
Bacana demais um festival de cinema de arte indie fora do eixo Rio—SP. Os filmes escolhidos pela curadoria do festival Cinerama Balneário Camboriú exibiram propostas provocadoras. Seguem algumas notas

A cidade
Balneário Camboriú combina boa parte do melhor e do pior do Brasil, em escala diminuta. O melhor: as ruas são limpíssimas, o povo é civilizado. No centro, não se veem bitucas de cigarro no chão. Sequer os moradores de rua dormem na calçada: os que vi roncavam sobre estrados ou camas improvisadas. Há muitas ciclovias bem sinalizadas, e os motoristas param se você chega perto de uma faixa de pedestre – sem necessidade de o sinal ficar vermelho. Nunca tinha visto isso no Brasil.
Certamente essa polidez e gentileza devem ser reflexo do perfil da população, a maioria composta pela terceira idade – e uma terceira idade com muita grana. Por ser um centro turístico de Santa Catarina, tem uma puta infra de restaurantes, bares, passeios, hotéis, que serão muito úteis quando o festival crescer e bombar de público.
O ponto negativo não é exclusividade de BC, claro. Pólo turístico das classes média e alta, BC desenhou em sua orla um dos mais feios conjuntos arquitetônicos do Brasil. O que sobra em organização e higiene ao centro falta em charme e estilo. Talvez uns 5% dos prédios tenham sido esboçados por arquitetos; o resto deve ter sido pela especulação imobiliária mesmo. Alguns dos edifícios mais altos do país estão aqui. O skyline só fica bonito visto do alto do mirante Camboriú, em um dia nublado e com chuva. Chega-se ao mirante por um passeio de teleférico que custa R$ 36. Dali a vista é despampanante. Recomendo.
Em suma: pelas contradições, uma cidade bem interessante para abrigar um festival.
A sala
O Cine Itália, onde foram exibidos os filmes da mostra competitiva, tem uma das maiores telas do país: 70m x 10m. Com capacidade pra 700 lugares, fica bem no centro, perto das ruas Central e Brasil, e não muito longe da praia. As poltronas são de couro, largas, confortáveis e sem percevejos. Infelizmente o vizinho, o cretino dono de uma academia de ginástica, mesmo após os pedidos da organização do festival insistiu em manter seu putz-putz dos treinos de spinning e o bate-estaca contaminou a trilha sonora de alguns filmes. É preciso rever o isolamento acústico da sala.
Quanto ao público, nas sessões mais concorridas apareceram umas 150 pessoas, a maioria muito jovem – a terceira idade de BC não se animou muito com o festival -, e muita gente de cidades vizinhas. Triste constatar que mesmo em festivais os espectadores preferem entrar no Facebook a se concentrar no filme. As sessões foram apresentadas com graça e simpatia pela curadora e organizadora Barbara Sturm, que não foge à boa ascendência (é filha do diretor do MIS/SP, André Sturm).
Os filmes
Meio baleado por uma gripe, não assisti a todos os filmes da mostra competitiva nem da Catarina, especializada no cinema catarinense, mas do que vi gostei. Uma ótima ideia foi projetar um curta-metragem antes de cada longa — lembrei com saudade de quando isso acontecia nas salas de cinema dos anos 70 e 80, creio, até a derrocada da Embrafilme. Os curtas escolhidos acompanharam o nível de criatividade dos longas.
Meus favoritos: o belíssimo Norman, dirigido, animado e pintado pelo holandês Robbe Vervaeke (obsessivo com pequenos detalhes e hábitos estranhos, nervoso e sozinho, Norman vaga pela cidade), o belga De costas para o muro, de Miklos Keleti (Natacha trabalha em um posto de gasolina; um dia, um homem e uma menina que acabaram de atropelar um cervo entram na loja do posto — a menina está chateada por causa do acidente, mas parece que isso não é a única coisa que a incomoda) e o melhor, o divertido Cigano, do português David Bonneville (Sebastião, um jovem de classe alta, percebe que o pneu do seu carro está furado e aceita a ajuda de um cigano desconhecido; para retribuir o favor, oferece uma carona ao cigano — mudando bruscamente seu destino).
Fora os curtas, muito legal também foi ver em todas as sessões, entre um filme e outro, os deliciosos e curtíssimos vídeos da série Here comes the clapman, de Marc-Henri Wajnberg — superinventivos, influenciados por Chaplin, Tati e Keaton, formam um conjunto de 1500 filmetes. Depois de cada filme aconteceram debates e conversas informais com a plateia (feliz ou infelizmente, as sessões em que estive não contou com nenhum louco de palestra).
O drama suíço Não se preocupe, dirigido e escrito por Jeshua Dreyfus, conta a história de um grupo de amigos pós-adolescentes que viaja para uma cabana no meio da mata dos Alpes. Ali eles combinam serem totalmente honestos uns com os outros, e volta e meia fazem o arriscado “jogo da verdade”. Como tudo o que envolve a “verdade”, evidentemente não dá certo. Um dos garotos é virgem e se apaixona por uma loura manipuladora (a pérfida Anna Von Haebler). O outro jovem tem uma namorada mas também tem um caso com a loura. A terceira garota, a criadora do jogo da verdade, é moralista — e, talvez ainda mais manipuladora, investe pra cima do virgem. Sobre os amigos há a sombra da morte de um amigo, um pecado sobre o qual não querem falar. Todos saem diferentes depois desse fim de semana. Filmado com naturalismo e convencionalismo, o filme é muito sutil ao contrapor as emoções ambivalentes dos personagens e suas por vezes mesquinhas e cruéis motivações. Um filme adulto sobre um universo juvenil, com roteiro sólido, do tipo que faz muita falta por aqui.
Nota: três pistaches.
Fugindo do amanhã, dirigido e escrito por Randy Moore, parece um filme alienígena quando você descobre que veio dos EUA. Durante férias em família, Jim descobre que perdeu o emprego. Escondendo o fato da mulher e de seu casal de lindos pimpolhos, ele os leva para curtir o dia na Disney. Só que o rolê pelo idílico parque de castelos encantados e princesas de contos de fadas se transforma num pesadelo surrealista. Produzido em preto e branco de alto contraste — o que dá certa tontura em alguns momentos —, o filme é ácido ao detonar a mitologia da perfeição artificial da Disney e atacar a obsessão por entretenimentos em massa. (Aliás, assisti-lo em um lugar “encantado” como o Balneário Camboriú não deixa de ser uma espécie de metacrítica. Poderiam fazer uma paródia brasileira no Beto Carrero World.) Em certo ponto Jim começa a ficar obcecado por duas gostosas adolescentes francesas, disparando o ciúme da mulher. É visto pelo filho e pela filha como um mané. O clima circense já proposto pela cenografia do parque, vitaminado pelas feéricas atrações, contribuem para o mal-estar do meio para o final do filme. Um cortezinho de uns 10 minutos não faria mal. Impressiona ainda o fato de o filme ter sido produzido totalmente na raça, com apenas US$ 650 mil, e sem autorização da Disney — que também não se dispôs a processar os realizadores, talvez temendo a repercussão negativa. Um filme bem corajoso.
Cotação: 3,5 pistaches.
O drama belga Violet, escrito e dirigido por Bas Devos, ecoa a beleza e o vazio dos filmes juvenis de Gus Van Sant — infelizmente sem o apego do yankee a um bom roteiro. Talvez fosse melhor exibido em uma exposição de arte do que numa mostra de cinema: imagens belíssimas, rodadas em duração além do normal, tornam a narrativa por vezes sonífera (sim, pesquei algumas vezes, o que é raro acontecer). Em um shopping vazio, Jonas é morto enquanto Jesse observa aterrorizado, sem fazer nada. Os criminosos fogem; seus motivos não são claros. Jesse cai em depressão e não consegue mais conversar com seus amigos – todos ciclistas que praticam BMX em uma pista maravilhosa – nem com seus ótimos pais. Nem com os espectadores, infelizmente. O filme é belo, triste, mas insuportavelmente chato, e chatice é o pior dos pecados em arte. Apesar disso, acho que a cena mais tocante que vi no festival é deste filme: Jesse pedala para levar a bike de Jonas para passear.
Nota: 2,5 pistaches.
Acho que, depois do marçalaquiniano Eu ouviria as piores notícias dos seus lindos lábios, este é o título longo mais bonito que já vi: A estranha cor das lágrimas do seu corpo. Suspense belga escrito (durante dez anos) e dirigido (por três) pelo casal Bruno Forzani e Héléne Cattet, é um filme impressionante. O plot: uma mulher desaparece e seu marido decide investigar as estranhas circunstâncias de seu desaparecimento. Ela o deixou? Está morta? Enquanto procura, ele mergulha em um mundo de pesadelos e ultraviolência. Na verdade, a trama é o de menos. Este é o tipo de produção que só tem sentido ver em uma épica tela como a do Cine Itália, porque se trata de cinema puro. O sujeito que investiga a morte da mulher descobre que existe uma vida oculta nas paredes do edifício, um dos melhores exemplares da arquitetura art-nouveau belga. Espelhos, vitrais, escadas, paredes, quadros: os elementos cênicos contribuem efetivamente para a narrativa, e são filmados com precisão matemática. O casal de realizadores é obcecado por rimas, refrões e espelhismos, que vão se multiplicando em espiral psicodélica. A edição e o corte seco das imagens é outro ponto alto. Há uma sequência em que ocorrem vários crimes nos quais são usados punhais, facas e cordas — em clima que ecoa a estranheza dos filmes de David Lynch, David Cronemberg, Dario Argento e da série Hellraiser, de Clive Barker. O realismo-fantástico gótico da película afugentou uns 20 espectadores, mas do ponto de vista deste modesto espectador foi a melhor produção exibida no Cinerama BC.
Cotação: 4,5 pistaches.
O filme belga a meu ver só perde para outro belga (aliás como tem belga aqui, hein?), que exibiu curtas e médias fora de competição, Hans Op de Beeck. Para mim foi a maior revelação do festival. Artista plástico, os filmes de Beeck são antes para serem fruídos com os sentidos do que compreendidos racionalmente. Têm uma concepção fotográfica e cromática minimalista e rígida noção de tempo, o que os distancia de qualquer naturalismo. O destaque ficou para Sea of Tranquility, que detalha a rotina de um grande cruzeiro que singra um oceano cinzento em um futuro não explicitado. Beeck não usa diálogos e praticamente não há palavras, a não ser na linda canção (escrita por ele) cantada pela gatíssima crooner Sandrine. É o tipo de cinema que, sem ser exatamente cinema, aponta para o futuro do audiovisual, lembrando um dos preceitos de Italo Calvino em suas Seis propostas para o próximo milênio, “Visibilidade”: para fugir ao dilúvio de imagens tediosamente prosaicas e sem graça, precisamos criar imagens inesquecíveis, que nunca antes foram vistas, carregadas de sentido, e um sentido nem sempre óbvio. Beeck sabe fazer isso e merece ser mais visto por aqui.