Literatura de improviso

Geoff Dyer no Big Chill Festival
Geoff Dyer no Big Chill Festival

Nos ensaios de Todo Aquele Jazz, o inglês Geoff Dyer transita entre a ficção e a não-ficção e traz à sua escrita o dom de improviso inerente aos grandes jazzistas. Penúltima matéria que escrevi para a revista Bravo!, de já saudosa memória

No começo era o meio, ou o fim. Ou então, o final poderia ser o início, quem sabe o recheio. Quem sabe? No jazz, cuja essência é o improviso, o início de um tema musical pode ser o fim ou meio de outra peça; o músico não conhece a direção a seguir — não só dentro, mas também fora do palco. Este é o norte de Todo Aquele Jazz (Companhia das Letras), do ficcionista/não-ficcionista inglês Geoff Dyer. Keith Jarrett, um dos grandes improvisadores do jazz de todos os tempos, já disse que o livro é o único que vale a pena ler sobre o assunto. Alguém já disse (a frase tem muitos pais) que escrever sobre música seria o mesmo que dançar sobre arquitetura: a experiência em uma expressão não poderia ser traduzida por outra. A façanha de Dyer foi aproximar a experiência do jazz da experiência de escrita no gênero ensaio, em que o próprio autor tateia o tema de que está tratando, sem ter uma ideia exata sobre que rumo tomar, citando ideias alheias sem sem preocupar em dar crédito, aproximando-se ou afastando-se do tema conforme o ritmo.

Lembra do filme Apocalypse Now?“, devolveu-me Dyer destrinchando um filé sangrento no restaurante São Cristóvão, na Vila Madalena, durante uma recente passagem pelo Brasil, depois que perguntei se ele tinha algum método na escrita de não-ficção. “Lembra do Martin Sheen escutando que ‘os métodos do Coronel Kurz ficaram doentios’? Aí, quando ele chega no covil de Kurtz, percebe que ‘não havia nenhum método ali’? Pois é: o mesmo acontece com as coisas que escrevo. Não têm método. Começo a escrever e espero que em determinado ponto o material me dê chance de arranjá-lo de um jeito que aquilo gere uma maneira mais apropriada para uma experiência ou o assunto que estou discutindo“, afirmou Dyer, se servindo de mais batatas e chope.

O livro apresenta originalidade já pela estrutura. De fato, começa pelo meio — pelo meio de uma viagem de Duke Ellington e Harry Carney através dos EUA. Ellington, figura central do jazz pela genialidade das composições e pelo estabelecimento do formato big band, tinha como motorista o saxofonista Carney, que fazia as vezes de mestre de cerimônias de sua orquestra — a amizade dos dois durou 45 anos, interrompida pela morte de Ellington, em 1974 (Carney morreria quatro meses depois). Era durante as extensas jornadas pelas highways que Ellington tinha suas ideias — muitas pensadas exatamente para o sax de Carney, um dos criadores da técnica de respiração circular. De certo modo, ambos fizeram a ligação com o jazz clássico criado em New Orleans no século 19, cujo ápice se dá em Louis Armstrong, e a revolução que viria com o bebop, o cool e o free jazz, subgêneros nascidos a partir dos anos 50. Este ziguezague permeia todo o volume, em capítulos curtos focando paradas e reinícios de viagem da incansável dupla.

Entre uma parada e outra, Dyer concentra-se em perfilar Lester Young, Thelonious Monk, Bud Powell, Charles Mingus, Ben Webster, Chet Baker e Art Pepper. Mas espere, não são perfis jornalísticos — embora tenham sido apoiados sobre entrevistas, reportagens e perfis publicados em livros, revistas e jornais (Dyer mostra suas fontes no posfácio). São narrativas ficcionalizando cada um dos jazzmen, vida e obra, em um processo semelhante ao que Julio Cortázar fez com Charlie Parker no mitológico conto “O perseguidor“. Para além da mera narrativa, Dyer tateia em busca de uma forma ensaística que dê conta das indagações motivadas pela música de seus personagens, e não deixa de colocar suas impressões no processo. Tem-se uma forma que transita entre a primeira e a terceira pessoas, entre ficção e ficção, entre registro e crítica. A forma justifica o impacto que Todo Aquele Jazz trouxe desde sua publicação em 1991: o texto emula a leveza, o desnorteio e o jogo com referências típicos do improviso jazzista.

Há um mood a amarrar a obra. Um tom menor perpassa tudo. Dyer se preocupou em flagrar os instantes mais melancólicos, mais derrotados, mais frustrantes da carreira de músicos que, talvez não por acaso, passaram a vida flertando com o lado sombrio da vida. Se o jazz não se conforma com um padrão começo-meio-fim, o jazzman é sempre um desajustado, um ser fora de lugar. “Os produtores de importantes obras de arte não são semideuses, mas seres humanos falíveis, muitas vezes com personalidade neurótica e lesionada“: com esta epígrafe, de Theodor Adorno, Dyer demonstra estar farto de semideuses.

Seus falíveis humanos são dependentes de álcool, heroína, cocaína, anfetaminas; têm problemas mentais; têm desvios éticos e falhas de caráter imperdoáveis; são coléricos, neuróticos, exilados do convívio social e do senso comum, solitários incuráveis, incapazes de manter famílias, amigos, amores. Ainda assim, faziam a música mais bela — e, de estranho modo, a vida torta de cada um ilumina ainda mais a beleza de suas obras (e daí entende-se o título original, “But beautiful“). No posfácio, Dyer refaz o caminho contrário de sua escrita de ficção e apresenta seu texto de corte jornalístico, sóbrio e irônico como sempre, que dá, digamos, uma consistência informativa aos perfis que acabou de traçar. Mas, a esta altura da música de Geoff Dyer, a plateia já está tão tomada pela emoção das narrativas anteriores que nem repara no metódico brilho do bis.

LESTER YOUNG
A massacrante e preconceituosa rotina no exército quebrou o doce e ingênuo Lester Young, um lírico saxofonista que tocava “como se o sax se tornasse cada vez mais leve, flutuando e se afastando dele” e cuja voz “era como uma brisa em busca do vento”. Antes de ir para o exército, Young, o Prez (de Presidente) já era depedente de álcool e anfetaminas — usadas para ficar acordado durante dias seguidos e assim poder fazer mais shows. Ao deixar o exército, onde era proibido de tocar e frequentemente era vítima de racismo, Young piorou sua narcodependência até morrer aos 50 anos.

THELONIOUS MONK
O pianista Monk foi exilado de Nova York por levar a culpa ao ser flagrado portando heroína (na verdade, posse do chapa Bud Powell) e perder a licença para tocar em bares e restaurantes da cidade. O que acabou por torná-lo mais compositor que intérprete: grandes standards do jazz são dele, o que obscureceria o fato de tocar de modo tosco, segundo os pouco imaginativos críticos da época diziam de um dos inventores do bebop. “Monk tocava como se nunca tivesse visto um piano (…) cometendo todos os erros possíveis segundo as regras do piano clássico. Tudo acontecia torto, am ângulo, e não como se esperava“, descreve Dyer, que conta um triste episódio da vida do jazzista: ao entrar em um hotel para pedir um copo d’água, foi atacado covardemente por um policial racista. Aéreo, doce, lacônico e quase surrealista em seu comportamento, Monk sofreu severa depressão após a morte de sua mulher.

BUD POWELL
O pianista foi outro que tomou uma surra — depois de uma briga em um bar, tomou uma garrafada no olho e um golpe de cassetete na cabeça — e nunca mais foi o mesmo. “A sua música o encerra (…) Não é que você pareça ter sido removido do mundo, é mais como se o mundo não pudesse chegar perto de você”, escreve Dyer, como em um diálogo com Powell. Heroína e alcoolismo teriam contribuído para aprofundar a provável esquizofrenia do pianista mais rápido do seu tempo — cujas últimas apresentações foram desastrosas. “Seria a música engrandecida por sua incapacidade de tocá-la? Tal como o dano a um quadro intensifica uma perfeição que não está mais ali?

BEN WEBSTER
A solidão extrema, como se poderia imaginar, é parte integrante da vida e obra desses homens. “Ele carregava sua solidão consigo como se fosse o estojo do instrumento“, diz Dyer de Ben Webster, saxofonista muito ligado à tradição do blues, que viveu os últimos anos na Europa e adora passar longos períodos tocando em cais. “Talvez todos os exilados sejam atraídos pelo mar, pelo oceano. Há uma música inerente nos sons de trabalho das docas e dos portos, e às vezes ele achava que toda a beleza melancólica do blues estava presente numa buzina de nevoeiro que soava, plangente, no mar, advertindo os marujos quanto aos perigos que os aguardavam.

CHARLES MINGUS
O rotundo perfil de Mingus é um dos pontos mais hilários do livro, por conta da personalidade inesgotável e intratável do gordíssimo baixista, cujo ego não cabia em si — uma espécie de Tim Maia do bebop. “Ficou tão corpulento que o contrabaixo era um objeto que ele simplesmente pendurava no ombro como uma bolsa de material esportivo, quase sem notar o peso. (…) “Tocava como se estivesse em luta com seu baixo, prendendo seu braço, agarrando-o pelo pescoço, beliscando as cordas como se estripasse um inimigo. Seus dedos tinham a força de um alicate“, diz Dyer. “Se Mingus fosse um navio, o mar atrapalharia seu caminho.

CHET BAKER
A maneira como ele sustentava notas levava uma pessoa a pensar naquele instante que antecede o choro de uma mulher, quando seu rosto se enche de beleza até a borda, como água num copo, e um homem faria qualquer coisa no mundo para não tê-la ferido como a feriu.” Baker era o oposto exato de Mingus: à medida em que se aproximava da morte, em vez de ficar mais excessivo, como Mingus, Baker soava cada vez mais débil e suave — “Chet não punha nada de si em sua música, e era por isso que lhe conferia tanta pungência. A música que ele tocava se sentia abandonada por ele“. Dyer traça um curioso paralelo sobre a forma como o instável Baker se relacionava com mulheres, traficantes e o jazz: simplesmente os largava — não dava satisfações, não pagava, ia sumindo.

ART PEPPER
Dyer escolhe o saxofonista Art Pepper para o capítulo final — talvez para não encerrar seu livro de modo tão triste. O perfil do boa-praça Pepper vai e vem por seguidas prisões devido ao porte de heroína e seus encontros com mulheres — em especial uma longa cena em que o o jazzman corteja uma moça que teria visto em uma praia, da janela da cadeia da prisão de San Quentin. “Escutando-o, os presos sabem que a música dele trata de alguma coisa que não superior a dignidade, amor-próprio, orgulho ou amor, mas que é mais profunda que esses valores, mais profunda que o espírito: a simples capacidade de recuperação do corpo. Daí a anos, quando seu corpo se tiver tornado um reservatório inexaurível de dor, Art se lembrará da lição desse dia: se puder ficar de pé, poderá tocar, e, se puder tocar, tocará maravilhosamente.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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