Lançamentos nacionais & gringos para fugir de confetes & serpentinas
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Geração selfie
A Festa é Minha e Eu Choro se Eu Quiser, de Maria Clara Drummond (Guarda-Chuva)
Anos após Daniel Galera publicar Até o Dia em que o Cão Morreu, a Geração Y ganha mais um bom panorama para observar-se — ou melhor, em vez de panorama talvez o movimento de câmera mais adequado seja o selfie, o auto-retrato fechado na tela de um smartphone e um dedo mandando um joinha para seus curtidores no Facebook. Em seu primeiro romance, a jornalista carioca Maria Clara Drummond (sem parentesco com o poeta ou o prosador mineiros) direciona a câmera para Davi, que assim resume o sentimento que o irmana a seus pares: “O sofrimento de ser uma fraude a gente mascara com o impecável branding pessoal que minha geração já nasceu sabendo fazer; o sentimento de estar aquém do que eu poderia ser como artista é consolado pelos elogios nas festinhas e nas revistas em busca de pautas de ‘novos talentos’.” Davi é roteirista de cinema mas está em crise com sua vida vazia preenchida por amores expressos e festinhas em que todos aparentam serem vagamente culturais e fingem se divertir mas estão entupidos de antidepressivos. Indo entre SP e Rio, Davi sai de um apê vazio para o apê dos pais, vaga por Búzios em busca de inspiração e conclui um roteiro premiado. Neste bildungsroman em que o adolescente envelhece para continuar adolescente, a linguagem, ainda que emule o mimimi típico da classe média em crise, é tecida em frases longas que investigam esse vazio enquanto se divertem com ele.
Chumbo leve
As Ilusões Armadas, de Elio Gaspari (Intrínseca)
Se você quer entender como o Brasil saiu das mãos de um demagogo conservador e hesitante (Jânio Quadros) para as de uma durona ex-guerrilheira desenvolvimentista (Dilma Rousseff) em pouco mais de 50 anos, tendo no recheio 30 anos de repressão, censura, tortura e Estado policial, precisa ler As Ilusões Armadas, de Elio Gaspari. Originalmente publicada há 10 anos, a obra foi revisada e revisitada pelo autor e volta em quatro volumes pela editora Intrínseca. Colunista da Folha de S.Paulo e d’O Globo, Gaspari é um dos mais respeitados jornalistas do país. Colaboram para sua fama três fatores. O faro para a notícia (inalterado aos 70 anos: foi o primeiro a repórter a violência policial durante as manifestações de 2013, ao registrar in loco o caos na rua Maria Antônia em 13 de junho). A qualidade de suas fontes, a lealdade e sabedoria com que cuida de seu relacionamento com elas (ainda que filiado ao Partido Comunista, foi durante décadas interlocutor da cúpula militar, e fiel depositário dos arquivos pessoais de figurões da República). E claro, o texto: Gaspari combina clareza na linguagem ao vigor ao estruturar cada frase em uma informação exata, despida de penduricalhos, ao mesmo tempo trazendo ao texto trocadilhos e ironia finíssima, no limite entre o ferino e o nonsense, e a capacidade de recriar literariamente cenas e diálogos. Em outras palavras, o bruxo consegue dar leveza ao chumbo.
Assim se lê esses quatro calhamaços: não como o tratado de história do Brasil que é, mas como um grande romance cujos personagens cansamos de ver nas páginas dos jornais. Na escrita mediterrânea de Gaspari (nascido em Nápoles, veio morar no Brasil cinco anos depois), os acontecimentos ganham cor, sabor, consistência — e contexto: a raríssima qualidade de unir o presente ao passado, o geral ao particular. Em um mero parágrafo, por exemplo, Gaspari conta como, em uma única e prosaica ordem do dia em 1977, o general Frota — que então conspirava para derrubar o presidente Geisel — consegue demitir Dilma Rousseff, à época uma obscura estagiária de uma fundação ligada ao governo gaúcho, e condecorar Harry Shibata, o médico que registrou como “suicídio” o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Estruturado sobre centenas de entrevistas, bem como os preciosos diários e arquivos de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, artífices da ditadura, As Ilusões Armadas testemunha, com sabor e saber, como a História dá tantas voltas que parece não sair do lugar.

Labirinto hipnótico
Matteo Perdeu o Emprego, de Gonçalo M. Tavares (Foz)
Prodígio da literatura portuguesa, M. Tavares lança mais um livro-labirinto para nosso deleite — ou confusão. De hipnótica leitura, Matteo compõe-se de duas seções. A primeira é um conjunto de 25 contos curtos, em que personagens com nomes judaicos vivem situações absurdas, todas versando sobre a desumanização do homem (no que ecoa seu contemporâneo Valter Hugo Mãe). Há Cohen, acadêmico cheio de tiques que sofre de copropraxia (repetição de gestos obscenos); Goldstein, cego tão fascinado pela tabela periódica que pede ao seu amante que a tatue, em braille, nas costas; Helsel, que armazena baratas vivas em um armazém; Glasser, que vai a um prostíbulo levando seu coração artificial conectado a uma bateria de vinte quilos; Kashine, adolescente que escreve “não” em tudo para lançar o caos (afinal, basta acrescentar o não onde estava o sim “para dar início ao inferno”). Cada narrativa encadeia-se na seguinte criando uma espiral narrativa; o coadjuvante de uma narrativa é o protagonista da posterior. Quando chegamos a Matteo, única personagem com direito a 12 capítulos, ele encontra uo mesmo Nedermeyer que assistiu, uma hora antes, ao atropelamento da personagem do primeiro conto. Este estranho círculo é resenhado pelo autor no posfácio, em que Tavares se torna crítico de si mesmo. Não se iluda: lúdico na forma, lúgubre no conteúdo, os labirintos de Tavares não costumam ter nem saída, nem entrada — são objetos monstruosos em si mesmos. Como ocorre na melhor literatura.

Power duo
Storynhas, de Rita Lee e Laerte (Companhia das Letras)
Dois ícones do rock’n’roll paulistano reunem-se pela primeira vez em um duo de alta voltagem. Rita Lee, que escreveu algumas das melhores letras do rock paulistano, e Laerte, tão iconoclasta no cartunismo quanto no comportamento, trazem em Storynhas um novo formato narrativo que transitam entre o microconto e o quadrinho, em fábulas quase sempre surrealistas e de tom provocador e irônico, quando não sarcástico e cheio de trocadilhos, feito uma canção dos Mutantes. As historietas foram originalmente publicadas em excertos de 140 caracteres na página do Twitter da compositora, editadas e aqui reunidas, e em seguida Laerte as interpretou graficamente. Aqui desfilam cantoras decadentas, mulheres-sofás, gatos argentinos, mulheres-vaso, rockstars, monges gays, sátiros superdotados, mulheres-poltrona — em todas as mininarrativas, uma ambientação lúbrica que sexualiza seres, objetos e a própria linguagem. O resultado é um óvni editorial contraindicado para uma audiência conservadora — e talvez fosse indicado para injetar alguma sacanagem no anêmico rock nacional.

O que querem as mulheres?
Manual do Mimimi, de Lia Bock (Paralela), e Guias do Sexo Ilustrados, de Lasciva
O fato, caro(a) leitor(a), é que nós homens fracassamos. Perdemos a capacidade de entender o sexo, o amor, as demandas e os desejos (a não ser que você se chame Spike Jonze e tenha filmado uma obra-prima como Her). Admitida a derrota, que tal deixar que elas nos ensinem o caminho de volta à sensibilidade? Dois lançamentos podem ajudar. O primeiro é o manual em que a jornalista disseca o funcionamento da mais bela máquina já criada: o cérebro feminino (pense bem, ele dá acesso a outras máquinas ainda mais formosas). Muitas das dicas, pensatas e insights da Lia servem tanto para homens quanto para mulheres — afinal, somos mais parecidos do que a mãe-natureza nos leva a crer. Escrito com humor, sagacidade e elegância, vai iluminar o mancebo inseguro e encher de minhocas a cabeça do cavalheiro independente demais. Já os Guias da blogueira Lasciva são úteis para dirimir dúvidas de etiqueta de homens e mulheres em relação a práticas mais, hum, heterodoxas: sexo anal, ménage à trois, massagem erótica, swing, sadomasô etc etc.

Quadrinhas redondas
Quadras Paulistanas, de Fabrício Corsaletti (Cia. das Letras)
“Pernil, virado à paulista/ bifê à rolê, feijoada/ nhoque, lasanha, espaguete/ filé de peixe, rabada/ saladas, lanches, beirutes/ porções quentes, porções frias/ suco na jarra, cervejas/ sobremesas, vitaminas.” Só mesmo o detalhista-obsessivo Fabrício Corsaletti para transformar o cardápio de um paulistano típico em quadrinhas erigidas sobre redondilhas maiores perfeitas. O caipira Fabrício (nascido em Santo Anastácio-SP) reúne os poemas-crônicas publicados na revista sãopaulo e demonstra, com humor e um tantinho de dor, o quanto de cor há sob o concreto.

O esdrúxulo búlgaro
Onde Estão as Flores?, de Ilko Minev (Virgiliae)
A Bulgária, como todos sabem, não existe. Pelo menos na literatura brasileira as ocorrências búlgaras tendem a contradizer a existência do país desde que Campos de Carvalho, o maior autor brasileiro desconhecido, publicou O Púcaro Búlgaro. Eis que Ilko Minev estreia na literatura com um romance que narra a trajetória de Licco Hazan, um judeu búlgaro que vem aportar na Amazônia fugindo do nazismo. Aos 90 anos, quando já nem um amigo vivo lhe resta para compartilhar suas memórias, Hazan decide contar sua nada ordinária vida cercada de eventos extraordinários, como a pouco conhecida história de 50 mil judeus búlgaros que escaparam da câmara de gás via Turquia, onde encontra seu grande amor, Berta, Hazan tem a ventura de escapar de uma Europa destruída rumo a um país em que tudo estava por se fazer. Enquanto isso, seu irmão continua na Bulgária, dando-lhe o testemunho de um país que desaparece sob o jugo da ditadura soviética. Já Hazan mergulha no calor amazônico, onde chega a derrapar em um perigoso amor outonal. O texto absurdista de Campos de Carvalho está distante da segurança, bonomia e clareza narrativas de Minev, mas o sabor de um país impossível persiste na escrita deste autor que, “na vida real”, saiu de Sofia para viver na Bélgica e então partir para Manaus, onde foi cônsul… dos Países Baixos. Ah, sim: Minev escreve em bom e leve português.
Biografias

Tô de Bowie
David Bowie, vários autores (Cosac Naify), e Dangerous Glitter, de Dave Thompson (Veneta)
“A arma usada no Wild Boys é uma faca bowie de 46 centímetros, você sabia?“, pergunta William S. Burroughs a David Bowie, referindo-se a um romance seu. Ao que o camaleão responde: “Uma faca bowie de 46 centímetros… Você não faz coisas pela metade, não é? Não sabia que essa era a arma deles. O nome Bowie me atraiu quando eu era mais novo: tinha dezesseis anos, entrei numas de filosofia pesada e queria um nome que simbolizasse o corte das mentiras, essas coisas.” O velho beatnik é incisivo em sua ironia: “Bem, a faca corta dos dois lados, sabia? Tem dois gumes.” Bowie só pode rir: “Puxa, até agora eu nunca tinha imaginado cortando dos dois lados…”
O diálogo acima, que explica a gêsese do famoso sobrenome, é uma das preciosidades de David Bowie, o livro que a Cosac Naify está lançando como catálogo da megaexposição Bowie Is, que estreou ano passado no Victoria & Albert Museum em Londres devastando corações e mentes de fãs e admiradores de uma das maiores lendas vivas do pop. O livro fatia o camaleão em suas múltiplas facetas, demonstrando sua influência na música, na fotografia, no cinema, na moda e no comportamento, sempre entrelaçando sua história pessoal à cultura pop.
O livro é uma coedição com o Museu da Imagem e do Som, que, após o sucesso de crítica e público com a exposição dedicada a Stanley Kubrick, abriu outra mostra inesquecível. Afinal são mais de 300 peças: setlists, letras de músicas, manuscritos, instrumentos, desenhos, trechos de filmes e shows ao vivo, videoclipes e fotografias. Organizada tematicamente, a mostra é uma viagem pelos inúmeros personagens de Bowie, destacando suas influências artísticas e suas experiências com o surrealismo, o expressionismo alemão, a mímica e o teatro kabuki: na seção figurino, por exemplo, há, entre as 47 peças, o macacão assimétrico assinado por Kansai Yamamoto para o álbum Alladin Sane, o terno azul claro do clipe de “Life on Mars?” e o conjunto de calças e jaqueta usados por Ziggy Stardust. A mostra fica até 20 de abril.
Achou pouco? Se você quer ter mais acesso à gênese do glam rock, estilo musical que catapultou Bowie ao estrelato, obrigatória é a leitura de Dangerous Glitter, de Dave Thompson (Veneta). O camaleão aqui é o centro do turbilhão andrógino e purpurinoso que aproximou nomes como Lou Reed, Iggy Pop, Andy Warhol, Mark Bolan, Nico. Gente que, “cortando dos dois lados” no começo dos anos 70, salvou o rock’n’roll do marasmo deixando-o menos pretensioso, mais perigoso — e, por que não, mais divertido.

O pai de Holden Caulfield
Salinger, de David Shields e Shane Salerno (Intrínseca)
JD Salinger, um dos escritores mais populares (vendeu 65 milhões de livros) e respeitados do século 20 (influenciou tanto a geração beat e a contracultura quanto assassinos como Mark Chapman) finalmente ganha sua biografia definitiva. Em formato Mate-me por favor (a famosa história do punk narrada por múltiplas vozes), esta biografia reúne depoimentos de mais de 200 pessoas. O controvertido livro detalha como o autor escrevia O Apanhador no Campo de Centeio em plena Segunda Guerra (combatendo o nazismo, foi um dos primeiros judeus norte-americanos a entrar em um campo de concentração), discute como o zen-budismo o salvou de uma pesada depressão (mas ao mesmo tempo o afastou do convívio com a sociedade), aprofunda-se sobre temas literários (a incomunicabilidade, os garotos prodígios, a inadaptabilidade à convenções) e infiltra-se em seus casos amorosos (em especial garotas bem mais novas, a começar pela musa Oona O’Neill, que ele perdeu para Charles Chaplin). Há ainda indiscrições sobre contos e textos que Salinger queria manter inéditos e um vasto material fotográfico. A gente só não precisava ficar sabendo que o pai de Holden Caulfield tinha apenas um testículo. Precisava?
[Resenhas originalmente publicadas no Guia da Folha Livros Discos Filmes e revista Poder.]