Meu primeiro livrinho infanto-juvenil, ou melhor, infanto-senil, será lançado n’A Balsa, 26-4, entre as 15h e as 18h. Boralá?

Imagine que você é seu melhor amigo
Sandiliche é um livro infanto-juvenil de quase 40 anos. Afinal, tenho que voltar esse tanto de tempo até a época em que meu irmão começou a falar de seu amigo Sandiliche, lá por 1984. Uns dez anos depois, me lembraria do mote quando participava da oficina de criação literária no Museu Lasar Segall, comandada pelo Gílson Rampazzo — o primeiro cara a dar esse tipo de aula no Brasil: criou o curso de redação criativa no colégio Equipe, em São Paulo, há 40 anos. Estive ali todas as terças e sábados por sete anos, e a boa parte dos contos que publiquei entre os anos 90 e os 00 foi escrita e lida ali.
Inclusive o Sandiliche. Na época eu lia muito o argentino Julio Cortázar, em especial os ensaios de Valise de Cronópio. “Do sentimento do fantástico” me encanta até hoje por sua precisão e persuasão: nele, Cortázar define que o sentimento do fantástico é uma hesitação de nossa percepção sobre o que é real. Ao contrário da narrativa estruturada na fantasia ou no surralismo, em que temos certeza de que o que lemos não é real, no fantástico ficamos sempre na dúvida. Como diz outro mestre da literatura fantástica, o norte-americano Philip K. Dick, “realidade é aquilo que, quando você deixa de acreditar em, continua lá“. A realidade pode existir E não existir ao mesmo tempo — independemente da nossa crença nela. Dessa intersecção surge o sentimento do fantástico.
Gílson tinha pedido um conto usando o tema do “duplo”. Eu tinha esse argumento sobre um sujeito que se perguntava onde diabos andaria seu amigo imaginário, um tal Sandiliche, fiel companheiro na infância. Enfatizando a ideia de invisibilidade, pensei em um narrador que se dirigisse a um interlocutor invisível — como Guimarães Rosa (mais um mestre do fantástico) fez no conto “Meu tio o iauaretê”. Daí achei que pudesse ser interessante deslocar a “autoridade” da narrativa para outra pessoa — afinal, quem contou ao narrador que ele teve um amigo invisível foi sua mãe; assim, o relato que ele tem é o relato de um terceiro.
Tudo nublado pela memória. O narrador está bem distante daquele menino. Resolvi ser o mais limpo, claro e simples possível: toda a trama deveria convergir para o parágrafo final, em que se revelaria algo catártico e ao mesmo tempo misterioso. A linguagem caminharia pelas teias de aranha na memória de um velho até o tatibitate do menino.
Essas explicações agora soam um tanto técnicas e presunçosas; pensando melhor, tudo o que queria era contar uma história sobre como a amizade, ou a busca pela amizade, pelo outro, pode espantar e/ou acentuar a solidão — sublimá-la e/ou sublinhá-la. Li o conto na sala da oficina criativa do Gílson o mais devagar que pude. Quando levantei a cabeça percebi que vários colegas estavam às lágrimas. Acho que foi a primeira vez que provoquei isso em alguém (mais tarde escreveria coisas que fizeram algumas pessoas chorar de rir, ou chorar de raiva; mas ali eu só tinha 23 anos). Daí veio o veredicto do Gílson:
— Acho que você seria um bom escritor infanto-juvenil — disse, soprando a eterna fumaça do seu cigarro light.
Na hora me pareceu ofensivo: então todo o cabedal teórico usado para criar um conto fantástico se resumia a escrita para criancinhas? Discordei do Gílson, ele não tinha sacado nada. Mas o mestre manteve sua opinião.
Anos depois, publiquei o conto no meu primeiro livro, Os infernos possíveis, de 1999 (Com-Arte/USP, esgotado). O livro caiu nas mãos da editora Isabel Lopes Coelho, que viu no texto o mesmo que o Gílson: uma narrativa infanto-juvenil. E ela queria fazer dele um livro autônomo. Com a Bel não se discute, assim fiz algumas alterações no texto e o entreguei. Ela e a diretora de arte Flávia Castanheira imaginaram uma narrativa visual que não fosse “legenda” para o texto, e sim um complemento em outro plano espaço-temporal — ele começaria em um ponto diverso ao conto até se cruzar com ele precisamente no último parágrafo.
Para tanto, convocaram a talentosa artista gráfica Powerpaola, uma equatoriana que morou muito tempo em Bogotá e hoje vive na Argentina. Quadrinista, ela é conhecida por seu traço ao mesmo tempo punk e intimista, detalhista e sugestivo, levemente nonsense, marca de seus belos álbuns Vírus Tropical e Diário (procurem, procurem). Powerpaola sacou a proposta e foi além, esboçando um ambiente que agrega uma visualidade latino-americana à narrativa, jogando com amplas áreas vazias e outras minuciosamente descritas (uma boa metáfora para a memória da infância?). A opção de Flávia por usar uma paleta com apenas duas cores especiais, o laranja e o marrom, trouxe ainda mais concisão e potência ao conto.
Bem, talvez o texto ainda soe um tantinho triste, porém ficou mais leve. Quem sabe não seja mesmo um texto para adultos, nem para crianças: daí eu optar pela definição de “infanto-senil” — afinal, une as duas pontas da vida, podendo ser lido por crianças de qualquer idade. E de repente o público-alvo do conto não deve ser mesmo tão claro (e lembro do Gílson citando a famosa definição de Mário de Andrade: “conto é tudo o que chamamos conto“). Mas o que vocês queriam de uma história sobre um amigo imaginário?
Espero vocês e seus amigos imaginários no lançamento: dia 26-4, n’A Balsa (r Capitão Salomão, 26, 4º andar), um dos crepúsculos mais bacanas de SP, de frente pro Anhangabaú. Vai ser das 15h às 18h; depois, a casa segue aberta aos marmanjos.