
Em seu novo livro Sermões, a escrita de Nuno Ramos apropria-se do sexo para fugir da morte — mas, assim como em sua obra plástica a materialidade nunca é rígida, em seu texto Eros e Tanatos se dissolvem
Enquanto falo com Nuno Ramos formigas passeiam por seu rosto. Isso não tem nada a ver com a suposta doçura do artista, que, embora de trato afável, é dono de uma obra bastante acre. Estou em Paraty, cidade cuja atmosfera cachaceira faz com que formigas populem qualquer centímetro quadrado — farejam o açúcar até mesmo na tela do meu laptop, que apresenta via Skype um estranho enquadramento deste paulistano de 55 anos. Os minúsculos seres saem do nariz do poeta e entram pelos olhos do artista plástico, voltando através das orelhas do filósofo para em seguida se enfiarem na boca do narrador, ensaísta, letrista de música. A obra do multiartista é conhecida pela dissolução de linguagens, de um material em outro; assim, de incerto modo, o passeio das formigas pela representação pixelizada de Nuno Ramos o tornava mais real, mais físico. Dissolução que se aproxima da dissoluta voz a percorrer seus Sermões (Iluminuras), primeiro livro que publica após Ó e Junco, ambos vencedores do Prêmio Portugal Telecom.
Trata-se de um longo poema narrativo ou ficção em versos narrada por um velho professor de filosofia em permanente paudurescência — um sujeito que quer dissolver seu sexo em pleno mundo. “Últimas ereções de um tiranossauro à beira da extinção (…), o canto se confunde a maior parte do tempo com um urro, com o esganamento da glande, agarrando-se à grossura do discurso pornô que também irrompe entre frases as mais altaneiras, em uma desabalada e vulgar despedida do mundo”, analisou o escritor Joca Reiners Terron. Assim como a obra de Ramos, a lembrar o célebre verso de Caetano Veloso a respeito do Brasil — “aqui tudo parece construção e já é ruína” — , o romance aproxima violentamente o desejo da vida da pulsão de morte ao acompanhar a rarefeita rota do professor. Ele sai de Ouro Preto, onde faz sexo em uma igreja, sobre um tapete onde se vê a imagem de um tigre atacando ovelhas, e vai participar de um congresso em Londres; lembra-se da mãe morrendo; muda-se para o centro de São Paulo; desce a uma praia, onde faz sermões tal como um deslocado e aloucado Antônio Vieira; volta a Ouro Preto até ser expulso de uma igreja; rememora filmes como Stalker, de Tarkóvski, e A palavra, de Dreyer; e afinal se encontra com a professora de ioga, uma Mestra, divina e hermafrodita, que não precisa dele. É um percurso entre Eros e Tanatos em que a impossibilidade de ligação com o mundo faz nascer o discurso ao mesmo tempo em que mata o seu falante; no meio do caminho temos as belíssimas imagens dos sermões na praia, e várias epifanias na igreja, no aeroporto e na sessão de ioga.
“Usei muitas vezes pedra-sabão na minha obra, e fui muito para Ouro Preto para isso, ficava talhando, fazendo esculturas”, contou Ramos à seLecT sobre a inspiração para o personagem. “A pedra-sabão parece um óleo, escorrega, você talha com uma faca, é mais suave que madeira. Tudo o que eu faço tem uma materialidade meio intermediária, entre o duro e o líquido, coisas não prontas, não formadas. Às vezes pego uma coisa pronta e a regrido, às vezes pego uma coisa formada e a deformo: busco esse lugar em que as coisas se dissolvem, essa fronteira, esse contorno. Algo precário, entre um estado e outro. Gosto da hora em que o sol se põe. O lusco-fusco”, conta.
Embora o percurso seja em direção à morte, o livro é solar: entre luto e tesão, a negatividade da escrita impõe-se transformadora. “Um livro excessivo em seu transbordamento linguístico e muito necessário ao panorama das coisas”, afirmou Terron sobre a bem-vinda poesia suja dos Sermões a nossa literatura atual — talvez um tanto acomodada. Ramos conversou com seLecT no intervalo do próximo trabalho: as pinturas que exibirá em agosto na Estação Pinacoteca. Cada uma pesa uns 500 quilos e expõe cores fortes e texturas que misturam pelúcias, metais, madeira, lona, cordas, fibra de vidro, cetim — e imaginários utópicos: “Maracangalha”, de Dorival Caymmi, O manto de penas, de Zeami Motokiyo, As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e “O semeador”, de Van Gogh. Uma volta ao início de carreira, quando já era escritor mas ainda tateava a pintura, antes das enormes instalações Globo da Morte ou Bandeira Branca. A entrevista não teve um final: o Skype fragmentou face e discurso de Nuno Ramos até que sumissem em algum lugar da internet. Sobraram de seu contorno as formigas.
Seu texto mais conhecido é ‘Suspeito’, é a primeira menção que vem junto ao seu nome no Google. Um ano depois, a esta altura do campeonato, você ainda suspeita que estamos fodidos ou já tem certeza? É, eu sou um suspeito, na verdade (ri). Eu acho que estamos muito fodidos, sim, na falta de perspectiva de desejo de país. Que configuração do possível, de escolha, queremos? Isso regrediu loucamente. Mesmo em momentos piores do país, que vivi quando jovem, havia muito mais pontos de fuga. Isso encruou: não há nenhuma força externa que aponte para algum lugar. O PT e o PSDB estão cada vez mais parecidos, e ocupam qualquer espaço político. Aquilo que poderia ser o reconhecimento de um projeto comum, o Real, a Bolsa-Família, evidentemente houve conquistas, hoje de em um retorno do mesmo, infindável. É como se a gente estivesse naquela frase do elevador, que eu adoro… uma frase incompreensível, lacaniana: “Ao entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar”. O mesmo tomou conta do Brasil. Estamos muito fodidos, mas o problema não é tanto econômico. Acho que a Dilma teve coragem de fazer o que está fazendo: poderíamos ir para uma argentinização, ela poderia ter chamado sei lá, o Belluzzo, seria pior ainda; teve coragem de chamar o Levy. Mas ela não tem projeto nenhum para o país. Não tem pauta nova, não fala de ecologia… A Marina sumiu, parece uma aristocrata. Passa-se a vida falando mal do país, só que você é imediatamente captado por um discurso ou a favor do PT ou contra o PT: há um emburrecimento, uma falta de humor, uma paranoia — estamos todos paranoicos no Brasil. A imprensa persegue, o PT persegue, o PSDB persegue. Vivemos a crise do modelo modesto de país que o PT e o PSDB fizeram, com elementos legais — mas esse modelo implodiu e a gente não consegue sair dele.
No mesmo texto, você fala sobre a degradação das cidades. De certo modo este tema está presente em quase tudo o que você faz: a passagem do amorfo para o disforme, com breve escala em alguma espécie de construção. Esta ideia também está presente nos Sermões? Sim. Acho que no “Suspeito” falo no contexto da violência. É o grande tema brasileiro, antes mesmo da distribuição de renda, da desigualdade social, racial; é o primeiro dos temas. Temos 57 mil assassinatos por ano, números intragáveis. Essa violência inclui o urbanismo: tímidas conquistas são imediatamente postas abaixo. A violência é nosso veículo e pensamos pouco nisso. Na minha obra, essa característica é usada em uma espécie de reversão. Peço um pouco de violência nos seres para desestruturar o que está muito fixo. É um tema forte para mim. Nos Sermões, que é um texto mais desinibido — muito mais que o Junco, que reescrevi durante 15 anos —, muito associativo nas várias vozes que vão entrando, há um fluxo que guarda relação com essa coisa minha com os materiais: fazer o duro parecer mole, o mole parecer duro, o artificial parecer natural, o natural ser mais plástico. Me sinto muito exposto, como poucas vezes me senti. Foi necessária uma violência aí.
Nos Sermões você diz que não pergunta ao ossos qual formato tinha a carne, porque as palavras são insuficientes, e mesmo as imagens são insuficientes; mas o tato não mente. Vivemos hoje uma superabundância de imagens e textos. O seu livro, apesar de se incomodar com as imagens, também exibe uma superabundância de imagens, comparações, metáforas. Mas, em vez de usar essas imagens pra representação do mundo, sua obra aspira a se dissolver no mundo. Faz sentido isso pra você? Do todo para a parte, a gente vive uma abundância de discursos controladores, que podem estimular uma contenção, uma certa discrição, na arte. Uma obra como a Mira Schendel, uma pessoa importante pra mim, que tinha vergonha de criar, de se expor, e parece um pouco João Cabral, Paulinho da Viola. Só que eu sou de outra família — acho que vim trazer ruído para o mundo, não o silêncio, é da minha natureza. Até pela própria característica da minha obra, a proficuidade, estou nesse lugar do ruído — talvez eu ceda à minha época. Mesmo quando monto uma exposição, tenho um horror ao vazio, tenho que encher todo o espaço possível. Talvez eu esteja na hora de voltar à contenção — daí estar agora focado na pintura.
Sua obra está marcada pela dualidade existente entre a forma e o disforme, entre criação e destruição. Nesse livro, tão marcado pelo Drummond, ecoa trabalhos antigos teus, como o que você vai buscar no Claro enigma sobre a questão central da catástrofe. Parece que em tudo o que você faz existe a onipresença da morte e a resistência da memória — me refero tanto a obras como a “Morte das casas” quanto a poemas do Junco, em que você brinca com a “A máquina do mundo” do Drummond. Neste Sermões, o texto é uma máquina a serviço do pau. O sexo é a única saída para o esgotamento? O Drummond escreveu também muitos poemas eróticos e explícitos. Essa coisa da fusão está nele, a pedra-sabão está nele. Até mesmo a poesia familiar, política, o agora da pólis, são temas drummondianos, e neles, em vez de procurar o contraste, ele busca a fusão, ele não quer que uma coisa exclua a outra. No Cabral, a gente vê os elementos mais separados, em desaceleração. Já Drummond é acelerado, tenta aproximar violentamente os opostos. Desde muito jovem eu o li. A transcrição do sexo para a palavra já é tão falha que… você ter uma experiência amorosa e tentar escrevê-la é um desafio muito grande, o fracasso está sempre próximo. Nos sinônimos para falar do sexo, é muito diferente falar “pau” ou “caralho”, ao contrário de, sei lá, escolher entre “luz” ou “claridade” para falar da cor branca, que são termos mais próximos. Há uma exigência muito grande ao escolher os palavrões. Por exemplo, fiquei na dúvida sobre se usar “cona” ou “buceta”… “Buceta” é uma palavra que ocupa a sala toda, muito forte; preferi “cona”, mais neutra. A tradução de Sexus, do Henry Miller, que reli 200 vezes, usava “cona”, talvez por isso a usei. Mas, voltando à história do esgotamento, no livro eu falo desse sexo que está acabando, o sexo de um sujeito que está morrendo, e que vai acabar em uma deusa que está sendo comida, uma deusa hermafrodita, que tem um pau dentro dela que se mexe. A deusa sexual é inacessível, pois é autopenetrada, a Mestra. É uma falência da vida, uma perda de contato que acaba liberando o lado discursivo do personagem. O sermão vem na falência do Eros. É o percurso de alguém que está perdendo este acesso ao sexo. Ele vai caminhando para a morte como se houvesse um abraço inevitável do qual não se consegue fugir.
Queria que você falasse um pouco do começo da sua carreira. Sei que você estudou no Equipe, onde tinha um curso de redação famoso, do Gílson Rampazzo. Essa formação foi importante para a sua escrita? Quando você se imaginou artista, e quando pensou que poderia ser escritor? Como uma coisa vai parar na outra? Comecei a escrever antes mesmo do Equipe, aos 12. Meu pai dava aula de literatura na USP, ele era português e me mostrava Fernando Pessoa, só que morreu muito novo — eu tinha 14 —, então fiquei nesse lugar da literatura muito sozinho. E sempre me vi como um escritor, não um artista plástico. Quando fui estudar filosofia, pensei em fazer algo que meu pai não era — um professor universitário, esse tipo de intelectual. Leio muito mais do que eu entendo, tenho uma reflexão muito fraca. Alguma coisa aconteceu na minha ligação com o texto que me deixou meio em crise, porque escrevia sobre coisas que não sabia do que estava tratando, daí parti para as artes plásticas. Artistas como Herberto Helder, Jorge de Lima, Murilo Mendes, têm uma sabedoria do sentido do tempo muito mais rigorosa, e eu tenho um pouco de medo disso. Como sempre gostei da matéria — que não mente: ela cai —, busco o real. Então essa coisa muito abstrata, feita de vento, que a palavra tem, nunca me atraiu: eu busco a materialidade, a coisa física — por pior que seja o resultado. Sempre gostei disso em artes plásticas, o corpo da tinta. Comecei tarde nas artes plásticas, aos 22, muito mais tarde do que na literatura. Aliás eu tenho alguma técnica como escritor, mas muito pouca como artista plástico. Não sei desenhar, não sei pintar, não sei fazer nada.
Existe por trás do fluxo de consciência dos Sermões uma narrativa rarefeita, que você expõe no fim do livro. Tem um percurso, uma história, e você também é um prosador que conta histórias. Acho que você se aproxima de poetas como o Herberto Helder, que fazem uma espécie de história do espírito. É esse tipo de poesia que te atrai? O que tem lido, em poesia e prosa? Leio muito vagabundamente. Li um ensaio sobre como os vírus europeus chegaram aqui. Leio os contos do John Cheever. Tenho lido Bruno Schulz, Tratado sobre os manequins. Mas não tenho influência muito direta de nada que leio. Gosto muito do Carlito Azevedo, o Monodrama, acho muito bonito. Por associação a coisa vem, algumas palavras, ideias. O poema narrativo me fez colocar no personagem, senti alguém que não era eu, uma voz lírica que coloca o livro mais próximo de um romance. Gosto do Helder, mas busquei mais situar pequenas cenas que aproximassem o livro da narrativa, e não o deixasse vagar pelo fluxo de imagens.
Alguns museus têm impedido que os frequentadores façam selfies. O que acha disso? Como você interpretaria as pessoas se fotografando em frente às suas obras? Bater uma foto da Mona Lisa já é um selfie: é um registro de que você esteve lá. Como toda coisa massiva, acho que a gente perdeu muito a naturalidade quando se usufrui cultura. A segunda vez que fui a Alhambra era uma excursão, você tem dez segundos pra cada sala, as pessoas vão te empurrando. Você perde a coisa de dar uma bundada. Gosto de ir ao Louvre pra ver o barroco espanhol, por exemplo, porque ninguém vai lá. É legal essa coisa da vagabundagem na arte. Uma vez fui ver o Manet em Nova York e requeria um exercício militar, todo mundo em fila, agora olha, agora não olha. É difícil. O selfie está nesse contexto de massificação de tudo. Talvez a gente se habitue a isso. Mas que atrapalha a fruição da arte, ah, isso atrapalha. Agora, se fizerem isso comigo, não tenho como evitar. É um enigma como a arte chega no espectador. Temos de lutar pra não perder a aura, a potência, a espontaneidade. Então de repente o cara fazendo selfie pode até ter uma leitura melhor da minha arte do que alguém que ficou duas horas dando voltas ao redor de uma obra minha. Ué. Pode ser, como vou saber?
Muito bom! Tentei apagar as formigas do meu laptop, que estava bem sujinho.