Uma entrevista com João Gilberto Noll feita há 20 anos
Em 1999 eu co-editava a Revista A, ao lado dos amigos Luiz Gustavo Bartolomei e Jarbas Galhardo. Internet a lenha: primeira revista de literatura na internet do Brasil, a Revista A havia sido lançada em 1996 e teve 4 edições anuais. Sim, levávamos quase um ano inteiro para programar em HTML o design caprichado da revista, da qual quase nada restou – ou seja, vocês vão ter de acreditar em mim. Encontrei via Wayback Machine do Internet Archives a capa daquele que foi o último número da Revista A, que contém, entre outras coisas, ensaios de Lucas Bambozzi e Paul Lafargue, poemas de Paulo Leminski e Ricardo Miyake, ficções da Índigo e do Guilherme Ignácio:
Mas – coisa de quem não tem o que fazer em feriados ensolarados -, fuçando em velhos alfarrábios digitais, encontrei num HD empoeirado uma entrevista que fiz para o quarto e derradeiro número da revista, com João Gilberto Noll. Travava com o escritor gaúcho uma conversa desde 1991, quando li uma entrevista sua a respeito do lançamento do romance O Quieto Animal da Esquina: “A literatura não me trouxe nada, nem casa, nem carro, nem dinheiro, nem um amor, nem filhos. A literatura só me trouxe a vida”. Fascinado com aquele statement, fui atrás do livrinho e chapei. Não posso deixar de confirmar que, ao lado de Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Ignácio de Loyola Brandão, Noll foi o autor brasileiro que mais li, quando começava a escrever meus primeiros contos.
Consegui seu endereço e passei a enviar pelo correio meus primeiros contos. Para minha surpresa, Noll me respondeu, sempre com muita disposição e simpatia, dando dicas para melhorar os contos, entre críticas e sugestões, em uma caligrafia sinuosa e elegante – em cada página das cartas, as linhas mantinham um traçado rigoroso, perdendo a pauta e caindo num ziguezague nas últimas linhas. Infelizmente perdi também tais cartas – de lá pra cá, me mudei de casa umas 20 vezes, e os emails que trocamos também desapareceram na Nuvem. (Alguém um dia deverá abordar a questão da ausência de correspondências entre os escritores da Geração 90, perdidas por conta do gap entre missivas escritas a mão e emails digitados em servidores pouco confiáveis, como os pioneiros Hotmail e Yahoo!, cujo conteúdo perdi inteiramente. Fui muito desleixado com minha própria memória. Coisa de maconheiro. Aguardo ansiosamente pela atuação dos ciber-arqueólogos do futuro.)
Mais tarde acabamos ficando amigos, dividindo algumas mesas de bar e também de literatura, e, em junho de 2010, tive o prazer de editá-lo na coletânea Essa História Está Diferente, uma antologia de ficções breves que reunia escritores repensando as canções de Chico Buarque – gente como Noll, Mario Bellatin, Rodrigo Fresán, Alan Pauls, Mia Couto, Carola Saavedra, Cadão Volpato, Luis Fernando Verissimo, Xico Sá e André Sant’Anna. Noll escreveu um conto espetacular, uma quase novela chamada “A calça branca”.

A conversa de pouco mais de três horas que segue abaixo rolou em uma passagem de Noll por São Paulo, no Fran’s Café da rua Fradique Coutinho, 1139, Vila Madalena, em que também funcionava uma livraria e a editora Hedra – ponto de encontro zero entre os escritores da Geração 90 -, onde é hoje a Casa Plana. Fim de 1999, eu tinha acabado de lançar meu primeiro livro, Os Infernos Possíveis, e Noll, então com 54 anos, vinha de lançar Canoas e Marolas. Dias depois telefonei para Noll, já em Porto Alegre, para concluir algumas questões que ficaram em aberto. Com sua costumeira franqueza e entrega, contou como é seu processo criativo, como desenvolve as personagens ociosas que são incessantes buscadoras, o que pensa da atual literatura brasileira e revelou ter passado um mês internado em uma clínica psiquiátrica – um fato pouco conhecido de sua biografia.
Saudade de Noll e de sua voz encantatória, agora encantada.
REVISTA A O livro Canoas e Marolas, da coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva, tematiza o pecado capital da preguiça. Nele, mais uma vez comparece um dos grandes motores da sua escrita: o narrador buscador. Um ser que procura algo que não sabe e que, ao mesmo tempo foge de algo que não sabemos, num fluxo de ação furiosamente contínua. Neste livro, porém, o protagonista está imerso na inação como se encapsulado no próprio corpo. O corpo, território de êxtase, sacrifício e revelação na sua obra – o que o aproxima, de certa forma, da vertente barroca brasileira -, aparece em Canoas e marolas como um entrave. O protagonista, entrevado e doente, talvez buscando na morte – que a filha poderia trazer -, uma solução final, em sacerdócio do ócio vaga desesperadamente por uma ilha sem nome até encontrar um pouso final entre índios, pronto para a morte [assim como o protagonista de Hotel Atlântico, um de seus primeiros livros]. Entre uma pausa e outra, o ócio, esse vagabundear inútil e raivoso, é na verdade um de seus grandes temas. Queria que você falasse um pouco sobre essa profissão de fé no deambular. É uma metáfora do homem contemporâneo, que espera uma iluminação de dentro de sua inércia? Afinal, o que busca o ocioso?
NOLL O que busca o ocioso? Acho que ele busca uma verticalidade qualquer que possa ancorá-lo em algum espaço, algum ambiente, algum cenário. E faça com que ele não precise mais viver com essa ânsia descabelada. Viver sem essa piração, sem esse ideal supremo de alguma coisa que me parece inatingível, que parece inominável mesmo. E nesse sentido acho que encontrei um certo tipo conhecido da personagem que, como você acabou de salientar, talvez tenha encontrado realmente aquilo que se convencionou uma força positiva, que seria… Os índios, que seriam as forças inanimadas, como a pedra. Acho que é um franco processo de mineralização desse homem. Não acho que seja pessimista ou otimista, não é essa a questão. A literatura ou a escrita é realmente um setor simbólico, não está realmente tentando apontar uma pedagogia construtiva “Faça como esse homem!”. Eu não queria este homem ocioso perto de mim por uma hora.
REVISTA A Por isso que você botou ele no livro? Expulsou ele de você?
NOLL Exatamente: não estou dizendo que ele é uma graça, que ele realmente é o caminho possível. Ele está ali atuando diante de um contexto que procuro revelar. Mas é um ator simbólico de uma situação de saturação – onde não se encontra essa verticalidade, como estou chamando nesse momento. As coisas são muito en passant, os contatos são muito de raspão. Não há realmente nesse momento um compromisso mais elaborado entre circuitos sociais, humanos e afetivos que estão aí à disposição e me parece aí realmente que ele encontra, de uma certa forma, uma disponibilidade absoluta naquele garoto que é quase uma coisa. É quase também outro objeto da natureza, no sentido de… vazio. Está vazio de comida, está vazio de tudo, de um estofo humano, mas que tem uma coisa que acho importante, que é essa disponibilidade de ir. Acho que pela primeira vez nos meus livros há essa companhia. E claro então que, digamos assim, essa espécie de companhia incondicional, só acontece também porque são seres definhantes, quer dizer, não tem mais coisa nenhuma a perder. Você falou do barroco. Acho que sim: tem a ver um pouco com alguns, digamos, preceitos evangélicos, de uma forma muito inconsciente – porque não sou um sujeito, quando escrevo, preocupado em salientar religião em termos institucionais: não tenho religião. Tive na infância: católica, fui coroinha, participei da liturgia, aquela coisa toda. Mas hoje sou ateu, não acredito que possa haver realmente uma ponte com alguma coisa que esteja em outra condição que não seja a minha. Não me passa pela mente tal possibilidade. Mas sem a aventura extremada do tipo “Vem comigo! Vamos pra onde for!” – que é uma coisa muito do Evangelho, não? Sabe, minha proposta não é do conforto físico, não é do conforto moral, não é do conforto de espécie alguma, é de levar avante uma trajetória que possa talvez esconder alguma coisa que você até hoje não soube… vislumbrar. Que só pode ser vislumbrada na caminhada, na jornada, não no conforto pequeno-burguês. Isso acho que é uma coisa muito do cinismo primitivo. Esse livro acho que ilustra um pouco isso, a salvação está no despojamento. Claro: porque não acredito mais na crônica sobre a classe média. Acho que Nelson Rodrigues já fez tudo que tinha que fazer sobre isso, genialmente, pateticamente, maravilhosamente. Eu não acredito realmente em laços familiares e institucionais, vamos então fazer uma crônica dos costumes, vamos fazer um retrato dos que estão diante desta perdição 24 horas por dia. E nesse sentido até tenho uma certa moral – um desprendimento das coisas por opção, um desgarramento pela perdição, até, não é? Pela consumação, talvez? Sim, ser consumado…É tal a sede de existência que pra viver plenamente tenha menos tempo de existência. Note que o “eu” que estou dizendo é o “eu” do livro, né? Já que essa trajetória de luta exaustiva consome mais rapidamente. De certa forma, esse livro fala dessas coisas – apenas ilustrando a questão da preguiça. A preguiça é um tema que me acompanha há muito tempo. Estou fazendo meu próximo livro e realmente encontrei aí um limite – e esse limite é aquela fronteira do final do livro, uma fronteira do próprio nada, do próprio vazio, para o próprio outro lado. E há também um leve humor – aqueles cabelos brancos que voam com o vento… Tem um pouco de Lord Jim, aquela versão, sabe?
REVISTA A Você falou do Lord Jim… eu ia até comentar que esse final me lembrou o Coração das Trevas, em que o Coronel Curtis, de certa forma o pai daquela tribo de bárbaros, por eles acaba sendo consumido. Em seu livro o velho não é morto por eles, mas fica preso. E aí me pareceu que era também o que os índios iam fazer com o personagem.
NOLL Eu acho também. Eu quis deixar em aberto, mas acho que ele vai se foder nesse final.
REVISTA A Você poderia ver o ócio como uma espécie de negação do mundo contemporâneo? Uma revolta do sujeito em se tornar mercadoria? Desse ângulo, você acredita que a influência da literatura americana na sua obra se articula num discurso político que, de certa forma, critica a busca pelo lucro, tão encarnado no american way of life, crítica tão presente nos road novels dos beatniks?
NOLL Ah, sem dúvida. Você não pode esquecer que sou dessa geração, que encontrou a sua juventude realmente no final dos anos 60, começo dos 70. Então realmente estou inoculado com o veneno da crítica ao lucro. E depois, Sartre foi muito importante para minha geração, escreveu sobre a negação dos caminhos desse aspecto meramente utilitário, acachapante. Sem dúvida. E tem também um pouco do marxismo, que me marcou. Isso tudo se reflete na minha própria experiência, evidentemente – que é fundamental pra que a minha literatura seja assim e não assado. Não que o que faça seja biográfico – factualmente, nunca vivi aquelas coisas. Essa experiência talvez seja o retrato daquilo que pode ser chamado de alma. Aquilo que nos faz humanos e não pedras. Apesar disso, toda questão da contemplação é muito forte no que escrevo – talvez por isso tenha agarrado com gana a questão da preguiça: é uma questão que aparece em todos os meu livros. A contemplação é a chave do que faço. Minhas personagens perambulam à procura de lugares em que eles possam, enfim contemplar – e não serem apenas uma mercadoria diante de outras mercadorias: onde possam ser realmente seres no esplendor de um repouso.
REVISTA A Puxando mais para esse lado político: você falou que foi bastante tocado pelo Marxismo. Considera-se um socialista, hoje em dia?
NOLL Estou muito confuso com essas coisas, é tão difícil você realmente dar uma síntese demonstrativa do que vai pela sua cabeça diante das questões macro-políticas. O que posso te dizer é que queria que o mundo fosse completamente diferente do que é. Não é nem uma questão pessoal. Acho que a aventura é uma questão fundamental – quer dizer, antes de se machucar, antes de se ferir: mas tentar, tentar, tentar em direção ao desconhecido. Só ficar no conhecido não dá. E a literatura tem exatamente que mostrar essa travessia penosa. A gente não tem também um século de existência para ver a travessia se consumar. O escritor é um ser que tem que ter culhão pra iluminar essa questão. Ainda há pouco estava falando de uma aspiração, alguma coisa que estaria incluída na dimensão da aventura – e agora já digo que talvez a a condição humana seja franciscana mesmo. Talvez seja esse o sentido. Tem o zen, mas também tem o espernear.
REVISTA A O barroco é engraçado porque tem uma presença tão forte na escrita brasileira, mas ao mesmo tempo, pelo menos ultimamente, na literatura brasileira, não tem sido vista como um dos pilares da nossa literatura. Pega aí Guimarães Rosa e Clarice Lispector, que talvez sejam os momentos máximos disso – o restante é uma coisa mais dinâmica, mais reta, mais seca. E talvez, mais fácil…
NOLL Existe uma média de literatura urbana que a gente está adotando como estética que acho muito prejudicial à criatividade. O cara recatado não pode falar daquilo que não é falado – tudo em prol de um modelo narrativo dinâmico, funcional, que chegue a entretenimento o mais rápido possível. É um bálsamo de gelo, sabe? É o princípio do entretenimento, não é aquele bálsamo realmente bíblico. Parece que está muito asséptica…
REVISTA A Uma prosa prozac?
NOLL Exatamente.
REVISTA A E supostamente transgressor, às vezes, isso que acho engraçado… Dentro desse lance da preguiça, esse foi um tema que você escolheu, que lhe foi apresentado? E, fazendo parte de uma coleção que se chama Plenos Pecados, você acredita que existam pecados, ou hoje em dia se peque ainda? Ou existam grandes pecados, e a preguiça seja um grande pecado para o nosso mundo?
NOLL Quando eles me propuseram escrever nessa coleção, havias três pecados disponíveis: o pecado da preguiça, da avareza e da soberba. Talvez a soberba tenha me balançado um pouco, mas da avareza nem passou pela minha cabeça falar – a não ser por estar me sentindo sem dinheiro. Não precisei de muito pra me definir pela preguiça. Afinal, toda a questão do vagabundo é muito forte pra mim. A palavra pecado é um palavra coercitiva talvez. Mas pra mim não tem muita importância que se chame pecado, ou transgressão. Realmente me encanta na atividade literária você mexer com o Mal. Porque nesse sentido não tem nada a ver com a literatura politicamente correta. Não estou vendo as coisas de cima, com um olhar complacente, como as minorias – o Mal é um atrativo muito forte: quero justamente apontar pra ele, levantar esse tapete onde se coloca debaixo todos os detritos que não se quer que sejam vistos socialmente. Não sei como a gente pode iluminar o drama humano com boas intenções. A convulsão é passar da órbita mesmo, sem ter gente pra afinar, pra dar uma sinfonia adequada. Por isso acho muito importante dar vazão a esse sentimento mais selvagem, mais inadequado, mais gauche. Acho que a literatura que me interessa é essa que não consegue se adequar. Mas sabe? Às vezes fico com vontade de pedir perdão de joelhos para os leitores…
REVISTA A Por quê?
NOLL Por não poder realmente oferecer algo mais palatável. Às vezes sinto falta de outro veículo de expressão, como o cinema. Agora tinha vontade de fazer um musical, mas em literatura você não pode fazer um musical…
REVISTA A Todos os seus livros tem um fortíssima carga imagética. Como é a sua experiência com o cinema?
NOLL Teve um conto meu, “Alguma coisa urgentemente”, do meu primeiro livro, o único de contos, que é o O Cego e a Dançarina, que foi adaptado para um filme, chamado Nunca Fomos Tão Felizes. Mas isso que você chama de imagético eu chamo também de pele da linguagem. Que tem uma musicalidade. Alguma coisa ligada à fome de beleza, para não dar somente essa desconfortável, inadequada, acho que é uma certa compensação, pelo menos na minha luta de chegar à poesia. Estou querendo cada vez mais esse hibridismo – prosa e poesia – mas que não seja aquela prosa poética um pouco engalanada, que não me interessa. Mas reconheço no meu texto uma vertigem musical. Procuro perseguir a miséria humana sim, mas, entre o autor e o leitor, existe a mediação dessa linguagem – que não precisa concordar com a miséria no estado cru… Acho importante que exista realmente uma questão explícita onde possa ser apresentado realmente um estilo musical – que tenha, digamos, um pouco de religiosidade, de repetição, de ladainha. Isso está muito presente nesse último livro. Claro que esta busca pela beleza não passa pelo ideal clássico, cadavérico, pronto, amplamente posto nos altares; mas uma beleza que seja furiosa, que seja até deselegante, horrorosa, feia. A literatura não é um documento naturalista. A gente tá empapuçado de naturalismo. E a literatura necessita d uma transfiguração estilística. Aquela utopia do Álvaro Ítalo: toque no meu poema, toque no meu poema. Minha utopia hoje é dissolver as fronteiras entre prosa e poesia.
REVISTA A Em seus livros sinto um compromisso do narrador de contar tudo que acontece com ele – sem nenhuma restrição ou concessão: uma fidelidade absoluta. Queria que você fizesse a ponte entre essa ética da sinceridade e da sua própria devoção à literatura. A gente conversou outro dia, você comentou de todas as coisas que você não realizou por causa desse compromisso com a literatura.
NOLL É verdade. Meus protagonistas têm uma fidelidade canina a eles próprios. Existe um pacto de não esconder nem aquilo que é irrelevante, que é inútil – como, por exemplo, uma mijada. E, realmente, essa devoção da minha pessoa ao fazer literário às vezes me traz um ódio da literatura medonho. Pelo fato de ter renunciado a algumas coisas. Não é possível tantas renúncias, tanto desprendimento, tanto despojamento, franciscanismo… Não tenho pouso de ir atrás da aventura, onde pode se descortinar coisas que até então são novas.
REVISTA A Você se lança ao desconhecido tanto na vida quanto na literatura?
NOLL Pode ser…Eu acho que talvez…Não é que me lance à aventura, isso realmente não tanto, realmente não. Nada assim grandioso. Mas sou um sujeito que vivi um tempo sem pouso, sem família, sem uma casa própria, sem um carro, sem computador. Por uma série de razões, mas tenho um pouco essa tendência. Sacerdote da causa literária – que é uma coisa que me irrita profundamente hoje. Principalmente quando vejo o pessoal da minha geração com um certo conforto – é necessário, também, por que não? Realmente agora estou num momento de instalar minhas coisas. Computador é a próxima etapa…
REVISTA A Você vai começar a escrever no computador?
NOLL É.
REVISTA A Mas você escreve tudo a mão?
NOLL É
REVISTA A Uma vez li, não sei aonde, que você costumava escrever num bar…
NOLL Já tive essa fase.
REVISTA A Mas como é que você consegue escrever em público?
NOLL Eu ia num bar fechado, aqui em Porto Alegre, que é mais uma whiskeria – onde os casais, digamos, o chefe com a sua secretária, se encontram à tardinha. Eu ia cedo. E cedo era completamente deserto, tinha o almoço e depois à tarde ficava aquela pasmaceira e aproveitava pra escrever. Chama-se Camaleão. À beira do Guaíba.
REVISTA A E você ficava bebendo e escrevendo?
NOLL Mais ou menos. Hoje não bebo uma gota.
REVISTA A Não?!
NOLL Não, estou te dizendo que estou ficando um homem respeitável!
REVISTA A Então você ficava 5, 6 horas escrevendo direto?
NOLL Religiosamente. Com muita disciplina, trabalhador braçal. Pegando meus cadernos, tal, minha pasta, levando pra escrever. Nada muito romântico, tipo escrever só quando tem vontade. Sou muito disciplinado. Quando estou escrevendo um livro, não escrevo muito nos intervalos não. Agora, tem esses textos pra Folha de S.Paulo.
REVISTA A Você faz um por semana ou você já tem vários guardados?
NOLL São dois… tenho uns 2 ou 3 continhos na frente. Gosto muito deles. Gosto porque estão do lado do horóscopo, e não tem nada a ver. É um convite à vertigem – e no horóscopo tem um convite ao pragmatismo. Pragmatismo astrológico. Não sei como conseguem fazer isso hoje em dia. Até o irracional conseguem domar…
REVISTA A Como é sua disciplina?
NOLL Esses dias estou saindo de manhã sempre pra dar uma caminhada. Estou me banhando um pouco de uma coisa assim espartana, cada vez. Mas é uma questão da idade, também, não é, cara? Tô com 53 anos. Tenho que ficar bem. Realmente, estou encontrando uma serenidade que talvez não tenha encontrado antes.
[Segunda parte – conversa telefônica]
REVISTA A Já que você falou do Camaleão, deixa eu falar numa particularidade na sua obra, que é a dissolução do eu em vários eus. Uma coisa que não se contenta somente com uma solução metafísica, porque as suas personagens, como já disse, são muito físicos – inclusive até mijam… Agem o tempo todo, fazem um monte de coisas e no meio desse fluxo acabam tomando atitudes surpreendentes até para eles mesmos. E até mesmo se transformando concretamente em outras coisas. Por exemplo, quando a narrativa está em primeira e vai para terceira, como se os personagens se vissem de longe, ou quando de repente a personagem mesmo se torna outra coisa, como aquele irmão que vira mulher, no A Céu Aberto. Quer dizer, tem uma linhagem na literatura moderna, acho que desde o Poe de “Metzgernstein”, que são os escritores que tematizam essa multiplicação ou fragmentação do eu: Pessoa, Lautréamont, Gérard de Nerval, Breton, Kafka, Cortázar. Você se incluiria nessa linhagem? Você acredita que existam linhagens literárias?
NOLL Eu acredito que existam. Mas nem sempre são linhagens onde você vá se filiar conscientemente. São confluências. Realmente acho que, se existe um autor abaixo de mim, este é Clarice Lispector. Pra generalizar num autor fundamental e não dar a impressão de que falo apenas das escritoras mulheres – falo como um todo: acho a Clarice um autor realmente fundamental. Não sei até que ponto sou influenciado por ela – minha prosa é muito masculina, tem coisas que não estão presentes na Clarice. Mas evidente que foi uma referência fundamental. Principalmente ler A Paixão Segundo GH. E é verdade – a dissolução do eu está muito presente nos meus livro – há uma ânsia, um desejo de imersão no todo muito forte. A tragédia se instala quando a gente se coloca a impossibilidade da fusão. Todos os grandes heróis trágicos são aqueles que estão realmente desgarrados da pólis, por algum motivo. Alguma transgressão. Então é isso – de alguma forma, essas minhas personagens estão comprometidas com esse desejo ardente de se fundir cosmicamente. Isso é a matemática já presente no próprio Freud. Esse sentimento oceânico de se impregnar no inanimado, nas formas mais simples e rudimentares da tecnologia. A dor, muitas vezes, vem desse rompimento, dessa fragmentação, desse sentimento de desgarramento, de estrangeirismo. Os orientais consideram uma ilusão essa cápsula chamada de eu, que é uma coisa muito esquisita mesmo… Essa individualidade, esse ego é realmente a causa de todas as dores: a gente está separado. Mas também não vejo outra maneira de você viver entre seus pares, entende? São partículas mesmo se relacionando. Minha literatura lida muito com essa utopia de querer que o leitor realmente fosse o próprio ator do livro. Nesse sentido, acho literatura algo extraordinariamente erótico, sem dúvida. Uma postura de se fazer amado e chegar ao outro, à inteligibilidade do outro, ao desejo do outro.
REVISTA A Você falou que a sua literatura estava te levando a uma fusão de poesia e prosa, e ainda dentro desse tema da dissolução do personagem, e também do tempo e do espaço, às vezes. Uma coisa meio vertiginosa, querendo integrar o corpo ao mundo. Você acredita que essa sua busca vai acabar trazendo uma literatura que renuncia ao eu? Ou então em que acaba contaminando toda a realidade, de forma a extinguir os conceitos de verossimilhança, realismo e objetividade? São duas coisas: ou o se tornar tão humilde que desaparece – um conceito zen de que você falou agora -, ou o contrário, o tornar-se absoluto, um ser literário cuja subjetividade é total. São dois caminhos, não?
NOLL Acho que literatura é uma questão ética profunda. Esse dilema que você acabou de apontar realmente se insere perfeitamente na minha questão literária – e é uma questão muito dramática. Qual vai ser meu próximo passo em relação a essa dramaturgia do eu? O Drummond já apontava isso, “mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”. Realmente, estou num sério debate interno em relação a isso. Muito sério mesmo. Há duas possibilidades aí. Realmente: partindo da terceira pessoa, me divorciaria desse personagem aí, esse homem que vara todos meus livros, realmente me divorciaria, romperia.
REVISTA A Acharia muito estranho ler um romance seu em terceira pessoa.
NOLL Não sei se vou ter forças pra isso, se realmente é possível. É uma questão que vejo com muita dramaticidade. Uma questão quase de vida ou morte. O próximo passo ter uma autenticidade fundamental na arte. A narrativa, para mim, ainda é muito importante. A gente tava falando antes da história da fragmentação e a vimos de uma ótica metafísica – esse desejo continental, de abraçar continentalmente as coisas, ser junto com o mundo. E, ao mesmo tempo essa diluição do eu é uma crítica ao nosso status quo. Acho que hoje o eu também é algo bastante sucateado, né, cara? Muito sucateado na cultura de massa. As pessoas cada vez mais parecidas. Nesse sentido, a literatura é um grito do indivíduo. Mostra que esse indivíduo está realmente depauperado, em vias de extinção. Por isso, penso que minha literatura é também muito política. Sou um sujeito mais ou menos ligado ao realismo social e mais ou menos ao psicológico.
REVISTA A Outro tema recorrente em seus livros é o surgimento de algum artista que lida com uma arte não-convencional. Essa arte acaba se transformando em seita ou tem um caráter sectário: a Sociedade Minimal, nos Bandoleiros, o Teatro da Aparição, no A Céu Aberto, e agora vem o Programa da Ablação da Mente, em Canoas e Marolas. Não são extamente tipos de arte, mas uma espécie de filosofia estética, idealista, que aponta para uma tranformação da sociedade, porém sempre é mostrada com uma ironia e ceticismo, não? Um tema que também surge em escritores como o Paul Auster, Raymond Carver, Don DeLillo. Na Itália o Italo Calvino também fazia também uma ficção crítica da vanguarda, algo que no Brasil se desenvolve no Bernardo Carvalho. Você reconhece nesse tema uma crítica consciente a essa espécie de arte que procura sempre a ruptura, a iconoclastia, e que acabou se transformando numa espécie de tradição, terminando conservadora?
NOLL Sim, é muito simétrico aquele círculo de bandoleiros e agora a Ablação da Mente, seguindo a elaboração de um mundo utópico – porém muito fechado dentro de si mesmo. O Teatro da Aparição talvez seja algo que não veja similar, mas há o sectarismo, sua fala, rima teatral, é sectária, algo vanguardista. Mas vejo mais criticamente este Círculo Minimal, nos Bandoleiros, e a Ablação da Mente, no Canoas, como algo absolutista, que tenta controlar. Essa crítica é contra esse princípio absolutista de achar que a coisa nazista tem algo positiva. Não! Nazista, fascista tem quer ser erradicado. Não concordo com esse relativismo assim tão festivo
REVISTA A Isso é muito americano…
NOLL Demais.
REVISTA A Você não encontrou nenhuma sociedade minimal em Boston, não?
NOLL Não. Mas… elas estão por aí. Mas agora me lembrei do que a gente estava falando no momento em que você trocou pela última vez a fita. O que faço não tem necessariamente uma mensagem explícita, crítica, cultural que seja. Existe uma outra utopia forte, que é a utopia de aparição. Por isso que tem tanto sangue às vezes, não é? Algo até um pouco ritualístico… Não pára de sair sangue… Saindo sangue um tempo, direto… É uma vontade de apresentar a vida com uma imposição quase biológica – quase uma celebração materialista da cena. Realmente eu, mesmo dentro dessa atmosfera de não-explicitação de mensagens políticas, pego coisas absurdamente atuais – como menor abandonado, sem-teto, outras questões sociais. Minha ficção trata dos deserdados sim. Dos excluídos. É uma literatura da exclusão, reflete sobre o estado de exclusão total. A própria alma, a própria natureza do indivíduo fica radicalmente comprometida. São personagens que às vezes só conseguem realmente sobreviver no estado de evasão, como esse de Canoas. Esse último é de uma negação profunda, ele nega o que é, nega as coisas como elas se apresentam de uma forma absurdamente radical. Não consegue aderir à cena do mundo. Ao mesmo tempo, se recusa a morrer. E vai realmente, “fugir” com aquele garoto, que também já está completamente alienado de referências, é um ser absurdamente ao léu – um léu mental, um léu em todos os sentidos.
REVISTA A Filhos que procuramos pais, pais que procuram os filhos, irmãos que se tornam amantes. Por que essa obsessão pela família? Você até falou do Nelson Rodrigues, mas tem uma obsessão familiar meio enviesada.
NOLL Isso é verdade. Tenho sim. Talvez já não consiga fazer a crônica do quadro familiar, como ele. Talvez precisasse ser um sujeito que acreditasse naquela família típica. Mas não sou um autor que tem tato, nem tempo, nem disposição, pra fazer uma cena dos costumes horripilantes da família tradicional.
REVISTA A Tem um cachorro aí?
NOLL Não aqui na minha casa.
REVISTA A Ah. Eu ia achar estranho se você tivesse um cachorro.
NOLL Estou até pensando nisso.
REVISTA A É mesmo? Você é bem solitário, né?
NOLL Estou querendo sair da condição de solidão.
REVISTA A Você nunca casou?
NOLL Fui casado já, sim. Mas de uns tempos pra cá ando muito só. Em função inclusive desse sacerdócio, a devoção por literatura.
REVISTA A Como é que você começou a escrever?
NOLL Comecei a escrever como um derivativo da música, cantava, gosto de cantar. Estudei música para ser um cantor lírico, alguma coisa assim. Cantava Ave Maria, de Schubert, em casamentos…Era tenor. Mas entrou um pouco uma ingerência familiar nisso. Olha a família de novo aí… Chegou a adolescência, rompi com essa coisa de estudar música.
REVISTA A Sua família é de classe média?
NOLL Classe média. Média sacrificada, né?
REVISTA A De onde que é? De Porto Alegre mesmo?
NOLL Porto Alegre. Bem, aí comecei realmente a sentir que a minha era fazer arte. Nesse tempo houve uma crise imensa, em que realmente fui posto nas mãos de um psiquiatra. Dessa crise talvez tenha começado a querer escrever.
REVISTA A Chegou a fazer psicanálise?
NOLL Fiz, mas depois. Essa vez foi uma coisa mais psiquiátrica e medicamentosa. Na adolescência.
REVISTA A Internação?
NOLL Um mês. Não queria estudar, era muito tímido, muito fechado, não conseguia ir ao colégio. Não estava louco não. A loucura foi ter me posto nas mãos de um psiquiatra que tinha ligações com uma clínica psiquiátrica, né? Não foram meus pais que me colocaram na jaula. Foi o psiquiatra que achou que o melhor era isso.
REVISTA A Então você começou a escrever nessa época?
NOLL Sabe, isso não contei para alguém que pudesse fazer uma matéria em cima… Mas comecei a escrever por volta dos 17 anos.
REVISTA A Fez faculdade de…
NOLL Letras.
REVISTA A Sua formação acadêmica contribuiu pra virar um escritor?
NOLL Não. Levei muito tempo sem saber o que queria fazer em termos de arte. Nesse tempo vim escrevendo. Tentei também o teatro e o cinema. Mas sou um sujeito tímido – hoje nem tanto, mas sou. Na literatura tudo bem, as coisas andam – mas, como cidadão…A realização de algum projeto teatral ou cinematográfico gorou, vamos dizer assim, pela minha timidez. Ser escritor é uma maravilha.
REVISTA A Talvez a única saída?
NOLL A literatura realmente está me salvando, né, cara? É uma questão de salvação. Como indivíduo, estou falando.
REVISTA A Você falou desses projetos… estava fazendo peças, chegou a trabalhar com filmes, ou era só uma vontade?
NOLL Uma vontade. Eu escrevi uma peça inclusive, nos anos 90, foi encenada aqui em Porto Alegre, chama-se Quero Sim. Pouca gente sabe disso. Até porque foi uma coisa muito circunstancial. Fiz muito interagindo com os atores. Havia um projeto. Só por isso as pessoas viram a peça. Havia um grupo que queria montar alguma coisa, aqui em Porto Alegre, já estava se fabricando um texto, que eles abandonaram quando me chamaram pros ensaios. Aí começamos, eram dois atores e um diretor, levava trechos da peça pra eles, eles liam, e assim foi. Uma coisa que nunca me aconteceu antes, escrever em grupo. O texto é meu, integralmente meu, mas foi gerado naquilo que os atores me apresentaram, de forma oblíqua. Acho que se estivesse sozinho, seria uma coisa completamente diferente. É um texto poético, mais poema dramático, não tem muita ação. Todo o núcleo da questão é a linguagem.
REVISTA A Como é o seu cotidiano? Você falou que acorda cedo e vai andar…
NOLL Vou andar sim, aqui na Redenção.
REVISTA A E aí você escreve?
NOLL Escrevo, por exemplo, para a Folha de S.Paulo, e me toma muito tempo. Vou pra eles sem saber muito bem o que quero, e até chegar… E escrevo os livros assim também, né, cara? Nunca sei o que que quero. Não tem roteiro estabelecido, é no ato da escrita que as coisas são… E evidentemente que há um momento em que pra encontrar o tom, até desses pequenos textos da Folha, poxa, acho que levo… uns dois dias trabalhando.
REVISTA A Chegou a dar aula?
NOLL Falar com o público sobre literatura é algo pra mim altamente prazeroso. Tenho feito muitas leituras públicas de textos e livros meus, gosto, acho que isso ainda é literatura.
REVISTA A Como você está vendo a literatura hoje em dia no Brasil? Outro dia estava lendo uma entrevista do Ignácio de Loyola, na Cult, e tem um trecho em que ele pergunta “Onde estão os novos escritores brasileiros, onde está a nova geração? A minha geração veio, falou, fez, aconteceu. E depois dela nada mais aconteceu.” Aí fiquei meio puto. Parece um discurso dominante. As pessoas realmente falam que não existem escritores fora o Verissimo, o Ubaldo, escritores que são consumidos em larga escala.
NOLL Mas sabe que nesse momento estou sendo muito consumido também?
REVISTA A Você tá super bem vendido.
NOLL É algo que nunca imaginei que fosse acontecer comigo.
REVISTA A Como é que é isso?
NOLL Isso acho…Ora, claro que é bom. Claro que é muito bom. Mas não sei, não quero nem polemizar com o Ignácio, não.
REVISTA A Não exatamente com o Ignácio… mas qual a sua visão da literatura hoje?
NOLL Tenho uma visão muito próxima. Eu tenho um lado de agitador cultural muito forte. Gosto muito dessa atividade. Em 94, 95, coordenei oficinas literárias na UERJ, no Rio de Janeiro: foi um trabalho que, meu Deus do céu, foi muito bom. Mesmo ali vi realmente talentos preciosos. Dois deles estão aí publicados com prefácios meus, enfim, um poeta e um prosador. O poeta é o Sílvio Barros, publicou agora pela Sette Letras Poema Crime, que é um grande poema épico. Foi uma coisa muito discutida, muito trabalhada mesmo durante esses encontros lá na UERJ: várias pessoas estavam preocupadas com essa questão do poema longo, poema narrativo, falta isso na nossa conjuntura literária. E ele aceitou o desafio. O outro é o Alexandre Pessoa, contista.
REVISTA A Tem no Rio de Janeiro um movimento forte de aristas, de poetas. Você deve ter acompanhado nessa época o CEP 20000…
NOLL Sem dúvida, eram pessoas muito vizinhas da gente. Até porque o Chacal também dava suas oficinas na própria UERJ. Li coisas minhas no CEP 20000. Realmente essa descoberta de que ler trechos de trabalhos nossos publicamente é bom, veio muito dessa época. Porque havia pessoas que…O próprio Silvio Barros que falei, faziam uma poesia muito oral, pra ser dita em eventos. O aspecto teatral da literatura é muito importante. Não que seja forçosamente o único caminho pra democratizar ou revitalizar a literatura, mas tem muito a ver com minha trajetória, desde o canto. Minha literatura é muito oralizante também. E, sem dúvida, esse pessoal me influenciou demais nesse sentido. Já disse isso pra eles e estou confirmando aqui.
REVISTA A Tem muita gente escrevendo hoje, é uma fase que se proliferam primeiras edições de autores estreantes. Embora não exista espaço pra eles na mídia, pra variar…
NOLL Mas está mais difícil hoje, do que quando comecei a publicar, tá. Pra publicar, pra mídia dar espaço, acho. Você não pode imaginar o que eram os anos 70, em termos de procura por autores brasileiros. Hoje há uma falta de generosidade, uma competitividade patológica, com toda essa mundialização famigerada… cada um quer salvar o seu, e um contra o outro, Deus contra todos. Salve-se quem puder. Como é que vai nascer movimento cultural numa atmosfera assim? É um tempo muito árido, muito pouco generoso.
REVISTA A O que você tem lido ultimamente?
NOLL Pra citar um escritor, digamos, relativamente novo, tem o Bernardo Carvalho – ele é representativo desse horror que todos nós estamos vivendo. Até já escrevi uma resenha no Estadão, quando ele lançou o penúltimo livro. Gosto de Sérgio Sant’ Anna, do Silvio Barros, que já citei, e de fora, gosto do Thomas Bernhard.
REVISTA A Pra encerrar: o que você está escrevendo?
NOLL Estou começando um romance. Quando começo a escrever, fico muito aflito com essas coisas de conteúdo ético. Acho que tu levantaste uma coisa que achei muito preciosa pra mim mesmo, essa súmula entre esses dois caminhos, dentro das características da minha trajetória literária. Essa questão do eu não é universal, tu levantaste em função do que escrevo. Essa busca por autenticidade realmente despista as discussões sociais – e acho que a literatura tem que fazer um esforço pra que mantenha essa integridade: a ética da literatura não é tanto você falar em nome dos oprimidos; mas ser radicalmente fiel a isso. A gente tem muito medo de falar esta palavra, mas é verdade que a literatura tá muito ligada à questão da beleza. Evidentemente, acho que escrever – não só poesia, mas também na prosa – escrever tem que ser uma ato de amor, porra! Tá muito difícil a gente realmente projetar um gesto amoroso hoje na nossa sociedade. O gesto amoroso está na própria linguagem, no próprio ritmo. Às vezes essa busca desesperada, descabelada, deselegante, cafajeste pela beleza… tudo que a gente puder fazer contra essa mediania que uma certa mídia quer impor, sabe – “artista tal é de mau gosto porque coloca os personagens fazendo xixi”, ou coloca coisas que não devem estar nos salões – isso não dá em nada, dá em afetação literária. Claro que existem outros mil caminhos, evidentemente, pra chegar a essa autenticidade. Mas enfim… temos que procurar.