Uma estação no inferno

O rapper Dexter e a companhia Dragão 7 levam música e teatro para a praça Júlio Prestes, epicentro da Cracolândia paulistana

DEXTER

por Ronaldo Bressane | imagens Jonas Tucci

– Foda.

Dexter entra no carro, um SUV prata zero, liga o som. No talo.

– Botar um rap aqui pra desbaratinar.

E aperta a tecla mute em si mesmo enquanto os falantes tremem ao som de uma inédita de Sabotage, faixa a ser incluída em álbum que, produzido por Daniel Ganjaman, conta com uma participação sua. O rapper de 39 anos dá ignição e espera à saída do estacionamento até que lhe abriam caminho três homens, carregando pesados vasos com pinheiros – o que os faz parecerem árvores com perninhas. O sol das cinco da tarde que doura as calçadas sujas da rua General Osório, centro de São Paulo; o céu totalmente azul, a hora mágica; a lírica afiada de Sabota vinda do pós-túmulo. Tudo conspira para tornar mais irreal o que a Efêmero Concreto acabou de vivenciar. Os homens-árvores passam e Dexter parte cantando pneu. Segue guiando imerso em um negro silêncio. Só abre a boca quarenta minutos depois.

Parece um Dexter bem diferente daquele que tinha entrado no mesmo carro, cinco horas antes, à saída do escritório da produtora Boia Fria, na Vila Anglo, zona oeste paulistana. Era então o Dexter gente fina, aberto a falar de qualquer tema com sua voz rouca e gentil, pontuada por muitos “morou?” e “meu irmãozinho”. E pronto para pôr em prática a intervenção bolada para a EC: encenar um trecho de O mundo mágico de OOOhs!! em plena Cracolândia. A peça, montada pelo grupo Dragão 7, com dramaturgia de Néviton Freitas e direção de Creusa Borges, imagina que o deus Dionísio visite este mundão velho sem Deus nem porteira e se espante com os excessos cometidos pelo homem. A direção musical é de Dexter, o que torna a encenação crua do Dragão 7 ainda mais contundente.

Ainda mais contundente se você pensar que uma cena ambientada na Cracolândia retornaria ao lugar de gênese. Tendo como protagonista um ex-usuário de crack.

O próprio Dexter.

***

Dexter nasceu na favela do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo. Como acontece com muitas crianças nascidas na periferia, foi criado distante de qualquer figura masculina forte – ainda está por ser escrito um ensaio relacionando o hip hop brasileiro, muitas vezes sexista e misógino, ao fato incontornável de que seus líderes cresceram em ambientes dominados por mulheres. Dexter conheceu o pai biológico apenas aos 17 anos, e não cresceu aos cuidados da mãe biológica, e sim de uma vizinha viúva, Maria Marina de Omena, que o adotou aos 13 dias de idade e o batizou Marcos Fernandes de Omena, sobrenome espanhol de um homem que ele nunca viu.

“Minha mãe foi gari durante 17 anos”, conta o MC. “Enquanto ela trabalhava, eu ficava com outros meninos cujas mães tinham que trabalhar. Isso acaba integrando as famílias: compartilhamos tudo, todo mundo brinca junto no quintal de terra. Desde a escravidão já é assim, se você for ver. Por que apanhavam cada um de uma tribo africana diferente? Pra ficar mais fácil escravizar. Mas isso fundou a ideia da família coletiva, que ficou enraizada nas classes menos favorecidas”, reflete Dexter, um olho em mim outro olho no trânsito.

Na mesma época em que conheceu o pai, o negro Juscelino, que era caminhoneiro e havia espalhado várias famílias pelo país, Dexter descobriu o rap. Também descobriu, nas páginas da autobiografia de Martin Luther King, seu nome verdadeiro. No mundo do rap, o nome real é uma identidade secreta: Pedro Paulo é Mano Brown, Mauro Mateus é Sabotage, Antônio Luiz é Rappin’Hood, Alex Pereira é MV Bill. “Aí vi que um dos filhos de King se chama Dexter em homenagem ao nome da rua da primeira igreja em que ele pregou. Achei interessantíssimo: o X me remeteu a Malcolm X, e X, no islamismo, representa o sobrenome africano perdido. O X integra todos em uma mesma família; e o X é o desconhecido. Além disso, Dexter quer dizer destro, direito, correto, que também passa pelo sagaz, esperto, ligeiro. E na periferia se você não é um cara direito você morre cedo – e pela mão dos seus iguais: pode ser polícia, pode ser ladrão. Daí adotei o nome. Hoje só a mãe e as irmãs me chamam de Marcos”, conta Dexter, acendendo mais um cigarro.

Sete anos depois, lutando contra os perrengues financeiros e na tentativa desesperada de arranjar grana para gravar o primeiro álbum, Dexter pegou em armas. E foi pego. Um assalto a mão armada lhe valeu a pena de cinco anos e oito meses. Desesperado, fugiu da delegacia onde estava detido: em quatro dias, roubou um carro e assaltou um mercado e um posto de gasolina. E foi recapturado. E teve sua pena multiplicada por dez. Despachado para o Carandiru, cumpriu verdadeira turnê pelo sistema prisional: Atibaia, Serra Negra, Itapira, Bragança, Carandiru – onde entrou a 1º de abril de 1999, sete anos depois do Massacre dos 111 –, Franco da Rocha, Guarulhos, Presidente Bernardes, Hortolândia, São Vicente, Tremembé, Guarulhos de novo. Até sair, em 2011, não se considerava preso, mas exilado: “Esses 13 anos foram fundamentais como crescimento intelectual, social, espiritual”, diz. “Li muito. De Alex Haley a Sidney Sheldon. Aliás, adoro Sidney Sheldon. Li tudo. As estruturas das histórias que eu canto devem muito aos livros do Sidney Sheldon, que descobri com aquele Se houver amanhã. Louco, né?”, ri.

Na prisão, Dexter, ao lado do MC Afro-X, criou o 509-E – número da cela do Carandiru que ambos ocupavam –, primeiro grupo de rap formado dentro de uma prisão brasileira a gravar um álbum, Provérbios 13, produzido por nomes como Mano Brown e Zé Gonzales. O trabalho teve enorme repercussão, mas o grupo se dissolveu com a saída de Afro-X da cadeia. Em 2005, Dexter lançou Exilado sim, preso não, um dos álbuns mais importantes do hip hop nacional; faturou cinco prêmios, além do Hutúz. “Escolhi um lado da calçada seguro na prisão”, conta Dexter. “Teve a ver com minha religiosidade. O que você planta você colhe. A prisão é fria, tenebrosa, mas lá plantei o respeito, o amor. Quando você é um cara notado, corre o risco da inveja”, afirma. Aconteceram perrengues? “Nunca sofri violência de um preso. Da polícia, sim. Essa cicatriz [aponta a testa] veio do escudo de um PM numa blitz. Os caras esculacham, mandam descer de joelhos do quinto andar até o primeiro…”, descreve, a voz contendo a raiva.

No que diz respeito ao fato de que a violência policial só chegou a ocupar espaço na mídia após a classe média passar a senti-la na pele, durante as manifestações dos Idos de Junho, ele diz: “O rap fala dessa violência há 25 anos, mano. O Emicida disse uma frase interessante: o papel sujo sempre sobra pro rap. A classe média sempre soube dessa violência, porque também ouve rap, mas sentiu só agora. E foi só 10%, morou? Na periferia a bala não é de borracha, os tapas na cara não são de brincadeirinha”, exalta-se. “Um pouco antes das manifestações, tava rolando uma guerra na periferia. Carros à paisana chegando na calada da noite e zerando nossos irmãozinhos lá. Isso nunca aparece no jornal. E continua acontecendo!”

***

Entramos no centrão e nos aproximamos da Cracolândia. Dexter para o carro, desce, é cumprimentado por passantes, entra em uma loja de instrumentos musicais, dá um alô ao dono. Aos poucos somos cercados pelos dependentes de crack que vivem nas imediações da rua Santa Ifigênia. Dexter acende o décimo cigarro desde que começamos o papo. Experimentou crack na prisão?

“Já usei maconha e cocaína. Crack fumei um ano direto, no exílio. Mano, é muita decepção, saudade, frustração, tristeza: natural você enveredar nesse caminho. Não cheguei à deterioração, mas foi uma experiência terrível. Você se descobre um ser humano totalmente diferente. Lá não tem crack toda hora, então acabam rolando umas abstinências, é foda”, faz uma pausa. E o que o motivou a parar? “Me foi dada uma missão: não é pra ser mais um – e sim um a mais. Vi companheiros morrendo. Na cadeia também tem tampa de bueiro, morou? Vi um cara pegar uma dessas tampas e dar na cabeça de outro, que morreu bem na minha frente. Brigavam por causa de crack. Tempos depois eu me olhei no espelho, tive uma conversa comigo mesmo e falei: já era. Nunca mais. Quis viver. Graças a Deus e ao rap, saí dessa.”

Na praça Júlio Prestes, já podemos ver o DJ Loo montando seu set e o resto da trupe de teatro a procura de um espaço para montar seu esquete. Os dependentes de crack que vivem no local e nos arredores se aproximam, olhando de esguelha. Dois fotógrafos da revista chamam a atenção. Quem são eles?, eles perguntam. Quem são eles?, nos perguntamos. Virão roubar nossas almas?, pensam eles. Virão roubar nossos equipamentos?, pensamos. De todos os lados há dúvidas. A essa soma de medos, frissons e malassombros se dá o nome de Nóia. Nem é preciso usar crack para ser um cara noiado.

Observando os frequentadores da praça, o rapper problematiza a legalização das drogas. “É verdade que, não liberando, as pessoas matam, morrem e faturam. Mas será que, com a liberação, não vai continuar a mesma coisa, à exceção de o cara não ser preso se comprar uma cotinha ali?”, questiona. Embora soe conservador, seu discurso é estruturado sobre as dúvidas – e pensado sob o ponto de vista do criminoso, do dependente, do pária social. “Prefiro pensar na educação das pessoas primeiro, aí elas decidem o que querem. Se você chega nessa praça e diz, ‘ó, tá liberado’, os irmãozinhos ali vão continuar roubando. Ok, você acaba com os grandes barões da droga. Mas e o problema DELES?”, aumenta a voz, apontando para os dependentes. “A droga é uma forma de anestesiar a vida, morou? Tenho que comer a comida do lixo, dormir no chão, e a droga me anestesia, não me dá fome. Olha, não sou o dono da verdade. Na periferia os caras não têm dinheiro, chapa. Eles vão continuar te roubando, hein? E o câmbio negro vai continuar mesmo assim. Talvez o playboy queira a liberação, porque pra ele vai ficar mais fácil: ele tem grana pra comprar. Mas quero saber é do problema DELES”, conclui.

Dexter sobe ao “palco” – um pedaço do gramado da praça Júlio Prestes, que, em frente à linda estação ferroviária de mesmo nome, acolhe a Sala São Paulo, uma das salas de concerto de melhor acústica no mundo – e dá boa-tarde a seu respeitável público: os cerca de cem dependentes de crack espalhados pela praça.

***

Acharam que eu estava derrotado/ Quem achou estava errado/ Eu voltei, tô aqui, se liga só, escuta aí/ Ao contrário do que você queria, tô firmão, tô na correria/ Sou guerreiro e não pago pra vacilar/ Sou vaso ruim de quebrar, oitavo anjo, do apocalipse, tenebroso como um eclipse/ É, seu pesadelo tá de volta/ No puro ódio, cheio de revolta/ Vou te apresentar o que você não conhece/ Anote tudo, vê se não esquece/ Você verá que não deixei me envolver, pra sobreviver por aqui tem que ser/ Mesmo no inferno é bom saber com quem se anda/ Senão embaça, vira, desanda/ Vejo vários irmãos tomando baque/ O barato é feio, bem pior que o crack…”

Difícil imaginar algo pior que o crack.

As cerca de cem pessoas na praça caminham incessantemente para lá e para cá com seus cachimbinhos e seus sacos de plástico preto, nos quais guardam seus parcos pertences. A maioria está suja e cheira mal. Acima do odor de suor, mijo, merda, lama, saliva seca e sangue pisado, o cheiro do crack, espécie de mistura de plástico queimado com gás sulfúrico, é onipresente. Muitos pedem um real, dois reais à reportagem. Não abro a carteira: se começar não vou conseguir parar. Enquanto alguns se aproximam do rapper, aos gritos de “Mano, não acredito, é o Dexter aqui!”, muitos não estão nem aí. Durante toda a encenação, das duas às cinco da tarde, cerca de trinta dependentes sequer saíram de seus postos: permaneceram encolhidos sobre seus cachimbos, de costas para o “palco”. Nada pode ser mais interessante do que o crack. O crack é tudo.

“Não é o traficante que vende a heroína para você, é você quem ele vende para a heroína”, escreveu William Burroughs em Junky, em que trata de experiências com a rainha dos opiáceos, a heroína. O mesmo se pode dizer do crack. Droga barata, de efeito entorpecedor rápido, duro e rasteiro. Droga burra, que, como sua mãe, a cocaína, não fornece expansão da consciência. Ao contrário: oprime-a. Provei duas vezes, há quase vinte anos. A sensação é a de bater em um muro de concreto a 200 km/h. Em quinze minutos a porrada vai passando, e, nessa dinâmica rumo à percepção natural, enquanto o ritmo cardíaco explode e os músculos estão endurecidos, a realidade parece mais vívida, brilhante e acelerada. Logo você quer voltar à porrada inicial. Mas na segunda porrada o carro está a 190 km/h, na terceira, a 180 km/h…

Nada será como antes. Como acontece com qualquer droga, aliás, de tabaco a LSD, passando por internet, TV, compras ou sexo, conforme defende, em seu obrigatório In the realm of the hungry ghosts, o médico canadense Gabor Maté, especialista em cuidados paliativos para a população de rua dependente de drogas. Sua tese é a de que todo dependente de uma substância precisa preencher um infinito vazio interior. Então vai ficando entorpecido; seu sistema nervoso, esfrangalhado; o hábito de encolher-se sobre a luz mínima de seu cachimbo torna-se tudo o que interessa, e logo seu corpo se torna, ele mesmo, uma pedra. O médico Marcelo Clemente, que atuou durante quase um ano na Cracolândia, escreveu um diário de crueza impressionante, no qual denunciou: na região, 100% da população de rua é dependente do crack, e muitos o compram da própria polícia. (Infelizmente, um edema pulmonar levou o corajoso médico aos 27 anos, em 2011; suas vivências foram reunidas pela viúva e podem ser lidas em blogdacraco.blogspot.com.br.)

***

Aqui todos os dias se parecem um com o outro, e não é fácil contá-los. Desse modo brutal vivem muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, nos perguntar se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória. Mas estou convencido que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular. Aqui, a luta pela sobrevivência é sem remissão, porque cada qual está só, desesperada e cruelmente só.

O parágrafo acima não é meu: é de Primo Levi e foi tirado de É isto um homem?, relato de sua experiência em Auschwitz. Cabe perfeito, como uma pedra em um cachimbo, para descrever a praça Júlio Prestes – um campo de concentração a céu aberto, uma penitenciária sem muros. “Só mesmo se o céu se abrisse e Jesus descesse pra vir tirar a gente daqui”, diz o “detento” Palmares, a voz rouca e áspera, o corpo vestido com o uniforme do Palmeiras, incluindo boné e chuteiras. “Só assim pra acabar com o bagulho.”

Portando farrapos como figurino, os atores do Dragão 7 misturam-se entre os frequentadores da praça. A certa altura, uma discussão entre duas atrizes – ou melhor, duas personagens – pega fogo, com direito a tapas e tabefes. Uma senhora vem apartar e começa a dar conselhos para as duas: “Se a briga é por pedra, eu arranjo outra aqui, vocês parem!”. E Dexter segue emparelhando hits: vêm “Saudades mil” e, dos Racionais, “Jesus chorou” e “Negro drama”, com suas quilométricas letras cantadas em jogral pelos 50 que permanecem na plateia.

No meio de “Sou função”, parceria entre Dexter, Mano Brown e Lelê Função, uma surpresa: o próprio Lelê aparece – tinha escutado o som lá das Grandes Galerias e veio correndo. Depois da participação de Lelê, é dada a deixa para uma session de freestyle. MC Dexter não contém a emoção quando percebe que até mesmo naquele apelidado inferno há talentos inegáveis. Cerca de 50 pessoas dançam em torno de Dexter e DJ Loo. Um rapaz muito negro e alto, de cerca de dois metros, que havia se aproximado de modo vacilante e muito desconfiado, começa a gingar em movimentos espasmódicos, lembrando um zumbi que lentamente volta à vida. Dez pessoas se enfileiram, secas pelo microfone. Garotas e garotos testam coreografias, tirando onda entre si, rindo. Crianças, velhinhas e grávidas assistem fumando cigarro, maconha e crack, tudo entremeado a goles de cachaça. Um garotão branquelo, usando roupas negras dois números maior, circula oferecendo pedras coloridas, “preciosas”, segundo ele. Com um bicho de pelúcia rosa enrolado no pescoço à guisa de cachecol, uma menina revela: “Esse é o dia mais feliz da minha vida desde… Pra falar a verdade, não sei se tive dia feliz na vida”, a frase nascendo sorridente e terminando oca.

Uma dupla de visual maneiro, um de azul (o Meio-Dia) e o outro de rosa (o Meia-Noite), chega portando soundsystems diminutos – lembram aqueles rappers dos anos 1980 que carregavam enormes boombox nos ombros. Meia-Noite arrepia: monopoliza o microfone por dez minutos contando uma história absurda sobre quando Fábio Júnior se perdeu na Disneylândia e foi parar na Zumbilândia. Dexter me encara com os olhos arregalados a cada surpreendente rima do sujeito, que, por conta da voz muito rouca, lembra Funk Buia, do Z’África Brasil, mas com um flow muito mais rápido. Depois da sessão de freestyle, Meia-Noite me diz que seu sonho era gravar um disco – mas que só chegou a abrir o show de uma amiga em Osasco. Tem 30 anos e mora na Cracolândia há 15, vendendo soundsystems com o irmão Meio-Dia. “Nunca vi show grátis aqui pra gente, isso nunca aconteceu. Ninguém vem aqui ver a gente”, afirma. Ao seu lado, o capoeirista Miguel Castilho gira um passo de break com as costas na lama da praça.

Findo o freestyle, Dexter é cercado pela extravagante plateia – um mini Woodstock do crack –, que lhe pede conselhos. Seu dom de pastor não nega um sermão ao pé de ouvido de cada um. Mas ele também ouve muita confissão. Um rapaz de cachimbo na mão diz algo que o deixa bolado. Interrompe o papo, puxa o microfone e manda: “Vamos pra última?”. E puxa o clássico: “Ei, irmão, nunca se esqueça/ Na guarda, guerreiro levanta a cabeça, truta/ Onde estiver, seja lá como for/ Tenha fé, porque até no lixão nasce flor”. Enquanto alguns prosseguem no ritual de acender o cachimbo de costas para Dexter, muitos não seguram o choro ao som da poderosa “Vida loka”. “Às vezes eu acho/ Que todo preto como eu/ Só quer um terreno no mato/ Só seu/ Sem luxo, descalço, nadar num riacho/ Sem fome/ Pegando as frutas no cacho/ Aí, truta, é o que eu acho/ Quero também/ Mas em São Paulo/ Deus é uma nota de cem/ Vida loka.”

E a hora mágica chega. Mágica para os fotógrafos; para os seres da praça é a hora trágica, a anunciar a noite, outra longa noite ao relento. A equipe desmonta o equipamento; o MC dá os últimos salves à rapaziada. A trupe de teatro sai leve, empolgada com a troca de energia com os frequentadores da praça, mas Dexter segue de cara amarrada. “O foda é isso, meu irmão”, murmura, a caminho do estacionamento, “a gente vai, eles ficam. Conheço bem essa sensação”. A pior prisão, ladrão, é a da mente.

***

Mergulhamos no trânsito em silêncio por uns 40 minutos. Pouco antes de chegar à produtora, Dexter finalmente abre o bico. “Mano, naquela praça encontrei cinco caras que estiveram comigo no exílio. Cinco, irmão.” Ele interrompe a fala e me olha no olho. “Sabe quantos caras encontrei aqui do lado de fora que hoje estão bem, com família, casa, carro e tal? Dois. E lá, cinco. Um deles era da minha cela. Sabe o que ele me disse, irmão? Que se eu precisasse de qualquer coisa era só pedir. O cara quis me vender pedra”, conta. “Às vezes dá vontade de concordar com aquele palmeirense, mano, que disse que só se o céu se abrisse e Jesus descesse pra acabar com o bagulho. Acho que ele tem razão, morou?” E, olho no trânsito, volta ao mutismo enquanto ouvimos de novo o rap póstumo de Sabotage. No olhar de Dexter, uma lágrima dura, lutando para não cair.

[Reportagem escrita para a revista Efêmero Concreto em setembro de 2013]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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