Supercordas lança seu aclamado Terceira Terra no Sesc Pompeia; falei com Pedro Bonifrate sobre massacres indígenas, feminismo, a má influência da família Marinho sobre Paraty e o pensamento brasileiro, a boa influência de Guimarães Rosa, Ana Cristina César e substâncias alteradoras sobre nosso cancionceiro lisérgico — e a renascença psicodélica

Neste sábado 5 de março eles estarão entre nós. Supercordas, o quarteto baseado em Paraty e São Paulo — que tomou seu nome da teoria de Edward Wilson, uma derivação da teoria da relatividade a propor que o universo tem dez dimensões — vem tocar no Sesc Pompeia (ex-Choperia, agora Comedoria — o tempora, o mores). O recheio do show da banda de quinze anos de estrada é Terceira Terra, álbum aclamado por publicações musicais como um dos principais lançamentos no pop brasileiro de 2015. Fundado no rock psicodélico que tem hoje a banda goiana Boogarins como uma das principais estrelas e o Tame Impala como o maior nome global, o Supercordas alia uma musicalidade única — mix de folk rock com Clube da Esquina e rock noventista, em canções de melodias circulares e super assobiáveis — a um poderoso discurso político.
As letras do líder, cantor e principal compositor, Pedro Bonifrate, um paratiense de 35 anos, são singulares no nosso universo pop, tanto no mainstream quanto no alternativo. Narrativas, líricas, visuais e escritas com inventividade, trazem um subtexto social crítico — o que é raro nas letras de outras bandas psicodélicas, muitas vezes escapistas. A faixa de abertura, “Fundação Roberto Marinho Blues“, não poderia ser mais clara na cutucada à alienação e manipulação da TV Globo: “E a nossa prensa faz/ Da pólis, família/ Da vida, televisão/ Da história, alquimia/ Do golpe, revolução/ A nossa fundação/ É o futuro/ Teu sangue, teu chão”. A seguir, um papo leve — mas denso — com Bonifrate.
A faixa de abertura do Terceira Terra é uma canção extremamente irônica em relação à Fundação Roberto Marinho. Sabemos que a família Marinho tem uma ligação histórica com Paraty. Como analisaria essa relação tão ambígua? Uma análise apropriada caberia em uma ou mais teses de doutorado, e eu não conseguiria resumir em poucas palavras… Mas eles estão por aqui há tempos, injetam dinheiro na cultura, infiltram projetos na escola pública, compram imóveis e grandes pedaços de terra, aparecem como grandes benfeitores para alguns e como raposas bilionárias para outros. Você deve ter acompanhado as últimas matérias sobre a casa dos Marinho numa área de proteção ambiental aqui. É um tema de alguns anos, que volta e meia reaparece nas mídias alternativas. Conheço algumas pessoas envolvidas que tentaram levar investigações e fiscalizações à frente e acabaram sendo coagidas e ameaçadas. Enfim, costumo dizer, meio de brincadeira, que Paraty é um daqueles ótimos microcosmos da história do Brasil, e nesse sentido continua sendo.
Há muitas referências guaranis e a cosmologias indígenas [o título desta matéria foi tirado da canção-título, que alude à “morada sem mal” que existiria numa provável Tereeira Terra]. Em um verso você escreve “eu troco essa turmalina por mais um trago”: ver os índios vendendo bugigangas a preço de banana pelas ruas de Paraty o influencia? Certamente me influencia, não tem como não me influenciar. Você passou um tempo por aqui, então pode imaginar que esse foi o meu primeiro contato com esse povo. Ver as crianças ali, falando guarani tão levemente entre si e poucas palavras em português com os turistas tipo “dá um trocadim”. E as pessoas e as instituições locais basicamente alheias àquela situação toda, às famílias dormindo ali na rua, no meio do centro histórico das lojas de grife, bares e restaurantes tipo Vila Madalena, é uma coisa muito louca de se ver. É doentia a nossa relação com essas culturas. Tão doentia que eu mesmo já tive muito pouco contato real com essa galera. Eu não diria que houve uma pesquisa, ao menos não de natureza histórica (o que seria natural porque é o campo onde eu trabalho, além da música), mas talvez uma folheada atenciosa em alguns textos, em alguns filmes e alguns sons, que me serviram de inspiração e de fonte de vocabulário pra algumas canções.
Como é sua pesquisa nesse sentido? Eu trabalho num museu e há anos sediamos uma exposição anual de arte indígena chamada Ymaguaré. É coisa pequena, feita com quase nenhum dinheiro, sem nenhum incentivo, mas tem apresentações dos corais guarani mbya daqui, e artes muito bonitas que eles fazem, então alguma pesquisa por conta disso e algum contato eu acabei fazendo. Mas a principal inspiração é tomar ciência da situação dos indígenas hoje em dia no Brasil, dos movimentos que eles encabeçam e que estão sendo massacrados com amplo apoio do Estado e da sociedade. E não: eu não sou marinista porque estou dizendo isso.
Você vive em Paraty há quanto tempo? Como é sua relação com a cidade? Vivi aqui dos 4 aos 17 anos, e depois voltei em 2012 aos 31, tendo sempre visitado a cidade nesse intervalo carioca, porque a minha mãe e muitos amigos continuavam por aqui. Tenho uma relação muito forte com a natureza do lugar, com essa paisagem épica e quase fossilizada que temos aqui, e que também tem um aspecto humano fortíssimo, em termos do que se costuma chamar culturas tradicionais. Por outro lado, vivenciei parte de uma transformação guiada pelos aspectos mais capitalistas e selvagens do turismo, ainda que disfarçados de culturais, que sempre me indignou. Existe uma tensão existencial na minha relação com a cidade. Acho que posso dizer que sempre tive uma parte subversiva nessa relação. Eu e o Diogo (baixista dos Supercordas) nos conhecemos por aqui, e éramos os clássicos adolescentes doidões que montam uma banda de rock sujo e fazem besteira noite afora. É claro que essa subversão mudou de forma, hoje eu trabalho com cultura na cidade, a minha filha nasceu aqui, a minha companheira é professora e pesquisadora também. Então essa subversão tem ares mais sérios e militantes hoje em dia. Paraty tem um lance muito forte com isso de “ser daqui” ou “ser de fora”, e eu certamente nunca estive em nenhum dos dois lados, mas curto muito viver nessa roça cosmopolita. É um lugar único em muitos aspectos. Tem uma canção que deve entrar no próximo dos Supercordas que fala exatamente disso.
Penso que as letras de Terceira Terra realizam uma original miscigenação entre crítica política, análise comportamental, crônicas de costumes e narrativas psicodélicas — adicionando, a este terceiro ingrediente, o tempero das cosmologias nativas brasileiras. noto também uma busca por se afastar de rimas simples e saídas fáceis para as letras. Nas imagens existe um flerte com o cenário rural, ou, talvez, anti-urbanoide, quase escapista… o que parece meio paradoxal com o teor crítico dos textos. Acho que esse fator escapista, que tem base em toda uma tradição da poesia e da música pop que incluem o Syd Barrett, parte do Clube da Esquina e uma penca de outras manifestações sessentistas, tem dado lugar a uma perspectiva mais mundana e engajada. É o que eu vejo quando olho pro caminho do Seres Verdes ao Redor ao Terceira Terra. O Barrett me influenciou muito mesmo quando comecei a escrever canções em inglês na adolescência, e os Mutantes foram determinantes pra eu começar a rabiscar alguma coisa em português. Depois eu comecei a curtir Super Furry Animals mais do que tudo, praticamente, e as letras do Gruff Rhys me mostraram que você pode cantar sobre qualquer coisa, que pode desapegar daqueles temas clássicos da música pop como relacionamentos ou sobre querer fugir das tensões da vida e escrever canções sobre meteorologia, colonialismo, celulares ou andar de bicicleta. O mesmo se pode dizer do Grandaddy ou do Flaming Lips. Eu tenho uma queda por narrativas mágico-herméticas também, e o Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco, foi um dos livros que me deu vontade de estudar história, e isso certamente aparece um pouco nas canções. Costumo estudar escritores ou cancionistas específicos por um tempo, foi assim com Guimarães Rosa, com Dylan, com Joanna Newsom, com Leonard Cohen, com Virginia Wolf, e não necessariamente isso implica olhar pra toda a antologia dessas pessoas, às vezes um livro ou um disco já bastam pra algum tipo de imersão, e tudo isso faz diferença na hora de escrever uma canção nova. É importante dizer que alguns dos meus amigos compositores, ilustres desconhecidos na maioria dos casos, também me influenciam muito. É o caso do Simplício Neto (Os Nefelibatas), do Augusto Malbouisson (Acessórios Essenciais) e do Sandro Rodrigues (Digital Ameríndio), por exemplo. Devo muito a esses caras, e realmente acho que eles são alguns dos maiores compositores do Brasil.
Você já disse que tem preguiça de artistas que falam muito do próprio umbigo. A que especificamente se refere? Ficção, autoficção? Como falar sobre a vida exterior? Não me refiro especificamente ao tamanho do ego artístico nas canções ou coisa parecida, isso é uma outra questão, e dependendo de como isso aparece eu acho um elemento bem interessante até. Falo é dessa primazia do cotidiano individual e dos pequenos detalhes insistentemente irrelevantes, do “eu e você, você e eu fazendo coisinhas engraçadas e gostosas e isso basta pra mim”. Não que eu não ache que não há um momento pra esse tipo de expressão, e nós certamente tivemos o nosso, mas putz! Olha em volta! Ainda há espaço pra isso? Quanto mais? Até olharmos para o lado e não nos vermos mais em lugar nenhum? Em outro nenhum? Em cultura nenhuma?
Ainda sobre as letras: racismo, feminismo, anti-capitalismo, estados alterados da consciência são alguns dos temas. é possível adequar o escapismo tipicamente psicodélico à lucidez crítica presente, por
exemplo, no hip hop? É possível ser um hippie punk? Ainda que exista uma contradição aparente entre psicodelia e crítica social, pra mim é perfeitamente possível na medida em que a psicodelia não é necessariamente escapista. O que dizer de um Hunter Thompson da vida, por exemplo? Enchendo a cara de LSD e mescalina e indo cobrir o Kentucky Derby, um antro de conservadores que ele estava totalmente imbuído de incomodar até que fosse expulso. Talvez essa ficha minha tenha caído com ele, com o Medo e delírio em Las Vegas, que é um marco pra mim. Diversas letras do Dylan ou poemas do Ginsberg atestam a possibilidade dessa coexistência (o Dylan pode não ser considerado psicodélico, mas as letras são plenas desses recursos que você citou na pergunta anterior, cabe totalmente no meu conceito amplo de psicodelia). Puxando pro nosso lado, o mesmo se poderia dizer do Sérgio Sampaio ou da Ana Cristina César, por exemplo. Eu diria que essa coexistência é forte, e potencializa a crítica, na medida em que “estados alterados de consciência”, como você disse, podem deslocar seu ponto de vista pra lugares inusitados e antes improváveis. Colocar-se na perspectiva do outro não é uma das ações que definem um pensamento de esquerda?
Há duas músicas que falam de feminismo e no empoderamento das mulheres, “Maria3” e “Sinédoque: mulher”. Por que é um tema tão presente no álbum? Sempre disse que tive uma “educação feminista”, mesmo quando não tinha muita ideia do que isso significava. Minha família é cheia de mulheres guerreiras, cada uma à sua maneira. A começar pela minha avó, que foi do Partido Comunista e ia às reuniões ainda jovem e solteira e gostava de ler Simone de Beauvoir. Mas acho que nos últimos anos houve uma intensificação desse componente pra mim, e muito disso se deve à minha companheira, Thalita. E isso se aprofundou pra nós quando ficamos grávidos e tivemos que encarar esse inacreditável caldeirão de autoritarismo patriarcal pseudocientífico e corporativo que é a realidade obstétrica no Brasil (tenho um texto publicado no HuffPost sobre isso, chamado “Uma cigana tira cartas no lusco-fusco dos teus olhos ou Duas luas dançam jazz sobre o planeta mentira”). Acabei fazendo um esforço pra sair da superficialidade das minhas concepções antigas (“tive uma educação feminista”) e passei a ler uns textos clássicos e a acompanhar as questões contemporâneas nesse sentido. Essas canções devem ter esse pano de fundo aí. “Sinédoque, mulher” é bastante inspirada em algumas passagens do Segundo sexo, da Beauvoir, e na crítica dela à idolatria objetificadora da mulher nos surrealistas, em especial o Bréton.
No tocante ao som, as canções de Terceira Terra agregam folk, rock psicodélico clássico e também certamente beberam no cancioneiro do Clube da Esquina. Poderia falar um pouco sobre o que você ouviu para chegar a este mix sonoro? E o que você anda ouvindo? Em que direção ruma o som do Supercordas? Bom, tudo o que eu ouvi e tudo o que o Diogo, o Gabriel, o Filipe e o Sandro ouviram estão ali de alguma forma. Acho que sempre é assim com um disco, não tem uma cara específica que você queira dar pra ele que dê conta de tanto som absorvido ao longo de todas essas vidas, isso pra não falar que as pessoas escutam o som e pra elas aquilo pode remeter a músicas que nós mesmos nunca sequer ouvimos diretamente. Em termos gerais, que talvez não digam muito, Terceira Terra é um disco que acabou com uma atmosfera mais densa e soturna que os outros, mas acho que isso se deu espontaneamente. Por outro lado somos mesmo bastante referentes quando gravamos em conjunto, sempre apontamos e discutimos aquela “parte Wilco”, a “levada Can”, a “guitarra Grandaddy” ou o “vocal Arnaldo”.
A expressão ‘renascença psicodélica’ tem sido muito usada tanto aqui quanto lá fora para delatar a onda de bandas como Tame Impala — que hoje faz sucesso mundial — e o goiano Boogarins, que também ensaia seus primeiros passos lá fora, tocando no importante festival Levitation. Mas o Supercordas já vinha nessa levada há uns 15 anos. Como foi perceber esta onda chegando? É uma expressão permanente ou só um modismo? Nunca se sabe, mas acho que tem muito de modismo nisso. Não nos artistas em si e suas obras, mas nas categorizações da imprensa musical. Digo isso porque acredito que tanto os Boogarins quanto o Tame Impala abrangem um espaço musical que vai além da “psicodelia” na qual os querem enquadrar. E por outro lado, uma psicodelia mais amplamente conceitualizada sempre esteve por aí. A gente começou a construir nosso som em cima dessas bandas noventistas que eu já citei, em Mercury Rev, em Gorky’s Zygotic Mynci ou mesmo em Violeta de Outono, pra falar de uma banda brasileira dos anos 80, quando você dificilmente acharia algo psicodélico. Não acho que fomos precursores dessa onda ou coisa parecida. Os anos anteriores à nossa formação estão cheios de bandas psicodélicas, seja qual for o enquadramento que a crítica musical deu a elas.
Vocês vieram fazer um show em SP ano passado e nem tinham discos do Terceira Terra para vender, o que me pareceu tão hippie quanto anticapitalista, haha. Viver de música é um objetivo ou nem? Olha, não sei se somos parâmetro pra esse assunto, mas me parece que prensar discos já não é uma atividade muito capitalista hoje em dia. Sendo uma banda de pequeno ou médio porte, mesmo que você fature alguma coisa vendendo discos, não me parece que vá ser muito. O retorno é bem pequeno. Prensar discos é mais uma iniciativa simbólica que pode ou não dar mais visibilidade ou abrir portas pra outras coisas do que uma atividade comercial em si. Mas claro que gostaríamos de sempre ter discos pra vender. É quase certo que teremos CDs do Terceira Terra no show do Sesc Pompeia, e teremos camisetas também. A falta de discos pra vender no lançamento lá na Serralheria se explica mais pelos prazos curtos que nós e a nossa rede de colaboradores não conseguimos cumprir que por qualquer tipo de princípio ou negligência em relação ao formato físico. Sobre viver de música, temos gente na banda que vive, que é o caso do Diogo, mas não necessariamente da banda, é claro. Outras pessoas fazem bicos nessa área e eu sou servidor público. Não acho que seja um objetivo, e mesmo quando foi, foi casual. Se fosse um objetivo com O maiúsculo, acho que eu não teria tido uma trajetória acadêmica, por exemplo, e sem a minha trajetória acadêmica talvez os Supercordas nem existissem. Eram outros tempos aqueles em que começamos com uns vinte e poucos anos. Era muito raro ver uma banda levando o trabalho tão a sério como hoje você vê tantas por aí. A música é um objetivo em si, a repercussão que ela tem é lucro, e procuramos levar isso tudo a sério, ao menos o máximo que conseguimos.
O Supercordas se encaixa em algum nicho da música brasileira hoje? Não.
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