Máquina de escrever

Aos 46 anos, Gonçalo M. Tavares é um dos escritores que mais trabalham no mundo literário: em 15 anos, publicou 30 livros, vertidos em 46 línguas. E sua gaveta está cheia

“Peço desculpa, mas nas próximas semanas não será possível responder, muito obrigado”, me dizia a resposta automática do e-mail de Gonçalo M. Tavares. “Pode insistir, que ele responde”, dizia a assessora de imprensa. “Mas estou com o prazo apertado”, eu dizia. “Que tal falarmos por Skype amanhã?”, dizia Gonçalo, em e-mail disparado de madrugada. Mas no dia seguinte Gonçalo havia desaparecido. Dias depois reaparecia: “Estou na Colômbia! Vamos falar daqui a dois dias?” À minha resposta, outra vez: “Peço desculpa, mas nas próximas semanas não será possível responder, muito obrigado”. Semanas mais tarde: “Aterrei há pouco! Ainda dá tempo?” E novo sumiço. Foram 15 e-mails nesse jogo de gato e rato até que as respostas às perguntas que enviei por escrito aportaram, ou melhor, aterraram no meu e-mail. Não por escrito — mas em áudio. É curioso falar com o mais prolífico escritor em atividade em plena era da técnica.

Para que conto tudo isso? Talvez fosse mais glamouroso o leitor imaginar que a Revista da Cultura papeou com Gonçalo em um café em Lisboa… Enquanto não inventam o teletransporte via Bilhete Único, assim seguimos trabalhando, entrevistadores e entrevistados: tudo é trabalho, afinal. Escrever romances, viajar para falar sobre eles, atender a jornalistas; ler romances, importunar seus autores, editar suas respostas em um caos ordenado. Se o trabalho nos define, pode-se dizer que Gonçalo tanto está aqui nestas respostas quanto em seus livros — mas também, principalmente, ele se encontra na frase “Peço desculpa, mas nas próximas semanas não será possível responder, muito obrigado”: porque é durante o advento desta frase que Gonçalo está a suar sobre sua próxima obra.

E, se o trabalho define um indivíduo, é com muita propriedade que o português-angolano Gonçalo M. Tavares desenha a palavra “escritor” no formulário de check-in dos hotéis. Desde que estreou, aos 31 anos, com Livro da Dança (2001), GMT já publicou 30 livros, traduzidos para 35 línguas e editados em 46 países — em ficção, ensaio, poesia e teatro. Ganhou praticamente todos os prêmios que importam na língua portuguesa, foi saudado por José Saramago como o futuro da prosa lusófona e não raro é comparado a autores como Beckett e Kafka pela opacidade da linguagem, humor negro e ímpeto experimental. O mais recente publicado no Brasil é Uma Menina Está Perdida no Seu Século À Procura do Pai (Companhia das Letras), romance escrito “em 2002 ou 2003”, Tavares não sabe precisar. E daí vem um dado curioso: GMT demora longamente até publicar — quando estreou, tinha na gaveta vários inéditos.

“Escrevi muito, dos 18 aos 30 anos, escrevi sem parar”, conta. “Para mim, desde cedo estava claro que só queria publicar depois dos 30. Queria ficar um tempo isolado, sem tornar nada público, fazer um período de concentração total, e portanto o que aconteceu foi que aos 31 anos já tinha vários livros escritos. Sentia que precisava de maturidade para publicar”, afirma. Seu método é escrever o que considera a “matéria-bruta”, deixar repousar por três anos e só então voltar para cortar a ohra. Contudo, o começo do trabalho é “alucinante”, ele descreve: “Não controlo, estou complemente entusiasmado a escrever sem saber o que estou a fazer, sem saber o que estou a escrever; gosto de saber escrever sem saber aonde vou, é o que me motiva — esta investigação”, diz. “Então minha escrita tem esse primeiro momento instintivo, impulsivo, em que escrevo quatro horas seguidas. Depois, muito tempos mais tarde, corto, corto, corto.” GMT lembra uma blague famosa do padre Antonio Vieira, que pediu desculpas a um amigo pela carta ser longa: não teve tempo de fazê-la mais curta. Na edição, GMT jura demorar dias para tirar ou colocar vírgula, ponto. O que mais tenta nessa segunda fase é tornar o texto preciso. “Isso sim me dá imenso trabalho”, afirma.

O quarto do século 19

Embora seja um trabalhador incansável, nas entrelinhas GMT sugere que não escreve sem… inspiração. É na primeira fase do trabalho que ele se sente mais dentro de seu elemento. “Escrevo organicamente, por necessidade, por raiva, obcecado, não penso em mais nada quando estou a escrever: apenas neste livro”, conta, com voz apaixonada. “Nunca me sento diante do computador sem este impulso, essa energia. Quando começo a escrever é porque não há um segundo anterior, tudo é logo o início da escrita. Se não tenho este impulso, espero que ele venha”, explicita. Impulso ou musa?

A disciplina é tão importante quanto a imprevisibilidade para Tavares, que escreve em computador mas já praticou a escrita em cadernos que levava para os cafés lisboetas — a série O Bairro, por exemplo, estrelada por gente como Walser, Valéry, Breton e Calvino, foi concluída assim. Ele guarda quatro horas por dia totalmente isolado em relação à realidade. “Chamo a isso o meu quarto do século 19”, brinca. Não há internet nem celular: só se dispõe à escrita. “Não que eu vá escrever, mas ficar aberto a estímulos”, explica. “Posso sair andando e observando as pessoas, pensando: é um momento individual. Aliás, me parece essencial defender até de modo violento este tempo, mesmo de pessoas de quem gostamos. É o momento em que desenvolvemos nosso imaginário”, ele diz — e não se refere somente ao trabalho de escritor, e sim à necessidade de ficar sozinho.

Em uma época que o escritor é cada vez mais a sua figura pública, escrevendo na imprensa e interagindo com leitores nas redes, participando de feiras e festivais literários e até virando celebridade na TV e no cinema, Gonçalo M. Tavares diz preferir delimitar um muro sólido entre escrever e publicar. “Escrevo e muitos anos de intervalo entre a escrita e a publicação porque pra mim são mundos diferentes”, amplifica. “Tornar público é deixar-se à exposição de qualquer um, uma pessoa de 18 anos ou uma de 70, uma pessoa religiosa ou um ateu; a mesma frase pode ter entendimentos diferentes.” É outra pessoa, então, o dono do texto. “Hoje o escritor circula muito, transformou-se em performer — algo que não me agrada”, critica. “Se estou em um evento literário tento centrar-me em uma intervenção reflexiva, que coloque a literatura como uma máquina de lucidez. Um livro de 100 gramas deve proporcionar 100 gramas de lucidez ao leitor. A questão da lucidez deve estar no centro da literatura, e nunca transformar a literatura em um circo. Não me vejo nisso, sou contra isso, toda a minha intervenção pública é para colocar a literatura em um espaço de contenção, de olhar para os homens e buscar compreendê-los”, filosofa.

Alienação ou Auschwitz

Além de trabalhar muito, GMT usa a obra como reflexão sobre as ocupações, do ócio criativo à alienação. Matteo Perdeu o Emprego (Foz) trata justamente da terrível situação da Europa mergulhada no desemprego: a taxa é de 20% em Portugal e Espanha. “O desemprego coloca as pessoas de um estado de fragilidade que as leva a fazer qualquer coisa”, comenta. “Matteo, há tempos desempregado, responde a um anúncio para ser secretário de uma mulher que não tem braços. Depois ela começa a exigir atividades perversas e até sexuais, e do campo do trabalho as mãos de Matteo passa para um campo mais íntimo. O livro é sobre como se passa de um trabalho comum para um trabalho perverso”, entende.

Outro grande tema é a tecnologia, que se coloca de modo evidente em Aprender a Rezar na Era da Técnica (Companhia das Letras), em que o protagonista é obcecado pela ideia de que a técnica é a nova religião: o barulho das máquinas substituiu o som da oração. “O livro surgiu com essa imagem de alguém rezando ao lado de uma grande máquina em funcionamento, e de como havia um duelo entre o ruído da máquina e o ruído da oração: às vezes o ruído da máquina abafa o ruído da oração”, conta. Embora lembre que a oração, através do fundamentalismo religioso, também possa trazer conflitos, GMT condena a necessidade de ficarmos dependentes de máquinas. “O barulho da máquina não nos permite ficar sós”, ele analisa. “A ideia de aceder pela internet a muita informação é interessante, mas o perigoso reside na necessidade de as pessoas estarem sempre disponíveis para o contato — isso me parece totalmente inimigo da reflexão”, diz Tavares — que, aliás, não acredita que um dia as máquinas possam vir a ser capazes de escrever. “Uma escrita parte da raiva, e uma máquina não tem raiva; a escrita parte da necessidade orgânica, e uma máquina não tem necessidades orgânicas”, afirma.

Filho de uma professora de matemática e um engenheiro, o escritor português nascido em Luanda sempre foi fascinado pelas ciências exatas, outra marca de sua literatura, povoada de cientistas. No entanto, sua conexão com a literatura é, como diz, “orgânica”. “A alegria não é um estado constante”, reflete. “Se de algum modo se encontrarmos uma tarefa compatível com nossa necessidade orgânica, a alegria se mantém em um estado base. Quando escrevo, sinto um organismo simultaneamente irritado e alegre — mas, ao mesmo tempo, ligado à tarefa que necessito fazer para não voltar as costas ao mundo”, pondera.

E o que faz Gonçalo M. Tavares quando não está trabalhando? Bem, ele é daqueles sujeitos que descansa carregando pedra. “Dá uma grande prazer ter um livro pra ler e não pra fazer, ter coisas urgentes e preguiçar, é um dos prazeres da vida, e a nenhum homem se deve tirar esse prazer”, defende. Mas seu momento de ócio, preenchido pelas caminhada por Lisboa, é claramente um trabalho. “É um momento fundamental em que minhas ideias vão avançando no ritmo de minhas passadas: a observação das pessoas, a energia da multidão, vão se tornando em mim algo forte — e só aparentemente não estou a escrever”, reflete.

A sombra do trabalho de certo modo também se pressente em Uma Menina Está Perdida no Século À Procura do Pai. A menina, uma garota que desenvolveu síndrome de Down, é auxiliada em sua busca pelo misterioso Marius. Em determinado momento, ambos se hospedam em um hotel cujos quartos foram batizados com nomes de campos de concentração. O escolhido pela dupla é justo aquele em cuja entrada havia a terrível advertência O Trabalho Liberta: Auschwitz. E, se não é exagero afirmar que o nazismo teve como campo fértil uma Alemanha dilapidada pelo desemprego surgido na Primeira Guerra, Tavares observaria condições semelhantes na Europa atual, estremecida pela questão dos refugiados e imigrantes? “É difícil que a tragédia do Holocausto se repita hoje”, pondera. “Mas o ódio entre raças continua”, adverte. “O homem é o animal da grande bondade e o animal da grande maldade, e não estamos libertos de uma repetição dessa tragédia. Daí a função do escritor: alertar o que aconteceu com a memória, e dizer que essa energia maligna e violenta ainda está em movimento. Daí a necessidade de um espaço sério para a literatura”, justifica. O impactante desfecho do livro parece ser um espaço infenso à compreensão do próprio autor. “Tem uma potência que me aflige. É como na vida: nem sempre sabemos os porquês. A vida começa no meio, cruzamos com as pessoas e desconhecemos seus percursos… O romance também é um percurso do meio”, entende.

Para escrever este romance, foi fundamental o contato com meninos e adultos com trissomia 21, por conta das aulas que deu a professores que ensinam a pessoas com deficiência física e mental. “Tem sido uma experiência muito forte”, se entusiasma. “Os portadores de Down são pessoas que nos colocam problemas diferentes, e nos obrigam a sermos melhores. Não se pode generalizar, todas as pessoas são distintas. Mas há uma espécie de alegria inocente que é absolutamente desarmante e contagiante. É impossível não se alegrar com uma pessoa com Down”, elogia Gonçalo M. Tavares, pouco antes de desaparecer — quem sabe já imerso na energia do próximo romance.

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*Perfil originalmente publicado na Revista da Cultura de março de 2016

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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