
Bem que o Fante falava pro Bandini: espere até a primavera. Esqueça os coleguinhas no playground gelado das redes sociais e escape para os parques com livros florindo e rindo — o amor é uma merda, mas é lindo
FICÇÃO GRINGA

Mentiras sinceras
De repente, uma batida na porta, de Etgar Keret (trad. Nancy Rosenchan), Rocco
Se “De repente” é quase pecado mortal para a “boa literatura”, “De repente, uma batida na porta”, então, parece até redundância. Felizmente a grande literatura não está nem aí para obviedades e pecadilhos e distorce clichês para apontar a originalidade onde não se esperava — não mais que de repente. O israelense Keret é desses escritores que se lixam para as regras da boa conduta mas segue um mandamento: narrar situações insólitas em linguagem cristalina. Como o conto-título, em que o escritor está em casa quando aparece um sujeito armado instando-o… a contar uma história. Outro conto, “Xisus Cristo”, fala da teia de causalidades — a misteriosa tese do bater de asas da borboleta que fermenta um tufão noutro lado do mundo — a partir das últimas palavras de um sujeito, “Sem queijo”. Noutro conto os personagens inventados em pequenas mentiras se tornam reais; outro conta de um sujeito que vive de olhos fechados falando de coisas que não existem. O mais intrigante em Keret é o talento para pegar o leitor pela mão e convidá-lo a entrar e sair do real como quem pede uma pizza.

Pindaíba
História do dinheiro, de Alan Pauls (trad. Josely Vianna Baptista), Cosac Naify
Só fala de dinheiro quem não o tem, reza a sabedoria popular, e como se fala de dinheiro na rica Argentina (sem ironia com a atual calote). Estremecida, como tantos países latinos, por sucessivas mudanças de moeda, o vil metal é assunto corrente, bem como a desconfiança no sistema bancário é tradição familiar. O pai do protagonista deste novo romance de Pauls vive até os 65 sem ter aberto conta em banco. “Onde está o dinheiro?”, pergunta sussurrada na cena do velório que abre o livro (a bufunfa do defunto sumiu!), é o leitmotiv da narrativa — a Argentina é este país onde se pode ganhar dinheiro descolando emboloradas notas de dólar que ficaram enterradas por décadas. Como realizou nos anteriores História do pranto e História do cabelo, neste encerramento de trilogia Pauls parte de memórias pessoais — narradas em sua hipnótica, ziguzagueante e onipotente terceira pessoa — para abarcar um tema maior, com menções à literatura e à História. Seu estilo alucinatório casa às maravilhas com a análise psicanalítica das ligações de uma falida família com esta substância tão essencial quanto intangível.

Micro
A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso (trad. Millôr Fernandes), Cosac Naify
“Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá“, o microconto mais famoso do mundo, é frequentemente lembrado como exemplo de precisão e originalidade para contar uma história enorme em espaço infinitesimal. Seu autor, o guatemalteco Augusto Monterroso, ganha no Brasil enfim uma edição à altura de seus grandes pequenos feitos — aqui traduzidos pela verve de Millôr Fernandes. Não há dinossauros, contudo: os protagonistas são fabulosos professores-grilos, sereias afônicas, baratas sonhadoras, raposas escritoras. Irônico, corrosivo e melancólico, Monterroso subverte a moral das fábulas para trazer fábulas imorais — como o sujeito descontente com a perfeição do Céu pois “o único mal de ir para o Céu é que dali não se vê o Céu“. Ou o cão que sonhava ser humano mas à noite gania para a Lua. Ou um camaleão indeciso sobre que cor escolher. Ou os corvos que insistiam em comer os olhos dos que os visitavam em um zoológico. Ou do escritor que sonha em ser uma barata (a chinelada, sabe-se, é o destino de todo autor).

Anti-ajuda
Como ficar podre de rico na Ásia emergente, de Mohsin Hamid (trad. Sonia Moreira), Companhia das Letras
Narrar na segunda pessoa do singular requer a insalubridade cerebral dos manuais de auto-ajuda e dos guias religiosos. Ou então você é o escritor paquistanês Mohsin Hamid e inventa uma história maluca mas muito viável sobre um garoto pé-rapado vindo do interior que fica rico vendendo água — roubada da água da rua, fervida, acondicionada em garrafas roubadas de restaurantes e apresentada como água mineral. Logo no início você conta como o garoto se apaixona por uma menina bonita, que sobe na vida à base de sexo; a menina bonita funciona como um espelho para o rapaz espertinho. Então você estrutura seu livro com títulos como “Mude-se para a cidade grande”, “Consiga um diploma”, “Não se apaixone”, “Evite os idealistas”. “Aprenda com um mestre”, “Trabalhe para si mesmo”, “Esteja preparado para fazer uso da violência” etc etc, e usa muito bom humor e senso agudo dos mecanismos sociais em um país emergente e não nomeado (mas que pode ser tanto o Paquistão quanto o Brasil) enquanto vai acompanhando a surpreendente ascensão social do espertinho. Aí você acaba escrevendo ou um falso manual de auto-ajuda ou um dos romances mais divertidos lançados nos últimos anos e faz sucesso mundial: seu auge é flanar na FLIP entre estrelas literárias e beber água-que-passarinho-não-bebe em Paraty.

Escondidas
O Buda no Sótão, de Julie Otsuka (trad. Lilian Jenkino), Grua
Se é complicado escrever um romance inteiro na segunda pessoa do singular (como o livro aí de cima), imaginemos a dificuldade em narrar usando só a primeira pessoa do plural, como este arrebatador romance da californiana Julie Otsuka. Aqui acompanhamos a perigosa viagem de virgens japonesas rumo aos pobres leitos oferecidos pelos maridos nipônicos que já as aguardavam nos Estados Unidos, no começo do século 20; a estranheza ao assistir o crescimento dos filhos, aculturados, falando inglês, usando talheres; a tristeza ao serem deportadas aos milhares para campos de exclusão, na década de 1940 — quando já haviam se tornado cidadãs norte-americanas. Delicada, gentil, dura e jamais piegas, a prosa de Julie talvez nos emocione ao recuperar de modo realista, calcado em rigorosa pesquisa, não apenas (mais) um capítulo vergonhoso do Século Americano, mas também garantir, com seu relato sincero, a reativação de uma função original da literatura: dar a sensação de que, lendo, jamais estamos sós.

Off-Seul
Sukiyaki de Domingo, Bae Su-ah (trad. Hyo Jeong Sung), Estação Liberdade
Já tem coreano falando em português, é não é só no bairro paulistano Bom Retiro. Este primeiro romamce sul-coreano publicado pela editora tradicionalmente nipófila tem estrutura semelhante ao título. O sukiyaki é um cozido de carnes fatiadas, verduras, macarrão, cogumelos e outras mumunhas; o prato é comido à medida em que é produzido. Do mesmo modo o romance se constrói à medida em que seus capítulos-contos formam um delicioso quebra-cabeças da periferia de Seul, onde partilhar o prato japonês no domingo é o ideal para uma família feliz. Mas famílias felizes não rendem bons romances, e o que temos aqui é um retrato avesso do sucesso Gangnam style marqueteado pela Coréia do Sul. A engenhosa estrutura coloca um personagem protagonista em um capítulo-conto e coadjuvante no seguinte, resultando em súbidas mudanças na perspectiva — o que inclui sarcasmo feroz, realismo violento e mergulhos psicológicos em vidas muito ambíguas. Melhor ir com calma na degustação: a autora Bae Su-ah, que se formou em química e hoje vive na Alemanha, não alivia no tempero.

Venéreo
Um homem morto a pontapés, de Pablo Palacio (trad. Jorge Wolff), Rocco
A coleção Otra Língua, dedicada a explorar o grande manancial de literatura latino-americana soterrado por medalhões, apresenta agora ao leitor lusófono o estranho caso de Pablo Palacio, um equatoriano que escreveu contos formidáveis aos 20 e poucos, teve uma carreira meteórica como advogado, militante socialista, editor de literatura e funcionário do governo, teria contraído sífilis, passou 10 anos em um hospício e morreu. Seu texto, no entanto, prossegue bem vivo como “um elo perdido entre a antropofagia de Oswald de Andrade e o modernismo da América Latina” do começo do século 20. No posfácio, o estudioso de hispanidade Jorge Wolff descreve Palacio: “sátira sintética, fragmento insolente, caráter crítico-político de uma prosa vazada por uma limpidez altamente poética e por uma atmosfera saturnina absolutamente pessoal e intransferível”. Ou seja, um antepassado distante de João do Rio ou de Dalton Trevisan. No conto-título o narrador decide averiguar esta notícia de jornal sobre um homem que morreu por múltiplos chutes; nas histórias seguintes, bruxarias, adultérios, doenças venéreas, crimes e alguma fantasmagoria demonstram que o legado de Poe em Palacio encobriu-se com as brumas psicodélicas do altiplano.

Migalhas
A Festa da Insignificância, de Milan Kundera (trad. Teraza B. C. da Fonseca), Companhia das Letras
A leveza ainda está lá — mas o enredo, quanta diferença. A habilidade de Kundera em mixar o ensaio com o romanesco gerou clássicos como A Insustentável Leveza do Ser, que também gerou um belo filme e um presente certeiro para enamorados (a exemplo de Bonsai, de Alejandro Zambra, ou Carta a D., de André Gotz). Mas aquela receita, se não malgrou, também não milagrou na nova festinha do autor tcheco. A beleza da abertura — em que um dos quatro personagens dessa breve trama filosofa sobre os umbigos à mostra das parisienses — não se sustenta no decorrer da narrativa. Que se resume aos preparativos para uma festa, observada de maneiras diversas por cinco amigos: um é arrogante e tão cheio de si que finge ter câncer, outro é assombrado por anjos que o lembram a mãe, aquele se fantasia de paquistanês para dar graça ao trabalho de garçom, este se obceca pela insignificância em contraposição ao brilho, e o primeiro tem fixação, como disse, por umbigos. Paralelamente se conta uma anedota em que Stálin solta uma mentira tola. A certa altura da festa, uma pluma flutua. Por todo o texto, o subtexto: a vida é teatro; e é breve. Mas, desta vez, a arte também.

Putaria anônima
Wilde, Swinburne, Anna P.
Uma coleção para deixar no criado-mudo e suas distrações noturnas, ou então na mesinha de centro, se a intenção for induzir os convidados a festinhas animadas, daria uma boa definição para esta série Sexo, da editora Hedra, cujo design sofisticado conta até com tipologia de nome Libertine. “Senti seu aperto infiltrar-se lentamente por todo o meu corpo, acariciando meus lábios, minha garganta, meu peito; meus nervos estremeceram de delícia da cabeça aos pés, e depois ela mergulhou até meus quadris, e Príapo, novamente desperto, alçou sua cabeça.” E toda essa loucura desencadeou-se por um mero toque de mão de um mancebo no outro… O Outro Lado da Moeda (Teleny), pioneiro romance gay, teria sido escrito por Oscar Wilde, mas não há provas suficientes; mais certo é que o editou e introduziu a notória língua ferina (ups) com as alusões a temas homoeróticos da Bíblia (Davi & Jônatas), da antiguidade (Antínoo & Adriano) e da poesia clássica. Narrando a descoberta da homossexualidade por um jovem burguês que conhece um pianista de sangue cigano, as descrições ultraexplícitas de cenas libidinais e o tom sôfrego de torch song tornam único este exemplar pornô, que ficou décadas soterrado sob a carolice editorial britânica. Já o romance A Vênus de Quinze Anos, atribuído ao poeta inglês Charles Swinburne, é um pré-Lolita. Aos 35 anos, o Capitão Archer relata como teve a sorte de se tornar o tutor de Flossie, uma incandescente adolescente que virou uma Linda Lovelace vitoriana em temporada num colégio francês. O safado livrinho, que rodou clandestino por quase 200 anos, é uma ode ao fellatio, ao minete e cunete a dois e a três, descritos com alegria e malabarismos verbais, nos mínimos detalhes e sem a menor vergonha. Para fechar, lamente-se que Tudo O Que Pensei Mas Não Falei na Noite Passada, o lúbrico livro de Anna P., assim como aconteceu aos atribuídos a Wilde e Swinburne, esteja protegido pelo anonimato, o que impede a fama da autora: aventuras, descrições, diálogos, reflexões, linguagem, estrutura e humor a demonstram uma mulher livre como poucas, neste selvagem e solitário século 21.
QUADRINHOS

Negro drama
Cumbe (Veneta), de Marcelo D’Salete
2014 ainda nem acabou e já tem sério concorrente a melhor graphic novel. Raridade no mundo da tinta preta, o autor, que é negro, tem especial apreço pelo resgate da cultura afro — o livro reúne contos de quando o Brasil era populado por milhões de escravos. As histórias, que tratam de perseguições a escravos fugidos, roubo de bebês e rebeliões de quilombos, são dramáticas e melancólicas, mas o traço elegante e os enquadramentos sofisticados de D’Salete expandem as narrativas na direção do mágico e do alegórico — o autor sintetiza delicadeza e violência como poucos, alcançando um resultado extremamente emocional. O trabalho impressiona mais quando se sabe que é só um capítulo da saga em busca de retratar uma de nossas histórias menos conhecidas e mais gloriosas: a do Quilombo de Palmares. O título, aliás, significa tanto quilombo quanto sol. Ou liberdade.

Bíblia dos quadrinhos
A Boitempo estreou o selo Barricada com um catatau de 500 páginas, indispensável a quem ama literatura e HQ: o Cânone Gráfico. Este primeiro volume (há mais dois) traz clássicos da literatura universal reinventados por monstros da arte serial — Peter Kuper, Robert Crumb, Will Eisner. Pode ser também uma boa desculpa para você fazer uma leitura dinâmica de livros que nunca folheou, como clássicos de Shakespeare, Cervantes, Poe, Kafka. Mas creia: a arte matadora vai fazer você demorar ainda mais tempo do que se estivesse lendo os livros.

Revista de sacanagem
Esta é para quem tinha saudade de quadrinhos iconoclastas, infames, sujos e, acredite, engraçados. Xula, revista editada pelo quarteto Bruno di Chico, Bruno Maron, Calote e Ricardo Coimbra, todos tangidos pela batuta de Luciana Foraciepe, a Maria-Nanquim original, consegue a proeza de ser ao mesmo tempo bonita e tosca. Piadas escatológicas (muita fixação anal… tem que ver isso aí), ideologicamente pervertidas e com uso pesado de personagens reais — como Drauzio Varella, Serginho Groisman e Walmor Chagas — te fazem voltar à quinta série, quando o mundo era ainda era divertido (e você, virgem). Procure em facebook.com/MariaNanquim.
FICÇÃO BRASUCA

Cuidado com a espingarda
O Homem-Mulher, de Sérgio Sant’Anna, Companhia das Letras
Que significa a expressão “melhor contista brasileiro em atividade”? Que o merecedor, além de bordar o texto com uma voz pessoal, a faz falar em variados tons, registros e perspectivas. É Sérgio Sant’Anna em nova antologia — que pode deslumbrar tanto quem não conhecia seu texto elegante quanto os que a ele eram habituados, mas não esperavam do septuagenário tamanhas estripolias e ousadias. O bruxo de Laranjeiras nunca foi tão fundo nos flertes com o erotismo, o humor, a morte e os embates entre arte e vida. Tome-se só o conto-título, dividido em dois: a abertura, leve e divertida, e o encerramento, trágico, autocrítico e dobrado sobre si mesmo — a construção mise en abîme erigida com simplicidade —, em que um sedutor paraense que se veste de mulher para seduzir moçoilas tenta a sorte como ator no Rio de Janeiro escrevendo a peça Os Desesperados, sobre uma trupe teatral morta de fome: os personagens são os próprios atores. Para não tirar a graça, diga-se que o autor brinca com um dos grandes clichês do teatro, criado pelo também grande contista Anton Tchecov: “Se no palco se encontra uma espingarda no primeiro ato, no último ato ela terá de disparar“.

Prosa safada
Cheirinho do Amor, de Reinaldo Moraes, Alfaguara
Você pode conhece o Reinaldão, maior escritor brasileiro vivo (mede 1,92m), pelas páginas finais da revista Status, onde o autor de Pornopopéia discorre bugalhos e groselhas sobre o zeitgeist masculino chegando a informações bizarras ou insights geniais — tudo lambuzado em humor e sexo. Agora imagine todas esses textos reunidos em um lugar só. Nesta reunião de crônicas, percebe-se panoramicamente que a obsessão pelo nheconheco é o modus operandi do priápico autor em relação à própria língua portuguesa — e da inglesa, francesa e latina, as quais o sexygenário também domina. Haja sildenafil e tadalafila! Livro pra deixar no banheiro, no criado-mudo ou na mesa de centro, pra animar visitas.

Tarado
Parafilias, de Alexandre Marques Rodrigues (Record)
Hilda Hilst costumava dizer que, para um livro erótico ser realmente bom, precisava passar no teste do colo. O leitor deixa o livro no colo e, se o livro começar a se levantar, é porque funciona… O teste é, digamos, uma meia-verdade, uma vez que só funcionaria para leitores homens — outra provocação de Hilda, uma mulher que, aos sessenta anos, embarcou no machista mundo pornográfico com O Caderno Rosa de Lori Lamby, o que lhe rendeu a acusação de “abandonar a alta literatura para chamar a atenção do mercado” por alguns críticos ranzinzas.
Tudo isso pra dizer que estas Parafilias passam no teste do colo e também no teste do cruzar de pernas (conforme comprovaram duas amigas a quem pedi uma rápida leitura). O livro tem uma unidade temática clara: o erotismo e seus satélites. A escrita elegante de Marques Rodrigues mais insinua do que revela, embora, quando revele, o faça sem pudor, dando os nomes às pudendas (felizmente ele joga no time dos que chamam pelo substantivo bunda a coisa bunda, ao contrário dos eufemísticos traseiro, posterior e bumbum usados pela maioria dos escritores ao se referirem à preferência nacional). E sabemos que, no erotismo, a imaginação é quase tudo. Não se engane, porém: se Marx precisar descrever com crueza um ato sexual, ele o fará.
Seus contos, curtos na medida, e sua linguagem clara e eficaz, falam do camareiro de motel que precisa limpar as imundícies que os outros fizeram e que foge de sua vida medíocre lendo Tchécov, Dostoiévski e Górki, de um garçom tarado, de um cineasta que quer fazer sua namorada gozar e lhe conta sobre o filme narrando o retorno de Cristo, da mulher que pede ao amante que leia os livros do marido para se excitar, do escritor com bloqueio criativo que faz listas de palavras aleatórias enquanto é obrigado a amar a mulher que lhe paga as contas, dos adolescentes que se excitam vendo os quadros de Schiele.
O erotismo é um modo de investigar o mundo, e, portanto, estes contos não se restringem a descrições de atos sexuais (entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, mulheres e transexuais, e as diversas práticas que provêm desses encontros). Para Marques Rodrigues, sexo é um atalho no relacionamento entre as pessoas, quase nunca o fim em si. Como se o embate entre dois corpos (às vezes encontro, às vezes choque) fosse o único meio possível de despertar a realidade. Assim, se aparentam ser lascivas, obscenas, sacanas, safadas, pervertidas ou fesceninas, estas histórias não passam de histórias de amor, de solidão, de incomunicabilidade e de desejo de morte. E, por que não, também de investigação da arte.
Como em muitas narrativas de Hilda Hilst, Sérgio Sant’Anna, Reinaldo de Moraes e Rubem Fonseca, os encontros sexuais antecedem ou explicitam uma epifania na literatura, na pintura, na música, na filosofia. No conto “Cachimbos”, o autor relaciona Magritte e Courbet para dizer, do famoso quadro deste, A Origem do Mundo: “isto não é uma boceta; pois a pintura apenas representa alguma coisa, mas não é nem traz a opção de desfrutar esta mesma coisa“. Mesmo que aprovadas nos testes de excitação, estas histórias não falam de sexo; o sexo representa alguma outra coisa. Mas o leitor vai ter de testar-se para descobrir que coisa é esta. (Texto para as orelhas do livro)
Todos as resenhas, exceto quando citado, foram originalmente publicadas no Guia da Folha Livros Discos Filmes e revista Status.