Prosa indomável

djaimilia

Em Esse Cabelo, a luso-angolana Djaimilia Pereira de Almeida emplaca um inventivo romance híbrido de autoficção e ensaio sobre colonialismo, racismo e feminismo — com humor, provocação e delicadeza

A história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolitica.

De fato: a história de Esse Cabelo (Teorema, 2015), da autora Djaimilia Pereida de Almeida, 33 anos, é uma espécie de tratado biográfico a partir da microfísica de poder proposta por Michel Foucault. Com sagacidade analítica nada enrolada, combinada a uma prosa muito aromática, a portuguesa nascida em Luanda demonstra como o cabelo pode ser, para além dos tratamentos meramente estéticos, território de embates políticos e sociais. Preciosidade metonímica, flânerie hermenêutica do geral ao particular, em seu romance a rapariga usa o couro cabeludo para escalpelar o colonialismo português e o padrão de beleza ocidental — que propõe parâmetros escandinavos como símbolos de sucesso físico (basta ver o elenco de nossos programas de TV e propaganda, ainda predominantemente arianos). Djaimilia (que belo nome!) pega um aspecto do problema — digamos a ponta do iceberg — e expõe toda uma Antártida de preconceitos, opressões e prejulgamentos estéticos que a sociedade embranquecedora e machista foucaltianamente impõe às cabeças de ascendência africana.

E o melhor: faz isso com humor refinado, delicadeza, alguma dose de irônica melancolia e voos reflexivos que afastam o livro de qualquer cheiro de manifesto panfletário. Há olho vivo para anedotas saborosas, leveza nas descrições de estados intimistas e digressões fazendo a transição da história pessoal ao ensaio universalista que a aproximam de craques da autoficção contemporânea, como Karl Ove Knåusgard e sua extraordinária saga Minha Luta. Ou de livros que usam a memória do corpo — em especial, dos desajustes do corpo em relação a expectativas alheias e próprias — como terreno da construção da identidade; eis a linhagem de uma obra-prima como O Corpo Em Que Nasci, da mexicana Guadalupe Nettel.

Só o fato de não precisar lançar mão de conceitos clichês — como “empoderamento”, palavra-fetiche da hora — já demonstra o que é que a mulata tem de tão especial em seu livro (ainda sem editora no Brasil). O viés chega a ser mais problemático do que o exposto em livros como Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichi, posto que o lugar de onde a luso-angolana fala é ambiente mais instável do que a perspectiva da autora nigeriana. Chimamanda é uma negra nigeriana que emigrou para os EUA, enquanto que a escrita de Djaimilia é uma encruzilhada da metrópole e da colônia, de etnias negra e branca: mora na calçada e na rua ao mesmo tempo (mas o texto elegante não tem nada de manco). Outro romance a que poderia se aproximar, pelo procedimento metonímico, é História do Cabelo, de Alan Pauls. Nele, o argentino escreve — na terceira pessoa — como os problemas do protagonista em ajustar seu mullet fazem nascer um desajuste entre intimidade e História. Mas a luso-angolana nunca ouviu falar em Pauls.

Não conheço, não (agora fiquei curiosa)“, diz Djaimilia, por e-mail. “Houve uma série de livros que foram importantes no processo de escrever o livro, mas nenhum deles sobre cabelo: memórias de Walter Benjamin, Lévi-Strauss e Danielle S. Allen, mas apenas mais tarde, no decurso de escrever, percebi que podia usar o cabelo como fio condutor“, brinca.

Djaimilia saiu de Angola aos três anos e voltou muitos verões à África para passar férias. Agora já não regressa há quinze anos, embora tenha lá família e amigos. Vive nos arredores de Lisboa, onde cresceu, e nunca veio ao Brasil. Seguindo uma tradição de escritores lusófonos, Djaimilia trabalha na seção administrativa de um instituto público e escreve nas horas vagas. “Realmente não subsistiria se não tivesse este trabalho. Escrever nas horas vagas, com pouco tempo para ler, pensar e investigar é um dos problemas que partilho com muitas das pessoas que têm a sorte de ter um fulltime“, conta, ecoando recente e polêmico artigo da autora Alexandra Lucas Coelho no jornal Público sobre as atuais dificuldades de um escritor manter-se em Portugal.

Memória: ilha de edição

Fernando Pessoa dizia que sua pátria era a língua portuguesa; Djaimilia prefere afirmar que sua pátria é o cheiro do cabelo de sua avó. Seguindo por esta toada, quais outros objetos fariam a pátria da escritora? “Parece-me que qualquer pessoa se parece com um monstro compósito feito de muitas partes que não lhe pertencem“, diz. “O que sou é alguém com as pernas de X, o coração de Y e, porventura, o cheiro de Lúcia, mas também livros, objectos, lugares, etc.: o que faz de mim quem sou é a minha relação com essas coisas e pessoas que não coincidem apenas com o meu corpo.”

Esse Cabelo é, acima de tudo, um livro de memórias. E, ainda que a madeleine de Djaimilia seja o aroma dos cabelos da avó, a autora sabe que “a memória é uma ilha de edição“, no dizer do poeta Waly Salomão: não se pode confiar em sua tesoura e sua goma. “A memória é um demagogo: não nos deixa escolher o que vemos; alimenta-se da tentação de fazermos menos do que não fomos (…) A única noção admissível de seriedade parece-me agora a de honrar não quem tenho sido, mas quem julgo não ter chegado a ser“, ela diz a uma altura do livro. É uma admissão elegante da intromissão da ficção, do “inventado”, na autobiografia, no registro da própria história. E também um modo autocrítico de assumir a autoficção como uma edição dos nossos melhores momentos, não? “Sim, é um pouco como um álbum de fotografias, e tem a impostura de um desses álbuns, onde nos fazemos curadores da nossa vida“, analisa a autora. “Não sei quem foram meus mestres no processo — mas talvez os encontre entre os amigos e os professores anónimos com quem tive a felicidade de me ir cruzando“, esquiva-se.

Híbrido de romance, ensaio e memória, a forma literária de Esse Cabelo poderia refletir a mestiçagem étnica que esculpe a história pessoal de Djaimilia. Mas ela refuta essa tese como fundadora de sua ficção. “Enquanto escrevi o livro, nunca me preocupei muito com o aspecto que teria no final, ou com o género que iria resultar. Ele foi escrito tendo o capítulo como unidade mínima, e tentando apenas que cada capítulo fosse exactamente como tinha que ser“, afirma. “E não sei se valorizo especialmente esse ‘hibridismo formal’. Pensando nos autores que mais leio, julgo que não o praticam, ou nem todos o praticam. Mas não me parece que exista à partida um valor acrescido num livro mais híbrido do ponto de vista formal, nem (já agora) numa pessoa mais ‘híbrida’“, justifica.

A vaidade como afirmação de identidade é outro conceito forte do livro, bem como o black power foi essencial à autoafirmação dos negros norte-americanos no ativismo dos anos 60 — e é determinante na expressão artística que reflete sua ascensão social, como se nota, por exemplo, no culto que os artistas do hip hop frequentam ao posar cercado de símbolos de status, luxo e voluptuosidade. O narcisismo poderia ser uma arma para quebrar as desigualdades sociais? “Mais que o narcisismo, parece-me positivo conquistar a capacidade de não nos envergonharmos do que somos“, contrapõe Djaimilia. “Ao contrário do que poderia parecer, isto não tem de resultar numa vertigem da auto-confiança, mas pode ser o sinal de que estamos mais perto de deixarmos o ‘eu’ cair pelo caminho quando nos aproximamos dos outros e de nós.”

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Imagem importante desta afirmação no romance é a célebre foto que registra o momento em que Elizabeth Eckford, uma garota negra do Arkansas, entra no liceu, sendo xingada pelos colegas brancos. “Uma das poucas fotografias em que surjo penteada foi tirada em setembro de 1957“, escreve ela no romance. “É talvez estranho que, sendo um auto-retrato meu, tenha sido capturado (…) muito antes de eu ter nascido. (…) Não que esta fotografia simbolize algum episódio particular da minha vida. É antes uma radiografia da minha alma. A minha alma é a figura enganadoramente impassível de Elizabeth Eckford em primeiro plano e o ódio implacável da multidão à sua passagem no plano de trás. (…) É o retrato de uma autoperseguição e da tentativa diária de lhe ser indiferente“, Djaimilia diz em Esse Cabelo.

Contudo, apesar da identificação — tanto com a mulher negra oprimida quanto com os brancos opressores —, a autora nega que tenha existido algum episódio pessoal semelhante à passagem clássica do ativismo afro-americano. “O interessante é a maneira como a circunstância de Elizabeth nos ajuda a pôr em perspectiva todos os nossos privilégios, e a felicidade de ter nascido negra em Angola em 1982, de poder ter a vida que tenho, amar quem amo, estudar, votar, viver em liberdade“, ela diz. Nem sim nem não, muito antes pelo contrário: o lugar de Djaimilia parece ser sempre movediço, e ela tende a — felizmente — fugir de qualquer nicho, etiqueta ou logotipo. Como em outro tema, hum, cabuloso: “literatura feminina”. “À partida, julgo que não concordo com este rótulo“, afasta. “Mas não tenho nenhum problema em admitir que me interessa pensar literariamente na origem da feminilidade, e assuntos a que esse rótulo se aplicaria. O rótulo não me diz nada, porque o interesse não é exclusivo do meu género“, afirma.

E qual seria o lugar de Djaimilia na literatura lusófona de hoje? “Gosto de muita coisa, sobretudo na poesia, e também na narrativa e no ensaio. Gosto de Raul Brandão, de Rousseau, mas também de Platão, Nietzsche, Benjamin. Quanto a escritores contemporâneos, leio ensaístas como Maria Filomena Molder e romancistas como Paulo Varela Gomes. E penso que o Esse Cabelo está próximo do que têm feito recentemente Isabela Figueiredo ou Bruno Vieira Amaral“, situa-se.

Numa frase esperta, Djaimilia diz que “O amor ao supérfluo ajuda a entender o que somos“. Ou seja, é justamente o que nos indicaria como fora da nossa essência o que justifica nossa existência. “Essa frase resume bem a minha ligação com a literatura, de um modo geral: a literatura de que gosto é, na minha vida, essa coisa supérflua, sem a qual não me imagino, e de que em última análise não precisaria para viver“, explica Djaimilia. “Num certo sentido, é um luxo (o luxo do leitor), mas é um luxo que imprime a tirania de uma forma de vida, e de um modo de entender o mundo que, para aqueles que dele participam, passa a ser essencial, sendo todavia supérfluo à sobrevivência estrita“, pondera.

A beleza de Esse Cabelo reside na recusa ao lugar esperado — como um cabelo crespo indomável pela própria natureza, que se nega a tomar qualquer forma, “áspero e intratável” como o cacto de Bandeira; ele não se adestra, não se ajeita, não se conforma: prefere a zona de confronto à zona de conforto. Quebrar o espelho-espelho-meu da vaidade e da obsessão por encontrar seu lugar no mundo, para só então reconhecer-se nas miríades de reflexos aleatórios: eis a poderosa estratégia narrativa de Djaimilia Pereira de Almeida.

Encontrar-me a mim é mais parecido com encontrar uma pulga quando se procurava um borrão; encontrar uma nódoa de água quando se procurava uma chave; encontrar uma caneta quando se procurava uma pessoa. O que se encontra reconfigura o que se procurava. A procura de uma origem e de uma identidade não reconstitui a minha origem nem descobre a minha identidade. Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso.”

[publicado originalmente na revista Cult]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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