Pós-jornalismo?

Deus morreu, Roberto Civita também e eu mesmo não me sinto muito bem
Deus morreu, Roberto Civita também e eu mesmo não me sinto muito bem

Pra aprofundar a excelente experiência que foi o curso Jornalismo cultural x Jornalismo autoral no centro cultural b_arco, criei o curso Pós jornalismo: um laboratório de não-ficção. Bora?

Com duração de 4 meses, o curso tem como objetivos: produção de textos jornalísticos com forte pegada literária; discussão e pesquisa de novas maneiras de praticar o velho e bom periodismo — que vive uma de suas mais agudas crises. Mas, talvez por conta disso mesmo, está mais vivo do que nunca.

Com a revolução digital, o jornalismo passa por transformações cruciais. Vive sobretudo uma crise econômica (ou melhor, vive abaixo de tudo). Por todo o Brasil, no primeiro semestre redações e mais redações foram rapinadas pelo espectro do passaralho (esta agourenta ave que bica os popôs dos jornalistas mais incautos) e do ficaralho (as dedadas no popô de quem ficou nas redações tendo de fazer o trampo de 3 colegas).

É que o velho paradigma da mídia impressa está em pleno processo de encolhimento e transformação. Se a temperatura foi dar as caras na rede, aditivada pela interatividade em tempo real, a análise, a narrativa e a profundidade da notícia tem sido transposta também para a internet — em sites, blogs, redes sociais e e-books — bem como no mercado editorial, que acolhe cada vez mais títulos de não-ficção, fazendo sucesso de público e crítica.

Ao mesmo tempo em que vive uma crise como modelo de negócio, o jornalismo passa por uma crise de representação. Ficou mais do que comprovado, por exemplo, que o velho lead o quê-quem-quando-onde-como-por quê já não dá mais conta de destrinchar eventos como as manifestações que varreram o país nos idos de junho. A cobertura pretensamente imparcial provou-se desonesta, falha e ineficaz. Os novos coletivos de mídia, as redes sociais, os blogueiros, os colunistas e os raros repórteres de texto autoral e credibilidade foram os responsáveis por fazer a difusão, a narrativa e a reflexão em tempo real dos acontecimentos — uma velocidade que os meios tradicionais, mesmo os eletrônicos como rádio e TV, não conseguiu atingir.

O jornalismo não morreu nem nunca morrerá: apenas mudará de embalagem. Experiências bem-sucedidas demonstram sua vitalidade. Em livros de papel: os selos Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, e o surgimento de uma editora como a Arquipélago Editorial, que obtém boas vendas só publicando livros de jornalismo, bem como o fortalecimento da não-ficção em editoras como Record, LeYa, Intrínseca e outras, demonstram que há público para o texto longo e aprofundado. Em livros digitais: tanto Amazon (aliás a nova dona do Washington Post) quanto Companhia das Letras lançaram selos específicos para a publicação de textos longos, de 30 a 40 páginas, em e-books — ou seja, o new journalism, que teve seu auge nos anos 60 em revistas como Esquire e The New Yorker pode ressuscitar no kindle de cada leitor.

Na TV: programas como O Infiltrado, de Fred Melo Paiva, ou como o doc reality A Liga, em que os repórteres são protagonistas do assunto e do universo que pretendem investigar, são experiências que ganharam identificação maior com o público do que programas tradicionais. Na internet: a adrenalina e audiência de blogs opinativos como Trabalho Sujo, de Alexandre Matias, ou Socialista Morena, de Cynara Menezes, ao lado do trabalho radical como o coletivo Mídia NINJA, que cobriu as manifestações em tempo real, demonstram que o leitor/espectador é mais exigente, quer interagir e não procura mais os velhos e autoritários ambientes midiáticos para obter informações.

Ao mesmo tempo, vive-se uma guerra de memes. Termo da teoria de comunicação criado pelo biólogo Richard Dawkins, a memética estuda a ciência dos memes, análogos dos genes, que germinam no ar até que alguém os pegue e os transforme em um tema concreto. Como, por exemplo, “passe livre“, “vamos colorir o Brasil” ou “queima Copa“. O velho jornalismo, praticado através de pautas nascidas nas redações, ainda não se deu conta de que as pautas nascem na verdade nas ruas e nas redes. O pós-jornalismo já percebeu que, para chegar aos corações e mentes, precisa ser fecundado com memes, não com pautas batidas. O pós-jornalismo não mora mais em uma redação: mora em uma mochila, com laptop, celular, câmera, lápis e papel — e água, porque o repórter não é de ferro.

O ensaísta Marcelo Coelho fez o diagnóstico (quase escrevi autópsia) das coberturas tradicionais dos eventos de junho:

Graças à conquista de um poder de autoexpressão possibilitado pela internet, as pessoas que se manifestam nas ruas e nas redes se sentem mal representadas na mídia tradicional. Existe a sensação, claro, de uma desigualdade de poder de fogo: grandes empresas de comunicação podem mais do que sites e blogs isolados. Há também um abismo geracional. Incluo-me entre os que envelheceram. E olhe que à minha volta, nos chamados formadores de opinião, nos analistas, comentaristas, sociólogos, filósofos, urbanistas, técnicos e economistas que, sempre os mesmos, são os entrevistados nessa época, a maioria está na ativa desde que eu era criança… Quando o pensador mais ousado e irreverente da Globo se chama Arnaldo Jabor, talvez seja o momento de uma autocrítica. (…) Há ainda a obrigação de revelar dados, estatísticas etc., sem o que estaríamos retrocedendo a um jornalismo da Idade da Pedra. Ao mesmo tempo, acho que isso trouxe um risco de rotinização e tecnicalismo que afasta o leitor — e não adianta “emburrecer” a linguagem para trazê-lo de volta.

A saída? Investir no texto. Investir na autoria. Investir no estilo. Investir na via de mão-dupla para apurar a informação. Desvendar novas maneiras de difusão. Procurar modos inovadores de bancar o pós-jornalismo — dos editais ao crowdfunding. Procurar maneiras novas de criar pautas, de descobrir pautas, de formatar a narrativa dos novos dias ao tripé que sustenta o texto de não-ficção: o perfil, a reportagem e a pensata. E, acima de tudo, investigar como as técnicas da ficção — conto, crônica, romance, poesia — podem magnificar o alcance, a potência e a criatividade do pós-jornalismo.

Nas aulas, que são menos expositivas e mais interativas, tem-se a leitura e a conversa a partir de textos clássicos e contemporâneos, além de papos com convidados — gente de dentro de redações, mas também de fora, bem como escritores e blogueiros independentes. Tem-se, sobretudo, a leitura e a crítica do material produzido em casa, através de exercícios que podem até mesmo serem criados pela turma. Assim, pede-se ao participante uma postura ativa.

Para ter uma ideia, no curso do primeiro semestre citamos, lemos e discutimos os seguintes livros:

200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga (Record)
A Poeira dos Outros, de Ivan Marsiglia (Arquipélago)
A Turma que Não Escrevia Direito, de Marc Weingarten (Record)
A Última Casa de Ópio e Criaturas Flamejantes, de Nick Tosches (Conrad)
Cartas de Viagem e Outras Crônicas, de Campos de Carvalho (José Olympio Editora)
Clube da Luta e Mais Estranho que a Ficção, de Chuck Palahniuk (Rocco)
Contos Completos, de João Antônio (Cosac Naify)
Crônicas de Jerusalém, Pyongyang e Shenzen, de Guy Delisle (Zarabatana)
Décadas Púrpuras, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico e Radical Chique, de Tom Wolfe (L&PM, Rocco)
Dicionário Analógico, de Francisco F.S. Azevedo (Lexicon)
Fama & Anonimato, de Gay Talese (Companhia das Letras)
Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace (Cia das Letras)
Hell’s Angels e Medo e Delírio em Las Vegas, de Hunter S. Thompson (Conrad)
Ioga Para Quem Não Está Nem Aí, O Instante Efêmero e Todo Aquele Jazz, de Geoff Dyer (Cia das Letras)
Kind of Blue e A Love Supreme, de Ashley Kahn (Barracuda)
Meio Intelectual, Meio de Esquerda, de Antônio Prata (34)
Na Sala de Aula, de Antonio Candido (Ática)
O Amor Acaba, de Paulo Mendes Campos (Cia das Letras)
O Escolhido Foi Você, de Miranda July (Cia das Letras)
O Grande Livro do Jornalismo, vários autores (José Olympio Editora)
O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Bárbara (Cosac Naify)
O Livro das Vidas do New York Times (Cia das Letras)
O Pai dos Burros, de Humberto Werneck (Arquipélago Editorial)
O Que É o Quê, de Dave Eggers (Cia das Letras)
Os Amores Difíceis, de Ítalo Calvino (Cia das Letras)
Palestina, de Joe Sacco (Cia das Letras)
Ponto Final, de Mikal Gilmore (Cia das Letras)
Pulphead, de John Jeremiah Sullivan (Cia das Letras)
Queda Livre, de Otavio Frias Filho (Cia das Letras)
Viagem ao Crepúsculo, de Samarone Lima (NovoLivro)

Bora?

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

Nenhum pensamento

  1. Vcs não pensam em adicionar versão online, com preços mais acessíveis. Sou do Rio de Janeiro e adoraria participar!

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