Estética do Frio

Sobrevoando o pampa em busca da Estética do Frio
Sobrevoando o pampa em busca da Estética do Frio

Vitor Ramil, Angélica Freitas e Odyr Bernardi lançam novas obras e propõem Pelotas como o centro de um novo universo artístico brasileiro. Perfil triplo para o suplemento Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, aqui na íntegra (e aqui, editado pra caber no jornal)

por Ronaldo Bressane, enviado especial a Pelotas

Em busca da Estética do Frio, passo um calorão em Pelotas. Apesar de a região ter acumulado duas semanas abaixo de 7º até setembro, chego à lendária cidade sulista sob 35 graus. Estética do Frio é um termo cunhado pelo músico e escritor pelotense Vitor Ramil e pode ser resumido no seguinte slogan: “Não estamos fora do centro, mas no centro de outra história“.

Produzir, a partir de sua própria tradição, uma antitropicália, um movimento artístico que envolve música, literatura e artes gráficas, levou a Estética do Frio a ganhar ressonância além do sul do Brasil, influenciando artistas uruguaios, argentinos, paraguaios. Todavia, já no desembarque no minúsculo aeroporto sulino (belíssima viagem desde Porto Alegre a bordo de um turbohélice sobrevoando lagoas & rios & pampas sem fim), os 35º em pleno inverno afastaram a hipótese de um encontro gelado com o menor movimento cultural do Brasil. A microcélula de terrorismo poético, armada por Ramil quando voltou do Rio de Janeiro nos anos 90, reúne outros “insulados” pelotenses: a poeta Angélica Freitas, pelotense que morou em São Paulo, México, Holanda, Argentina etc, e o artista gráfico Odyr Bernardi, ex-habitante de Rio, Curitiba e Porto Alegre. Curiosamente, apesar de residirem a quarteirões de distância uns dos outros e terem tanto em comum, o trio calafrio pouco se frequenta. Logo vim a descobrir mais esta singularidade de Pelotas: uma cidade onde a solidão encontra acolhida.

O trio está saindo da toca. Vitor Ramil lança, em junho, seu songbook e o álbum Foi no Mês que Vem, que reúne 33 canções de seus 33 anos de carreira, iniciada com o sucesso “Estrela estrela” composto quando o irmão caçula da célebre dupla Kleiton & Kledir tinha somente 17 anos – hoje ele está com 50 (os irmãos, que nos anos 80 venderam milhões de cópias com o hit “Deu pra ti”, seguem fazendo shows esporádicos). A parceira de Vitor em um futuro álbum, Angélica, a festejada Angie, 39, publicou em novembro de 2012 o segundo livro de poesia, Um Útero É do Tamanho de Um Punho (Cosac Naify). E o verborrágico Odyr, 45, usou o roteiro de Angélica para desenhar o romance gráfico Guadalupe (editado pela Companhia das Letras, saiu também em novembro), além de publicar também uma história em Dias Negros (Dead Pop), coletânea de quadrinhos lançada em Buenos Aires. A obra dos três tem chamado a atenção de críticos por sua singularidade, originalidade e força. “A Estética do Frio reabre uma discussão fundamental para a cultura letrada no Brasil, que é a sensação de exílio na própria terra – algo que tenho chamado de ‘lugar não-comum’“, resume o crítico Sérgio Alcides, professor da UFMG.

Vitor à frente de seu casarão
Vitor à frente de seu casarão

Ramil vai buscar o repórter no hotel e, antes de apanhar Angie e Odyr, dá um giro pela cidade. Sua recepção nada tem de fria: Ramil entusiasma-se genuinamente pelas ruas de calçadas largas povoadas por casarões neoclássicos centenários – alguns desertos, outros restaurados, muitos decrépitos. “Um amigo chileno esteve aqui de passagem e se apaixonou pela cidade. Disse que nunca viu nada tão decadente“, sorri o magro e barbado grisalho, sorri o magro e barbado grisalho, que daria um belo e diminuto Cristo nas “Paixões”de Nova Jerusalém. Decadência é uma virtude na obra de Ramil: remete a uma paisagem urbana que condensa passado e presente, em diálogo intenso com seus fantasmas – o contrário de uma cidade como São Paulo, por exemplo, em que a memória é continuamente pisoteada e varrida para debaixo dos tapetes da especulação imobiliária.

Claro que decadência só tem valor se houve fausto e glória. Situada entre as lagos dos Patos e Mirim, a 250 km ao sul de Porto Alegre, Pelotas tem um clima tão úmido que leva os locais a se orgulharem por residir na “segunda cidade mais úmida do mundo“, só perdendo para Londres. Ramil diz que adora passear à noite perto do porto em noites de nevoeiro. “Pego o carro, coloco um Radiohead e fico viajando no meio da neblina… não se vê nada“, conta. A paisagem interlagos e a proximidade com o porto de Rio Grande a fez uma cidade aberta ao exterior – em especial na época dourada em que exportava carne de charque e peças de couro para o mundo todo.

Exportava também sua juventude dourada para a Europa – daí a origem da fama da cidade como capital gay do Brasil: quando voltavam ao Rio Grande após temporadas de estudos, os jovens não economizavam no francês e no gesticular refinado, o que foi tido como “afrescalhamento” pelos gaúchos macho-chôs. A cidade era tão sofisticada que em 1833, ainda uma vila, erguia o primeiro teatro – o Sete de Abril, mais antiga arena em atividade no país – , onde se apresentaram lendas como João Caetano e Enrico Caruso. Em 1835 se tornou uma das primeiras cidades planejadas do Brasil, de traçado urbanístico todo quadriculado; foi batizada Pelotas devido ao nome das pequenas embarcações de couro redondas que atravessavam o Canal de São Gonçalo, que liga as duas lagoas.

O período áureo, tem, claro, a nota dissonante da escravidão. Como a produção do charque dependia da mão de obra escrava, a população de Pelotas chegou a contar com mais negros do que brancos – destacando-a do resto do Rio Grande do Sul: pelo censo de 2000, o IBGE aponta que 16% da população são formados por negros e mulatos. A presença forte da negritude consolidou Pelotas como pólo de religiões afro como candomblé e umbanda e resultou também em um carnaval de rua vibrante. “Uma das recordações musicais mais fortes que tenho da infância é a do carnaval na Quinze de Novembro, uma rua estreita por onde desfilavam os blocos burlescos e as escolas de samba“, lembra Ramil. “A batucada reverberando entre os prédios e o desfile entre o povo, sem cordão de isolamento, me emocionava… Até hoje quando escuto uma batucada tenho vontade de chorar.

Ramilonga

Um dos teatros mais antigos do Brasil
Um dos teatros mais antigos do Brasil

O batuque, que ocupou o centro da música de Ramil em discos como Satolep Sambatown (2007), hoje dá lugar a uma expressão sulista mais arcaica – a milonga, ritmo nacional dos países platinos. A primeira canção de Ramil com esse ritmo foi composta ainda em 1985, quando ele se mudou para o Rio de Janeiro: a tristíssima “Ramilonga”, que marcou sua despedida do sul (“Chove na tarde fria de Porto Alegre…/Nunca mais, nunca mais“). Quando Ramil voltou a Pelotas, nos anos 90, se deu conta de que este ritmo, tão popular entre os gaúchos do pampa quanto marginalizado pela música pop sulista, deveria ser o centro de sua obra.

E ao pesquisar sua origem se surpreendeu: “Tem uma tese que diz que a milonga vem de uma melodia medieval portuguesa chamada melos-longa, ou melodia longa, que veio para o Rio Grande do Sul e daí foi para a Argentina e o Uruguai“, desenvolve. “Outra teoria diz que nasceu em Montevidéu, num ambiente urbano, e que o milongueiro é aquele poeta improvisador. Mas a teoria mais aceita diz que a milonga seria, como o tango, originária da habanera, e que a palavra teria origem africana, viria do quimbundo, um dialeto falado por escravos que vieram para o Brasil e o Uruguai, significando o plural de mulonga, ou palavra. Então, milonga significa palavras“, teoriza.

A milonga caiu como luva na Estética do Frio. Ramil morava em Copacabana e, num dia muito quente, tomando seu mate, ligou a TV e viu uma notícia sobre um carnaval na Bahia, com todo mundo seminu pulando atrás. “Tomando o mate, ali de calção, pensei: jamais estaria atrás desse trio elétrico!“, ri. “Daí veio uma matéria sobre a chegada do frio no sul, aquelas imagens tradicionais dos caras escrevendo nos vidros nevados dos carros, campos com geadas, e tive duas sensações. Primeiro, saudade; depois, exílio. O telejornal tratava aquele povo seminu atrás do trio elétrico de modo mais natural do que aquelas pessoas escrevendo nos vidros dos carros. Logo me dei conta daquele sentimento de sermos ou não brasileiros, que todo gaúcho tem“, recorda.

Um amigo lembrou uma frase de Alejo Carpentier – “o frio geometriza as coisas” – , que deu liga à imaginação visual de Ramil associar o mate à paisagem do pampa, reta, infinitamente ocupada por gaúchos isolados com sua cuia de erva mate. “Qual seria o equivalente musical disso? Não seria um trio elétrico. Seria um cara sozinho tocando uma milonga. E daí surgiram esses valores: rigor, concisão, clareza, melancolia, profundidade, que são os valores que identifico na Estética do Frio.

Aos poucos, a ideia foi encontrando ressonância em outros artistas gaúchos, catarinenses, paranaenses – e também argentinos e uruguaios. “Além de haver construído uma obra que se tornou referência incontornável, Ramil alcançou um patamar de excelência raro, encontrável em poucos artistas, por haver formulado as idéias de sua estética, justamente na tal fórmula sintética da Estética do Frio“, aponta o crítico e escritor Luis Augusto Fischer. “Essa fórmula virou um hit crítico e estético: ano passado a Bienal do Mercosul mencionou o termo; em Buenos Aires e em Montevidéu os caras mencionam isso como uma espécie de movimento, mais ou menos como ‘Tropicália’ ou ‘Bossa nova’, logicamente guardadas as devidas proporções.”

Se Ramil recusa o rótulo de “movimento” para a Estética do Frio, porém, é inegável que suas reflexões podem ser percebidas em artistas do porte de um Jorge Drexler, por exemplo, músico uruguaio com quem Ramil tem gravado várias canções e se apresentado em conjunto. Curiosamente, o timbre de voz de Ramil remete a um compositor quase antípoda no “rigor e concisão” do Frio: Caetano Veloso. Influência diluída via João Gilberto: “Claro que essas influências existem, assim como Chico Buarque e toda a bossa nova, marcas da minha geração.” Quase como se Ramil fizesse uma ponte da milonga ao samba via bossa – olhando o tropicalismo do avesso, do outro lado da ponte.

Avesso presente no apelido que colou na cidade: Satolep (Cosac Naify, 2008), título de seu segundo romance, já presente no primeiro, Pequod (Artes e Ofícios, 1995), e em uma canção de 1984. “Era uma brincadeira de adolescente, uma tentativa de criar uma cidade mítica, em que os tempos se sobrepõem, e acabou pegando. Hoje tem Bar Satolep, Padaria Satolep, Ótica Satolep“, ri. Esses tempos sobrepostos de modo fantasmagórico são a marca de seus dois livros.

Em Pequod, há a busca de um filho pelo pai. Na narrativa densa de Satolep, há um fotógrafo que volta à cidade após 30 anos, que se depara com um caderno onde há descrições de lugares de Pelotas: ele sai para clicar a cidade e quando volta para casa, lê no caderno a descrição exata do que fotografou, quase como um oráculo. Atento ao passado, Ramil narra encontros do fotógrafo com o escritor Simão Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul.

Nesse livro aparece mais claramente sua vocação meio para o relato mítico, o que o aproxima de outros descendentes de árabes no Brasil como Raduan Nassar e Milton Hatoum“, aponta Fischer. Em seu mais recente disco, Délibáb, o compositor radicalizou no diálogo sul-sul ao musicar poemas do quase desconhecido autor João da Cunha Vargas e milongas de Jorge Luis Borges. “Ele nunca teve medo de experimentar no pop ou de chafurdar nas formas tradicionais – especialmente a milonga, que não tinha prestígio culto nem aqui nem nos países do Prata“, lembra Fischer. “Em Buenos Aires, falam que um brasileiro revitalizou a milonga – algo como um argentino revitalizar o partido alto.

Café Aquários, ícone pelotense
Café Aquários, ícone pelotense

A penúltima rua antes do fim do mundo

A “geometrizada” obra de Ramil parece caminhar para estabilizar-se em um tempo mítico, fora do tempo efêmero do pop. Contudo, a impressão é esfacelada pouco antes do jantar regado a absinto – para o qual Ramil vai buscar Odyr e Angélica. Ambos estão na casa de Odyr, região remota da cidade próxima ao porto – Odyr diz morar “na penúltima rua antes do fim do mundo” – finalizando os últimos detalhes do romance gráfico Guadalupe, a ser lançado em outubro pela Companhia das Letras.

O magérrimo Odyr, semioculto sob lentes grossas e longos cabelos encaracolados, traz ao jantar um cheiroso pão redondo que ele mesmo fez, em seu forninho (“Um homem deve ser capaz de produzir o próprio pão“, sentencia). Angie traz sua notoriamente enigmática timidez. A centenária casa onde mora Ramil, numa rua barulhenta – pela janela vinham os gritos dos torcedores que peregrinavam para prestigiar o clássico do futebol local, Brasil X Pelotas –, foi adquirida e reformada pelo pai, um engenheiro civil uruguaio. Os filhos, Isabel, artista plástica, e Ian, também músico, vivem em Porto Alegre; como Kleiton e Kledir se fixaram no Rio, sobrou para Vitor assumir a casa familiar, onde vive com a mulher, a fonoaudióloga e pesquisadora Ana Ruth Ramil.

A casa conserva as paredes revestidas de escaiola – técnica que imita o mármore e a madeira – e os azulejos hidráulicos do início do século 20. Na sala de estar, onde havia um piano Fritz Dobbert e dois relógios parados, Ramil serviu um absinto que havia trazido de recente viagem à França, à moda do século 19: a água com cubos de açúcar misturada lentamente com a bebida, de modo a deixar “escapar” a verde fada do absinto.

E a fada flanou por sobre sete músicas do próximo disco de Ramil, a sair em 2013 – todas as canções são baseadas nos poemas de Rilke Shake, de Angélica Freitas (Cosac Naify, 2007, esgotado). Musicalmente, são, numa definição apressada (e talvez temperada pelo absinto), blues-bossa-milongas. O forte acento pop, de ressonância robertocarliana, é reforçado pelas letras de Angie, centradas em brincadeiras com o cânone literário e olho fino para as contradições do amor, sem falar no erotismo desavergonhado – em recente troca de cartas com o poeta Fabrício Corsaletti, no Blog do Instituto Moreira Salles, Angie reclamava: “Há uma pergunta dando voltas em rollers na minha cabeça, e ela veste collant de oncinha e não quer calar: fode-se pouco na poesia brasileira contemporânea, você não acha?“. Difícil crer naquela mocinha tímida em ver seus versos musicados por Ramil uma poeta tão despudorada.

Um útero é do tamanho de um punho

Fui o responsável pela triangulação entre Vitor e Angélica“, conta o crítico e editor Augusto Massi. “Considero que o trabalho dele como romancista transcende todas as questões levantadas pelo libreto-manifesto da Estética do Frio. O Vitor é um cara dotado de uma prosa belíssima, com um projeto bastante pessoal de ficção, de longo alcance. Trata-se de uma mistura rara, alta voltagem de inteligência e boa dose de melancolia. Já o músico Vitor é mais alegre e irônico. Talvez tenha vindo daí a afinidade dele com a Angélica“, acrescenta Massi, ex-editor de Vitor e Angélica na Cosac Naify e hoje professor de literatura na USP.

Depois da dica de Massi, Ramil musicou “Vida aérea” e pediu o contato da poeta – mal sabia que ela vivia na mesma cidade que ele. Angélica tomou um susto: Ramil era um mito de Pelotas, não parecia possível uma aproximação. “Foi difícil acreditar que era o Vitor no telefone, falando que tinha musicado um poema meu, com aquela voz lá dele“, lembra.

Angie é um mistério. Ao contrário dos falantes Vitor e Odyr, tem alguma dificuldade de sair do casulo – fala para baixo, com a mão quase em frente à boca, encurvada, quase como se olhasse para dentro de si mesma; guarda um ar de criançona grande que fica lá no fundo da classe espiando as travessuras dos outros. Mas, ao contrário dos caseiros Vitor e Odyr, ela é a mais viajante. Para ler seus poemas, foi a Equador, Alemanha, Holanda, México, Argentina e várias cidades do Brasil.

Praia do Laranjal, habitat de Angie
Praia do Laranjal, habitat de Angie

Vou sempre que me chamam. Mas, pra morar, prefiro Pelotas. Em São Paulo me dei conta de que estava trabalhando só pra me bancar; aqui a vida é mais barata e melhor.” Nos seus poemas este misto de timidez e fome de mundo se reflete no contraste entre humor e contenção. Para o poeta e editor argentino Anibal Cristobo (Krakatoa, 2001), a graça de sua obra está em desarticular o estereótipo do “brasileiro”. “Desconstruindo feminilidade, clima e a exuberância, Angélica está no outro extremo do Rio 40 Graus. Este olhar não ultrapassaria a esfera política se não se tratassem de poemas estupendamente realizados, com um tipo de humor lento – outra característica derivada do frio – que lhe tem valido um reconhecimento não só no Brasil como em vários países“, pensa o poeta e editor.

Até em Pelotas Angie é meio nômade. Vaga entre a casa da mãe na cidade e a casa da irmã, no bairro do Laranjal, vasta praia de areias finas e brancas e águas silenciosas da Lagoa dos Patos onde passou uma temporada para escrever Um Útero. Começou a ler poesia aos 10 anos, sob o impacto do poema “Bicho”, de Manuel Bandeira. Hoje seus poemas favoritos são as letras das canções da roqueira pernambucana Karina Buhr. Jornalista, foi repórter de Cidades n’O Estado de S.Paulo, onde achou muitas histórias para transformar em poemas – mas se encontrou mesmo como tradutora: atualmente traduz livros de Cesar Aira (update: o livro, Como Me Tornei Freira, sai este mês pela Rocco).

Sua poesia, vertida ao alemão, inglês, espanhol, francês, romeno e sueco, é sofisticada e repleta de referências, mas de comunicabilidade imediata, e longe de ser hermética. Um de seus procedimentos habituais é o diálogo com mestres e inventores sem porém colocá-los num pedestal. Nesse liquidificador de conteúdos, Rilke pode ser matéria de milk shake, William Blake pode ser uma torrada (“Rilke shake“), Ezra Pound vai parar numa jaula (“Não consigo ler os cantos“), Mallarmé vira uma arma perigosa (“Estatuto do desmallarmento“), Gertrude Stein entra na banheira (“Gertrude Stein daqui pra/ cá é você o paninho de lavar/ atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho/ de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas“) e até Homero é tratado sem frescura (“Se quiser empreender viagem a ítaca/ ligue antes/ porque parece que tudo em ítaca/ está lotado“).

Se sua musicalidade parece espontânea, é um tanto assombroso saber que os poemas saem quase “naturalmente”, sem muito retrabalho. “Escrevi ‘Rilke shake’ direto, quase não mexi. Meus poemas são assim, eu tenho uma ideia, começo a escrever e de repente paro“, jura Angélica, enquanto se serve de um pouco mais de bacalhau e batatas cozinhados caprichosamente por Ana Ruth.

Mesmo os poemas mais trabalhados quase artificiosos de Angie são espontâneos e até com certa aparência de malfeitos – como as séries “3 poemas com o auxílio do Google“, em que o automatismo da ferramenta autocompletar traz resultados contraditórios, que embutem o cômico e o melancólico na edição da poeta. “Se em alguns poemas seus encontramos ecos do modernismo de Oswald de Andrade, em seus melhores momentos ela lembra poetas do século XIX como Sapateiro Silva e Qorpo-Santo, e também na poesia satírica e nonsense de Edward Lear, Christian Morgenstern, Paul Scheerbart“, compara o poeta Ricardo Domeneck.

É uma poesia que combina o lírico e o satírico de forma bastante sofisticada, baseando-se muitas vezes na tática da self-depreciation. Vale lembrar que Angélica é precursora no Brasil da ‘googlagem‘, que renova e se tornou o carro-chefe da poesia flarfista, surgida na última década nos Estados Unidos. Rilke shake talvez tenha sido o livro poesia contemporânea mais lido no Brasil ultimamente. Já disseram que vendeu pois é acessível, como se fosse pecado: ridículo insistir no mito romântico da poesia “difícil”“, dispara o poeta.

Guadalupe

Odyr mima Guadalupe
Odyr mima Guadalupe

A terceira ponta do tridente gelado, Odyr, é em tudo o oposto de Angie. Daqueles caras muito solitários que, quando começam a falar, desembestam, o grisalho e cabeludo Odyr voltou a Pelotas para dedicar-se totalmente aos quadrinhos. No Rio, foi diretor de arte da Desiderata, responsável pela reedição de clássicos do Pasquim, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo. Mas o Rio o transtornava, não se concentrava nas próprias histórias – a não ser a perturbadora graphic novel Copacabana, com roteiro de Lobo Barba Negra. “Só mesmo o Odyr para mostrar a princesinha do mar de modo cru, hard, sem filtro, noir, em PB. Nem as meninas da Prado Júnior escaparam, incólumes, do banho de nanquim do desenhista“, escreveu Telio Navega, n’O Globo.

Mas, apesar das dezenas de projetos, a arte de Odyr não tinha foco. Em Pelotas, encontrou condições ideais. “Acordo cedo, faço meu pão, resolvo meus frilas de design gráfico até a tarde. Daí almoço e depois fico trabalhando em quadrinhos até umas 10 da noite. No meio tempo, navego na internet e baixo filmes. Mas não consigo ver nada mais do que meia hora. Não saio de casa quase nunca. Aliás, os índios que moravam aqui antes da chegada dos ibéricos já eram assim: no frio, pra se aquecer se enterravam em buracos no pampa“, conta o hiperativo quadrinista, acendendo mais um cigarro.

Namoradas? Já foi casado, mas hoje é um feliz misantropo. Vida noturna? Esqueça. Piqueniques aos fim de semana? Necas. Amigos passando pra tomar um café? “Quando estávamos terminando Guadalupe, de vez em quando eu percebia que o Odyr já tinha ausentado, começado a trabalhar em outra coisa… aí sacava que era hora de ir embora“, ri Angie. “Quando Odyr saiu do Rio entendi que ele era um artista do frio, que tem momentos de clausura, obcecado com a arte. O trabalho dele melhorou significativamente com esse rigor a que ele se impõe“, elogia Eduardo Nasi, jornalista especializado em quadrinhos. Ele lembra a busca de Odyr por um traço que reflita o próprio processo de composição. “O trabalho dele tem essa pegada de artesanato, de fazer manual, com a entrega do artista à obra. Em Guadalupe, seu lápis deixou sulcos indeléveis nas páginas: as marcas fazem parte do trabalho“, explica.

Odyr também é um raro cartunistas eminemente “literários” – nos fanzines que ele mesmo edita pela Editora Secreta, há adaptações de Borges, Cortázar, Júlio Verne, e suas histórias entrelaçam reflexões metalinguísticas sobre a natureza do narrável – como nas séries A máquina narrativa e Viagem ao centro dos 2000 eus. Embora condene algumas adaptações recentes de clássicos da literatura por serem, a seu ver, muito “literais e pouco ambiciosas“, ele mesmo está numa empreitada gigante: adaptar aos quadrinhos a vida e a obra de Qorpo Santo.

Detalhe do Qorpo Santo de Odyr
Detalhe do Qorpo Santo de Odyr

Um dos mais peculiares autores gaúchos do século 19, tido como esquizofrênico em vida, escrevia obsessivamente: chegou a produzir oito peças de teatro em um mês. Precursor do absurdo e do surrealismo no Brasil, tem uma obra ainda por ser desvendada. No longo projeto de Odyr, sua vida abre clareiras por onde entram trechos de suas peças. Ele deseja ansiosamente terminar logo: não gosta de permanecer anos amarrado a um projeto, como muitos quadrinistas. “Precisamos ter uma indústria de quadrinhos como na França, em que o sujeito escreve um livro por semestre, e vende milhares nas bancas.” Daí sua busca por um traço que fosse ao mesmo tempo muito elaborado e também quase tosco – no nível do gesto.

As 120 páginas de Guadalupe, que desenhou em somente três meses, provam essa procura. A história de Angie se passa no México – inspirada em uma viagem da poeta, quando ela encontrou o argumento: uma filha que precisava atravessar o país para enterrar a avó. “Às vésperas de completar 30 anos, tudo o que Guadalupe Vega quer é esquecer o trabalho que tem no sebo de Minerva, seu tio travesti. No meio do pior engarrafamento do ano (ela aproveita os engarrafamentos para ler os clássicos), fica sabendo que a a avó, Milagros, morreu ao chocar sua scooter com um tacomóvel. Como Guadalupe tem o furgão de Minerva Livros, é a única que pode cumprir o último desejo da avó: um enterro com banda de música em Oaxaca, onde nasceu.” Assim começava a sinopse que Angie mostrou a Odyr.

Depois entraram cogumelos alucinógenos rituais, deuses histéricos, comédia ligeira e o Village People“, conta ele, que foi convidado pelo escritor Joca Reiners Terron – responsável pelos “casamentos” entre desenhistas e escritores na série de romances gráficos a sair pela Companhia das Letras – para passar o lápis no roteiro da vizinha. “Meus originais contam a história do processo tortuoso que foi chegar àquelas imagens. Por isso o México de Guadalupe é bem flexível, um cenário leve para uma história imaginativa, um México pessoal, meio pesquisado, meio inventado e atravessado por coisas que vi ao longo do tempo“, reflete o artista.

Após lançar sua segunda graphic novel, Odyr pretende detonar outra empreitada: o Salão de Humor de Pelotas. “De cara é uma ideia engraçada, que atrai simpatia. Minha vontade é mostrar que a cidade é uma encruzilhada das artes gráficas brasileiras e platinas“, sonha, pouco antes de revelar mais três ou quatro projetos que tem nas mangas. Jantar finalizado, Vitor Ramil distribui pastéis de Santa Clara, especialidade pelotense, e deixa perto um pote de doce de leite uruguaio, numa simbólica menção ao diálogo sul–sul. A consistência e o sabor dos doces têm a temperatura exata.

Angélica, Odyr e Vitor
Angélica, Odyr e Vitor

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

7 pensamentos

  1. Suas palavras fortalecem e consolidam aquilo que o sistema desconsidera. Buscar o contraste é contribuir para desfazer um mundo de pessoas iludidas e outras um tanto interesseiras. Obrigado por sua inteligencia critica.

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