Estaria aceitando dicas de leitura pro inverno… que acabou de voltar?
LITERATURA GRINGA

Passado não passa
Formas de voltar para casa, de Alejandro Zambra (Cosac Naify)
Neste novo romance, Zambra entrelaça as idas e vindas dos relacionamentos aos ziguezagues da memória. Sua escrita é tão intimista que nos dá a ilusão de que o próprio autor é o narrador do romance, que indaga: como reconciliar-se com a infância, a “casa” em que nascemos, se aquela memória está nublada pelos acontecimentos torpes de uma ditadura militar como a comandada por Pinochet? Como revisitar essa casa se foi envolvida pelo silêncio dos que fugiram, dos que viveram e dos que compactuaram com o horror? Na primeira pessoa, Zambra conta, com emotividade contida e minuciosa, o reencontro com uma mulher por quem foi fascinado durante a infância. Depois de exilar-se nos EUA por muitos anos, Claudia volta a Santiago por causa da morte da mãe, mas a irmã a proíbe de ficar em sua casa. Ela pede guarida ao anônimo narrador, que está em vias de voltar para a ex-mulher — o que torna as coisas ainda mais confusas. O retorno de Claudia é um retorno à infância, e o narrador descobre que sua platônica paixão era filha de um combatente do regime que se escondia sob um nome falso. Forçado a revisitar o passado, reencontra os pais e se incomoda com o conservadorismo e a insensibilidade deles para com a ditadura. O embate com velhos traumas faz surgir novos estranhamentos — mas também algumas epifanias. Todas contadas naquele tom ao pé do ouvido, como um segredo, no melhor estilo Zambra.

Parque temático da paranoia
Arrecife, de Juan Villoro (Companhia das Letras)
Substâncias alteradoras da percepção e fugas da realidade são os ingredientes deste alucinante romance de Villoro, tido hoje como um dos melhores escritores mexicanos contemporâneos. Seu narrador, o roqueiro falido Tony Góngora, perdeu a memória de tanto usar drogas; já na meia-idade, topa o convite do ex-colega de banda Mario Müller para trabalhar em La Pirámide, um resort sofisticado e totalmente incomum. Talvez inspirado na síndrome de Estocolmo e nos jipes chiques que levam magnatas gringos rosados para passear pelas favelas cariocas, Müller idealizou um hotel muito alternativo: os hóspedes conhecem guerrilheiros e podem até ser sequestrados. A ideia é que, passando medo extremo, voltem a se sentir vivos — e, claro, retornem em segurança à vidinha entre shoppings e campos de golfe. Só que o uso indiscriminado da tal droga chamada realidade acaba mal e um mergulhador do hotel é encontrado morto com um arpão nas costas; Tony, o pobre técnico de som do aquário, terá de investigar o crime. Convertendo o narcotráfico e o crime organizado em grande metáfora do México, é o tipo de thriller viciante que faz o leitor rir e se horrorizar ao mesmo tempo — a paranoia do narrador e de todos os personagens o fazem desconhecer o material do chão que pisam, e esta sensação bamboleante contamina o leitor. Felizmente, como contraponto a este pêndulo dramático, Villoro nos entrega o antídoto para essa paranoia: a amizade. Então o livro se converte em um tratado de como conservar a lealdade (e a lucidez) em tempos obscuros.
LITERATURA BRASILEIRA

Tudo é falso
F, de Antônio Xerxenesky (Rocco)
O segundo romance do gaúcho Xerxenesky se passa em 1985, um ano depois do nascimento do autor. É narrado por Ana, uma estudante de cinema que adora Joy Division, cresceu no Rio de Janeiro e vive nos EUA, onde trabalha como assassina de aluguel. Tais fatos já merecem nosso voto de confiança, posto que a narrativa foge à onda de autoficção que tem assolado a literatura contemporânea (obliterada pelo rolo-compressor Knåusgard, que esgotou o estilo). Nesky — como o escritor e editor é chamado pelos amigos — também não compactua muito com outra tendência, a do realismo: seu romance Areia nos Dentes mixa zumbis e caubóis e os contos de A Página Assombrada por Fantasmas são seres saídos da própria literatura. Assim, neste romance há que se ter cuidado; tudo pode ser tão falso e farsesco quanto as anedotas do ousado documentário F for Fake, dirigido e editado por Orson Welles — ninguém menos do que o alvo da simpática Ana. Sua obsessão pelo vitalista cineasta norte-americano e pelo depressivo grupo pós-punk inglês conduzem ciclotimicamente a trama — que emula a estrutura de um romance policial e discute, com a leveza própria aos sintetizadores dos anos 80, os limites entre mentiras e verdades, arte e não-arte. Felizmente Nesky abandona juízos de valor em favor das ambigüidades.
A Primavera da Pontuação, por Vitor Ramil (Cosac Naify)
Uma Emília no País da Gramática que trombasse com uma Zazie no Metrô que estivesse lendo Alice no País das Maravilhas só que em vez de maravilhas teríamos como pano de fundo as bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela polícia militar durante os protestos de Junho. Assim daria para se definir o terceiro romance do gaúcho Ramil (à parte a falta de pontuação). No Reino de Ponto Alegre, tal como o assassinato do arquiduque Ferdinando detonou a Primeira Guerra, um fato quase banal deflagra uma revolução: uma palavra-caminhão atropela um pobre ponto. Como um evento de tal magnitude não poderia acabar em reticências, os radicais Grego e Latino lideram um movimento (concebido por Homúnculo, o Grande) para dominar Ponto Alegre. O que eles não sabem é que o Agente da Passiva investiga as tramoias por trás de protestos e atentados. Repleta de humor, trocadilhos gráficos, ortográficos e gramáticos, a fábula tem — além de Monteiro Lobato, Raymond Queneau e Lewis Carroll — um quarto agente oculto com quem dialogar: o George Orwell de A Revolução dos Bichos. Anárquico e leve, o romance demonstra a versatilidade do cantor-compositor, que, após o denso Satolep, volta às brincadeiras de um personagem famoso em sua Pelotas: o enigmático Barão de Satolep.

Fui
Biofobia, de Santiago Nazarian (Record)
“A natureza é madrasta“, afirma Nazarian a certa altura de seu novo romance, como que sintetizando seu conceito — esboçado na epígrafe de Lars Von Trier, “A natureza é a igreja de Satã“. Como nos filmes de Trier, ou de Werner Herzog, aqui a natureza é hostil — ainda mais tendo em consideração um protagonista loser, André, de 40 anos, roqueiro que já conheceu melhores dias, todos arruinados pelo excesso de álcool e cocaína. Ele terá de se haver com a madrasta-Natureza porque sua mãe, escritora, matou-se, deixando-lhe como herança uma casa isolada em uma serra. Em síndrome de abstinência, o roqueiro delira, sufocado pelo excesso de ar puro, plantas, animais selvagens e recordações da mãe, da irmã ausente, da ex-namorada que o largou, do sucesso pretérito. Sozinho entre suas obsessões e a incapacidade de cuidar de uma casa que parece ceder antes às vontades da mata que a rodeia, André encaramuja-se: conseguirá sair? Este é o mote deste suspense psicológico, mais um na carreira do autor paulistano, que aqui depurou seu estilo reiterativo, estruturado em frases curtas, enoveladas em ritmo hipnótico, conduzidas pela questão essencial: como o medo da morte a torma mais próxima. Melhor não ler esse livro sozinho durante as férias na montanha.
HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Vida ao vivo
Tungstênio, de Marcelo Quintanilha (Veneta)
Após a fruição de qualquer dos álbuns de Quintanilha fica a sensação: mas do que mesmo ele estava falando? A própria vida, talvez, a resposta. Porque é nos meandros das menores anedotas que o escritor e desenhista de Niterói (RJ), hoje radicado em Barcelona, vai buscar grandes temas: a amizade, a lealdade, o amor, o medo, a honra. Conhecido por ambientar narrativas no subúrbio e nas favelas cariocas, Quintanilha vai desta vez a Salvador. A ação de Tungstênio se passa quase toda em volta do Forte da Barra, onde um ex-sargento reacionário e um pequeno traficante conversam — e a narrativa deslancha após o velho cismar de prender dois pescadores que estão em um barco usando ilegalmente bombas para pegar peixes. O traficante, que também é informante da polícia, chama para a captura da dupla um amigo policial, Richard, sujeito durão com problemas no casamento. Parece um tema banal, mas é primorosa a forma como Quintanilha entrelaça as narrativas, os pensamentos e as falas dos personagens — e o autor tem um ouvido para a fala naturalista brasileira como poucos escritores contemporâneos. Alternando-se entre a crônica de costumes e o thriller cinematográfico, combinado a uma arte extremamente realista, em PB, Quintanilha captura um Brasil sem heróis nem perdedores, mas incrivelmente vivo. Ah, sim: segundo o autor, o tungstênio do título é um jogo entre a maleabilidade com que devemos afrontar a dureza imposta pelo metal do dia-a-dia e até que ponto podemos forçar a dureza deste material, a ponto de rompê-lo.

Sem solidão
Gabo — Memórias de uma Vida Mágica, de vários autores (Veneta)
Eis uma bem-sucedida proposta editorial que alimenta um filão ainda por se explorar no Brasil: as biografias em quadrinhos. Recomendada aos que se sentem órfãos com a morte de Gabriel García Márquez, um dos maiores escritores do século 20, esta bio-HQ, premiada na última Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, foi escrita pelo roteirista Óscar Pantoja e ilustrada pelos cartunistas Miguel Bustos, Felipe Camargo, Tatiana Córdoba e Julián Naranjo (cada um desenha um capítulo em elegante duotone: laranja, azul, rosa, verde). A trajetória do escritor, da infância em Aracataca ao prêmio Nobel em 1982, começa pela mítica madeleine em que Márquez, então jornalista, se recorda da remota tarde quando o avô o levou a conhecer o gelo — lembrança que, como todo mundo sabe, abre o romance Cem Anos de Solidão. A escrita deste e de outros livros pontua a narrativa, além, é claro, da vida de estudante em meio aos tumultos políticos da Colômbia, do envolvimento com a Revolução Cubana, do cotidiano como crítico e jornalista investigativo — e de um universo mágico batendo à porta.

Bomba!
Trinity, de Jonathan Fetter-Vorm (Três Estrelas)
Hoje já parece um tanto bizarro saber que um país decidiu exterminar de uma só vez 400 mil pessoas usando artefatos que, usados em larga escala, poderiam levar à extinção não só da humanidade como do próprio planeta. Como chegamos a esse ponto? Como explicar algo inconcebível para as novas gerações? Um dia a tese da banalidade do mal de Hannah Arendt terá de ser descolada do Eixo para os Aliados — do lado vencedor, o mal pode ser visto em toda a sua glória banal, prosaica e corriqueira nas páginas desta graphic novel. Ele conta como os EUA iniciaram o Projeto Manhattan em 1942, ao temer, com razão, que os nazistas estivessem próximos de construir sua bomba atômica. Trinity é o nome do teste do primeiro artefato, ocorrido em julho de 1945. Em foco, a personalidade ambígua do físico Robert Oppenheimer, que comandava a operação ao lado de Leslie Groves, o general a manter na linha os milhares de operários — que não tinham a menor ideia do que construíam. Hábil narrador de jornalismo em quadrinhos, forma infelizmente ainda pouco usual no Brasil, Fetter-Vorm vai do geral ao particular, da História aos dilemas éticos dos seus personagens, em uma trama visual clara, dramática e perturbadora.
[Resenhas originalmente publicadas no Guia da Folha Livros Discos Filmes.]