problema, transformando o pai de novo em um menino de 5 anos.

Às vezes olho minha biblioteca enorme e te vejo correndo entre as estantes, diz o pai.

Já contei que aqui em Marte criamos uma impressora que faz livro a partir da poeira?, pergunta o filho. Estou lendo aquele seu livro sobre as cidades invisíveis. Você poderia vir aqui planejar uma cidade, estamos precisando de arquitetos…

Até eu chegar aí estaria morto, diz o velho. E mesmo que desenhasse a cidade durante a viagem, pra que construir uma cidade agora? Não estaria vivo para ver as pessoas habitarem a cidade…

E não é esse o destino de todo arquiteto?, sorri o filho.

O único destino que o arquiteto pede ao Universo é que o filho não escute a mesma frase que ele ouviu de seu avô, quando chegou ao enterro do pai: não chore. Você não tem o direito de chorar. Ele está morrendo para que você viva.

Vou pensar no seu caso, diz o arquiteto, cravando seus olhos nos do filho, azuis como os do avô, e todo o azul aos poucos vai sendo ocupado pelo vermelho da planície deserta do planeta.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

7. O corpo (fechado)

A morte de Amarílis prenuncia o ano devorado pela peste. Subitamente, a vida sustenta um peso que nunca antes havia sugerido para aquela turma de velhos amigos. A vida deles havia sido um entrar e sair de festas, um entrar e sair de bares até assistirem zonzos ao sol nascer em alguma padaria infecta. A vida de antigamente era uma vida sem fim. É tão estranho reencontrar tantos amigos, todos haviam ido às festas do arquiteto, ele e Amarílis haviam bebido com todos eles, e há tempos não os encontra todos juntos, tão próximos, abraçados, beijados, chorados. Quando vê Amarílis estendida com as mãos no peito, íntegra como um bloco de mármore, diáfana como um dente-de-leão, recorda a frase que ela havia lhe soprado, na última vez que a visitou, um ano antes.

Não quero que abram mais meu corpo, ela diz, enquanto enche de álcool um frasco bojudo do tamanho de um punho fechado, onde antes havia depositado um pequeno ramo de flores-de-são-Miguel. Cansei disso, não vou deixar que abram meu corpo de novo, não quero ter novas surpresas, ela repete, e uma menina antiga paira no sorriso sarcástico que passeia pelos grandes olhos negros. Já estou muito velha para surpresas, quero passar esses tempos me preparando para a única surpresa que não é uma surpresa. Vindo da ampla janela retangular que percorre a parede do estúdio rente ao jardim, um raio de sol corta o frasco seguro pelas mãos um tantinho trêmulas de Amarílis, e a cor âmbar do álcool torna-se dourada, amarela, solar. Não abrir o corpo, manter o corpo fechado. No ar se respira o som de uma música de antigamente. É “Nanã”, né?, ele pergunta. Sim, do Moacir, ela responde, ocupada em encher o frasco. Foi você quem me apresentou Moacir Santos, lembra?, e ele não cessa de se surpreender com a tessitura tão leve de sua pele. Muita história, ela sugere.

O arquiteto se inclina sobre o corpo de Amarílis e ouve a expressão corpo fechado ressoar em seu íntimo. Ele mergulha na memória e vê a si mesmo muitos anos atrás, ainda menino, numa sala escura iluminada por velas altas. O homem tem o corpo fechado, sussurram as mulheres. O pai do arquiteto tem o corpo fechado e o arquiteto também. Por isso o trabalho pegou na mãe dele, explicam. Usando sua peruca loura, a mãe do arquiteto permanece em uma cadeira de rodas; não fala há meses. Não solta uma só palavra desde aquele dia em que ouvira o gritaço promovido pelas detentas do presídio do outro lado da avenida onde mora a família do arquiteto. As detentas protestam batendo em panelas e gritam Assassino, assassino, assassino. Voam das celas panos incendiados, colchões, roupas e ripas de madeira dos beliches, e o panelaço cada vez mais alto no vasto edifício das mulheres encarceradas. Por que gritam, mamãe?, pergunta o arquiteto. Mas a mãe sustenta o vazio, sentada na poltrona que dá para a janela, fixando o chão, irresoluta em seus duros olhos castanhos. E foi por isso que os tios a trouxeram a este terreiro.

O homem tem o corpo fechado e o menino também, diz a entidade preta, vestida de branco e adornada com colares multicores. Mas a mãe é porosa pro mundo. Foi feitiço plantado, porque no trabalho do pai querem a cabeça dele, querem o prêmio que o pai ganhou. Pegou nela porque o pai e o menino têm o corpo fechado. Os tios se entreolham: como a entidade sabe do prêmio da loteria? Só uma coisa desamarra, prescreve a entidade.

A avó, o avô, os tios, o pai e o arquiteto acompanham a mãe, estática na cadeira de rodas, as mãos segurando uma bolsa, ao cemitério que se obscurece pela retirada do sol no fim da tarde. Pelo labirinto de lápides, vagam de cabeças baixas até topar com outra família, esta composta de um homem e uma mulher baixinhos, vestidos de roupas simples. Chora a mulher, o homem apenas observa o buraco aberto no solo; em um carrinho de mão repousa um caixãozinho branco. O pai aproxima-se do outro homem, diz algumas palavras ao seu ouvido e oferece-lhe um envelope. O homem escancara os olhos e abre o envelope, desconfiado. Mira de novo o pai, uma expressão indefinível entre o medo e o nojo sombreia os lábios. Assente, puxa a mulher de canto, para trás de uma lápide. Então o pai abre a bolsa do colo da mãe, que permanece olhando para baixo, e de lá retira uma boneca. O arquiteto repara que os cabelos da boneca são louros como a peruca da mãe, e a boneca porta um vestidinho florido da mesma cor que o vestido da mãe. A boneca é lançada ao buraco e logo coberta pela terra que o coveiro joga.

Assim que a última pá de terra oculta o caixãozinho branco a mãe se levanta da cadeira de rodas. O arquiteto solta um grito e dispara a correr pelo cemitério.

8. O som

O patrimônio do pai do arquiteto se resume a:

  • Uma TV, um aparelho de som, um de DVD e uma filmadora lotada de imagens do pantanal mato-grossense (tudo vendido para pagar o caixão, a maquiagem do cadáver, o velório e o enterro, que atraiu dezenas de pessoas e teve lugar em um cemitério vizinho ao rio Paraguai, forrado de ipês roxos, brancos e amarelos, e antes do arquiteto jogar o último torrão de terra um capiau descalço chegou junto dele e disse Me dá um abraço, por favor, eu não sei ler nem escrever mas teu pai me ensinou a jogar xadrez);
  • Um casaco (um tweed que lembra um costume de Sherlock Holmes), uma jaqueta de veludo preto, dúzias de ternos (Armani, Boss, Almeida – o pai sempre se vestiu bem);
  • Objetos pessoais, como um cachimbo (que o pai não fumava), um relógio de bolso (que tinha sido do avô e não funcionava), um canivete suíço (sem fio), um óculos Ray-Ban (totalmente arranhado), uma corrente de ouro com um crucifixo, uma figa e uma imagem de Nossa Senhora (mas o arquiteto é ateu, então ele deixa tudo isso para a tia);
  • Dezenas de rolos de jogos de diversas loterias dos últimos meses;
  • Cinco manuais do tipo “como ganhar na loteria” (dentro de um deles havia os três jogos vencedores das loterias esportivas de 1968, 1978 e 1988, além de, grampeados, os volantes de 12 jogos da loteria de 1982 em que o pai alcançara 12 pontos em 12 semanas consecutivas – será que há alguma imagem mais específica para expressar o azar?);
  • Livros como Na Colônia Penal, de Kafka, Complexo de Portnoy, de Roth, Vidas Vazias, de Moravia, e Admirável Mundo Novo, de Huxley (todos de bolso e já sem as capas);
  • Um violão Giannini sem duas cordas;
  • Duas centenas de discos de vinil;
  • O rolo de papel branco que contém as derradeiras apostas do pai – 100% erradas.

            O arquiteto recolhe o casaco de Sherlock, três ternos, o relógio, os livros, os jogos e alguns vinis. São os sons que povoaram sua infância e colonizaram seu inconsciente. Caixas de Caetano Veloso e Nat King Cole, coletâneas dos Beatles e as obras completas de Julio Iglesias e Roberto Carlos.

Todos os discos têm as capas tatuadas. Os nomes do pai e da mãe, entrelaçados em X. Porém apagados. O nome Chico sobe, o nome Pilar desce, ambos cruzando-se no “i”. Originalmente haviam sido desenhados com Bic azul pela elegante caligrafia da mãe. Porém, dias antes de sair de casa, o pai passou horas retirando laboriosamente os nomes das capas, com álcool. Assim, só de muito perto pode-se ver o decalque dos nomes. Todo disco é a trilha sonora de um amor ouvido, chiado e riscado.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

9. Os nomes

A vida é assim mesmo, muitos vão ter que morrer, afirma sorrindo o homem feio na televisão, enquanto o arquiteto bebe mais um copo de uísque e ouve o panelaço promovido pelos moradores do Copan. Meu nome é Messias mas não faço milagres, diz o homem feio na TV, e arrota nomes sujos e gargalhadas para os repórteres. Assassino, assassino, assassino, genocida, fascista, miliciano, burro, filho da puta, arrombado, vagabundo, morre, assassino, assassino, assassino, os moradores do Copan gritam, soprando cornetas, batendo panelas, batendo panelas, batendo panelas, esgotando todo o seu repertório de nomes sujos.

            O nome é Petrea volubilis, informa Amarílis, sorrindo como quem tivesse feito uma travessura, na última vez que o arquiteto a visita, um ano antes. Mas também atende por flor-de-são-Miguel ou viuvinha, que acho mais fofo, explica, em voz mais lenta do que o costume, ao mesmo tempo em que anota numa etiqueta tais informações. Em inglês chamam de flower of God, mas isso pra um ateu não significa nada…. Você conhece… é aquela florzinha azul, meio roxa, se usa muito em caramanchões, chega a crescer uns 12 metros. É uma trepadeira… combina contigo, ri Amarílis, estendendo ao arquiteto o frasco onde no líquido ambarino flutuam estrelas quase despidas de corpo.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

10. O método

O arquiteto e seu pai tomam sorvetes em um banco na praça Dom José Gaspar. Comemoram a entrada do arquiteto na USP, no fim dos anos 80.

A gente pode pensar em três tipos de estratégias pra ganhar na loteca, diz o pai. A primeira é perfeita pra quem não entende nada de futebol. É o que eu chamo de meter o louco: você marca o cartão aleatoriamente, ou inventa algum esquema doido, sem saber quais são os jogos. Cada aposta tem a probabilidade de um em 1.594.323 de acertar.

Mas você conhece futebol, diz o arquiteto. É difícil você fazer uma aposta por acaso…

Essa é a estratégia que eu chamo maria-vai-com-as-outras: você escolhe o resultado mais provável do jogo. A maioria das pessoas aposta assim. A probabilidade de fazer os 13 pontos é maior, mas também aumenta o número de apostas que vencem o teste, daí o prêmio ser menor.

E qual você usa?

Eu sigo a estratégia do professor Pardal. Estudo os jogos, descubro os favoritos, mas não aposto em todos eles. A ideia aqui é jogar contra os demais apostadores, tentar fazer o contrário do que eles estão fazendo. Tenho menos probabilidade de ganhar, mas, se ganhar, levo o prêmio mais alto. Assim, se eu aposto mil cruzeiros toda semana, tenho a probabilidade de 1 em 800 em cada teste de ganhar o prêmio de quatro milhões. O problema é que nessa probabilidade a minha chance de ganhar é de uma vez em 16 anos.

Mas você só ganhou duas vezes, em 1968 e em 1978. Dez anos de diferença. Qual a lógica?

Isso quer dizer que eu adiantei seis anos em relação à minha sorte. Então, se eu seguir a minha estratégia, posso ganhar daqui a 22 anos. Mas, se o meu padrão de sorte seguir assim, eu reduzo essa proporção pela metade. É só dobrar a aposta.

Isso quer dizer que, em vez de você gastar um salário mínimo por mês, vai gastar dois.

Isso se chama pagar pela sorte.

Isso se chama jogar pela janela o carro que você podia comprar pra mim.

O que você prefere, ganhar um carro velho este ano ou daqui a uns anos ter um Porsche?

Não quero um Porsche. Só quero um carro pra ir pra faculdade.

Você pensa pequeno.

Foda-se, pai. Prefiro pensar pequeno e continuar pegando ônibus.

Não tem fé no seu velho pai.

Tenho sim. Tenho fé que um dia você vai perder tudo o que ganhou, ri o arquiteto. Bem nessa hora, sente algo líquido resvalar em seu cabelo.

Puta que pariu. Qual a probabilidade de um pombo cagar na minha cabeça nessa praça?

Uma em um milhão, ri o pai, tirando um lenço do bolso, limpando o arquiteto e o envolvendo em um abraço. Quem sabe a sorte não é algo hereditário? Bora trabalhar?

No mês seguinte o pai ganha pela terceira e última vez na loteria e o arquiteto troca o ônibus por um Escort XR3, faiscando de novo.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

11. O poço

Na primeira vez em que ouve a expressão, o arquiteto tem oito anos; não vai à escola pois é dia de jogo da Seleção. A mãe está na cozinha, lavando pratos, enquanto a tia, ao lado, os seca; ambas miram pela janela da cozinha uma cena que se desenrola no pequeno quintal atrás da casa térrea onde o arquiteto vive. O arquiteto beija a tia e a mãe e elas mandam o arquiteto para a sala enquanto preparam o bife com fritas do almoço. Faz muito calor, o que só piora o cheiro marrom que emana em toda a casa. Antes de ir à sala, nota que a mãe tem os olhos fundos cercados de olheiras por onde descem riozinhos secos, e a tia mantém um semblante severo, com as comissuras da boca voltadas para baixo e aduncando o nariz batatudo.

O arquiteto permanece encafifado com a expressão sussurrada da mãe para a tia, que diz respeito a alguma pessoa que o arquiteto não capta. Parece algo venenoso, pantanoso, indefinível, lodoso, uma contradição, um pecado depravado em que ninguém gostaria de cair, como o poço de areia movediça no desenho animado que o arquiteto vê na TV em preto e branco, onde o pai havia afixado um plástico colorido que transformava a tela em um oleoso arco-íris. Curioso, o arquiteto escapa da sala sem que a mãe e a tia percebam e se dirige ao quintal pelo corredor lateral da casa.

A TV é quase uma irmã. Ano passado o córrego da rua de trás havia subido. De repente a água preenche a rua e derruba o portão. Já começa a lamber a porta de casa quando o pai e a mãe mandam que ele suba para cima da mesa, pra onde já vai a TV. De cima da mesa, o arquiteto vê o pai tentar dar a partida no Ford Corcel GT ainda reluzente na garagem – ele tinha comprado o carro só fazia duas semanas, um modelo laranja, com duas faixas pretas no capô e nas laterais, e pequenos faróis de milha sobre os para-choques cromados, um carro de corrida para papais pacatos. O pai desiste de salvar o bólido burguês quando a água passa o limiar da sala de estar. A mãe e o pai levam para a edícula dos fundos a geladeira, o fogão, quinquilharias e quejandos, mas a água não para de subir. O arquiteto assiste à chuva despencar pela janela enquanto a água cor de barata cresce ao redor das pernas da mesa, e ri, ri, ri. Seus brinquedos giram em volta da mesa misturados às páginas das revistas do pai e da mãe. Mulheres nuas e vestidas, carrinhos, patos, bonecos, baldinhos, peças de Lego, dinossauros, blocos de madeira, imagens de Maria, de José e de Jesus. Até mesmo peixes e tubarões e polvos nadam na sala de casa? Por fim, o pai e a mãe desistem de salvar os móveis e também sobem na mesa. Agachados, encolhidos, abraçam o arquiteto ao redor da TV, tremendo, chorando, rezando e esperando que o céu despencasse e juntasse aquele presépio invertido sob os escombros da casa numa única coisa só. O arquiteto segue rindo: agora a gente vai ter casa com piscina, mãe?

No dia seguinte, o Corcel GT novinho vai direto para o ferro-velho.

Aquela enchente deixa uma irredutível marca marrom em toda a casa, como se vestisse uma calça nas paredes. Não há dinheiro para pintar, vai ficar assim mesmo. Quando chega ao quintal, o arquiteto compara sua estatura com a marca marrom; está poucos centímetros mais alto que ela. De algum lugar dentro do arquiteto vem a informação: agora não morreria mais afogado, não precisaria subir em cima da mesa para fugir de tubarões e polvos.

Uma marca d’água venenosa, movediça, lodosa, se desenha para sempre na paisagem interior do arquiteto.

Ao fundo do quintal, vê o pai, que deveria estar no trabalho àquela hora e não em casa, muito concentrado, suando numa camiseta furada, a desmontar com uma ferramenta a enorme peça que se conecta ao poço artesiano. Parece ser a bomba que puxa água do poço e a leva até a casa – o arquiteto vive em um bairro de periferia em que o sistema sanitário ainda não chegou; existe mesmo uma fossa, onde são despejados todos os cocôs da família, espaço tapado por um círculo de cimento que o arquiteto teme ferozmente, pois tinha visto saírem dali umas baratonas enormes. Seu pai desmonta a bomba do poço e isso não faz sentido em sua cabeça: a bomba estaria quebrada? O poço, envenenado? O arquiteto havia bebido daquela água hoje de manhã, antes de ir para a escola adventista onde estuda graças a uma bolsa. O pai então faz outra coisa inconcebível: com o barbante que o arquiteto usa para empinar pipas, amarra a bomba do poço no bagageiro da bicicleta que o menino ganhou no ano anterior, sua primeira bicicleta, sua incrível Diabinha, uma Monark vermelha aro 12. Estaria fazendo alguma espécie de máquina genial? Criando algum de seus truques infalíveis?

Pior que isso: o pai monta na bicicleta, um gigante de um metro e noventa e cem quilos amassando a monareta, e dá algumas voltas pelo quintal, até sentir-se confiante o suficiente para vir em sua direção. Ao notar o arquiteto, mostra seu costumeiro sorriso magnético sob os olhos esbugalhadamente verdes, e com um piparote desarruma seu cabelo. Daqui a pouco o papai volta, diz ele. De calção, camiseta e chinelos, o pai pedala até o portão enferrujado, abre-o e sai para a avenida. Entre os carros que buzinam e disparam palavrões, perseguido pelos cães da vizinhança que tentam mordê-lo, o pai pedala desajeitadamente na pequena bicicleta com a bomba do poço na garupa. Nada faz sentido. O arquiteto entra de novo na cozinha atrás das explicações de sua mãe, que segue sussurrando segredos com sua tia.

E então ouve de novo aquela expressão venenosa, indefinível, lodosa. Movediça.

Nome sujo.

A bomba do poço e sua bicicleta nunca mais voltam.

Seu pai, sim, retorna.

Suas mãos estão vazias.

No bolso, um rolo de jogos de loteria do tamanho de um punho fechado.

O Brasil empata em zero a zero com a Argentina e perde a chance de ir direto para a final da Copa de 1978.

No entanto, uma (e somente uma) entre aquelas muitas apostas do pai continha treze resultados certeiros.

Não existe nome mais sujo que o do fracasso, o arquiteto pensa. Mas o fracasso é mestre da esperança.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

12. O fogo

O arquiteto estaciona sua carruagem em frente à escada em caracol que ladeia o largo edifício sinuoso que é o Copan. Será uma longa aventura, meus irmãos de fogo, ele diz aos animais. Mas vocês serão recompensados ao final. Cada andar tem quatro lances. Esta será a minha última obra, diz o arquiteto. O ar se rarefaz à medida em que seus olhos são polvilhados de pontinhos pretos. Sua parelha de animais parece exausta, lança olhares humildes entre a fome, o medo e a tristeza. Não chorem, irmãos de fogo. Vocês não têm direito de chorar.

Uma vez, eu era pequeno – ele conta aos animais, escandindo lentamente as sílabas, recortadas por longos fôlegos –, eu tinha uns cinco anos de idade, e meu pai me levou à fazenda de meu avô. Meu pai dizia que meu avô era um homem muito forte e poderoso, um homem que havia construído uma cidade no interior do Mato Grosso do Sul. Quando o vi pela primeira vez, ele tinha o tamanho do meu pai, mas bigodes brancos e longos, escorridos até o queixo, e estava ao lado de um animal que não identifiquei. Parecia um touro, tinha o tamanho de um touro, e eu sabia que meu avô uma vez havia sido ferido no peito por um touro; foi chifrado dezenas de vezes, e mesmo assim não morreu. Meu avô olhou para mim, piscou um dos seus olhos azuis, ergueu de repente uma faca comprida, depois baixou-a e passou debaixo do pescoço do animal. O sangue espirrou bem na minha cara. Me assustei e comecei a chorar. O bicho soltou um ronco cavernoso, um lamento agudo que foi se derramando em repetidos ecos menores e graves, enquanto o bicho se desmilinguia nas quatro patas. Meu avô se aproximou de mim e pôs a mão no meu ombro: não chora, você não tem direito de chorar. Esse cachaço está morrendo para nos dar a vida. Só então eu aprendi que era assim que se matava um porco.

O arquiteto chega ao trigésimo segundo andar, que dá acesso ao terraço do Copan. Vamos, meus irmãos de fogo, vamos ver a cidade. O céu tem a textura de um pano de chão muito gasto, um pano de chão que um dia foi colorido mas agora não passava de um monte de manchas de cores indefiníveis entre o ocre, o cinza e o púrpura. A cidade em ruínas é castigada por contínuas rajadas de vento fuliginoso. Raras luzes se oferecem das montanhas de concreto armado. O arquiteto estaciona sua carruagem no centro do que muitas décadas antes tinha sido um heliponto. Vejam, irmãos de fogo: mesmo por trás dessas nuvens pretas dá para ver Vênus, Júpiter, Saturno e Marte alinhados com a meia lua de bandeira turca. Mas para onde foram as pessoas que habitavam as montanhas de cimento? Algumas daquelas montanhas eu mesmo projetei. Vamos ficar aqui, diz o arquiteto. Vamos fazer um fogo e ver as luzes finais da cidade, repete o arquiteto, enquanto a parelha de animais se deita ao seu redor para que os corpos mutuamente se aqueçam. Espero que vocês tenham aprendido esta minha lição, o arquiteto diz, terno, passeando as mãos sobre os pescoços dos bichos.

Pouco antes de dormir, o arquiteto observa longamente seus tesouros na carruagem. Ele pressente o fim da demolição, seus edifícios interiores desabando. Pressente, afinal, que não existem colar, diadema, guirlanda, garrafa, cordeiro. Existem, envoltos pelo fogo, somente um violão, alguns livros, discos, roupas e aquele velho rolo de papel; não há carruagem, e sim um carrinho de supermercado velho; não há leão nem tigre, e sim dois vira-latas famintos. De algum ponto da cidade abandonada, ouve-se uma sirene.

Rosângela Rennó, série Corpo da Alma, 2003

13. It’s a long way

Não acredito que dei essa sorte, pensa o arquiteto, enquanto desenha com a ponta de seu indicador os traços do rosto da mulher na cama ao seu lado: as sobrancelhas caindo em uma curva nas esquinas dos olhos verdes e fundos, que coruscam depois de todas aquelas coisas indizíveis que haviam feito pouco antes; o nariz curto a terminar suave perto da boca que sorria formando pequenas rugas nos cantos – um conjunto gracioso que contrasta com o rosto em formato de lua, de pele dourada, onde o arquiteto não cessa de espraiar seus beijos. Ele para de desenhá-la e tenta identificar a cor de seus olhos, entre o castanho-claro e o verde-água.

Se a gente ficar se olhando sem parar, quando for dormir, quem entra primeiro no sonho do outro?, pergunta Luna, a voz grave e meio rouca depois de tantos cigarros e taças de vinho, insinuando seu vasto calor de sereia do subúrbio.

Ela sempre faz umas perguntas estranhas, e era assim que tinham se conhecido, bem no início da pandemia: como uma meliante melindrosa, ela surgiu em seu celular com uma pergunta sobre o projeto de um edifício que ele havia publicado em uma revista – por que você só desenha prédios que ninguém nunca vai construir? Passam a trocar mensagens a cada dois dias, depois a cada hora e afinal marcam um encontro clandestino, numa época em que se envolver com desconhecidos pode ser fatal. Quando te vi pela primeira vez fiquei com medo: você é o tipo de cara que me engravidaria, disse Luna, na primeira vez que transaram. Luna e o arquiteto teriam se atraído pelo risco de respirar nas cavidades um do outro, talvez? Qual o prazo para que um encontro durante uma catástrofe passe de santuário a rota de fuga? Até quando habitariam a mesma bolha de ar? O amor é uma loteria.

Só vamos saber se a gente continuar se olhando, responde o arquiteto, pressentindo sinais de sono naqueles olhinhos chispantes. Luna diminui lenta o ritmo da respiração, que o arquiteto sustém muito próxima de sua boca, como se para guardar em si o ar que ela emana. Os olhos dela afinal se fecham; ele tem vontade de manter-se insone e observá-la dormir até se tornar a primeira testemunha de seu despertar – incrível como agora todas as suas histórias tenham desaparecido, as vozes, as risadas, as viagens, todas as histórias mirabolantes agora estão quietas. Ou quase quietas: a senhora do terceiro andar do meu prédio não quis me dizer seu nome mas me mostrou as bonecas que vivem com ela, diz Luna dentro do sono, e ele ri, comovendo-se – colher seu sonho é mais íntimo do que acolher seus fluidos –, e mentalmente começa a desenhar a casa onde moraria com ela, até adormecer.

O arquiteto sonha que Luna já não está mais por perto quando ele desce para a plataforma do metrô, e sente-se só, frágil, vulnerável: todos na estação usam máscaras, menos ele, que acelera os passos para fugir dos olhares de raivosa reprovação, e entra no último vagão pouco antes de as portas se fecharem. Consegue um assento próximo à janela onde se vê a luz do trem avançando pelo túnel. Alguém se senta ao lado e toca sua mão: Amarílis. Ela sorri, as covinhas nas bochechas cheias e aquele olhar tão negro e inteligente. Ela lhe estende alguma coisa do tamanho de um punho fechado, que ele recolhe com ambas as mãos. Agradece a ela e desce na estação seguinte. O ambiente é úmido e abafado; ouve-se cochichos, uma cantoria monótona, e ao fundo o som ritmado de um bate-estacas. Além das máscaras, algumas pessoas portam véus. Aproxima-se delas: são mulheres que cantam uma música que ele reconhece, mas que ali não faz sentido. Os zóio da cobra verde hoje foi que arreparei, se arreparasse há mais tempo não amava a quem amei, it’s a long way, ouve o arquiteto, por trás do som incessante do bate-estacas. As mulheres fazem um círculo ao redor de uma mesa, as cabeças baixas e as vozes sussurrantes. O pai do arquiteto está deitado sobre a mesa, olhos fechados e mãos cruzadas sobre o tórax. Usa um terno fora de moda, cor de rosa, de bolsos duplos e lapelas largas, e uma gravata com uma estampa havaiana de palmeiras e ondas. Algodões preenchem suas narinas, a respiração está interditada como a do mundo inteiro, e perceber esse fato lhe traz uma pressão no peito, mas ele tem a vera sensação de que precisa realizar sua tarefa até o fim.

O arquiteto tira do bolso o presente de Amarílis: o rolo de loteria perdido, o rolo de jogos do tamanho de um punho fechado, o pergaminho infinito, trouxe pra você, pai, diz o arquiteto baixinho, para que as mulheres carpideiras seguissem cantando it’s a long way, it’s a long way, olha, pai, o seu jogo estava perdido, pai, mas eu achei, o que será que vai dar, pai, a sorte corre hoje, a sorte corre hoje, e o arquiteto tem a ideia de colocar o rolo no bolso da lapela do terno rosa, e ele puxa uma ponta do papel para fora e agora parecem pétalas brancas que escapam, a sorte está correndo, pai, e seus olhos se inundam quando o arquiteto percebe que o arranjo fica perfeito, o pergaminho infinito na lapela feito o cravo de um noivo.

Então o pai abre os olhos.

São Paulo, inverno, 2020



[Este conto – trecho da narrativa inédita Nome Sujo – foi publicado originalmente na edição In Memoriam, da revista Granta em Língua Portuguesa, editada pelo amigo Gustavo Pacheco. As imagens daquela edição, de Rosângela Rennó, podem ser vistas no site da autora.]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s