Um dos artistas mais versáteis surgidos nos anos 80, o músico, jornalista, ilustrador e contista Cadão Volpato lança seu primeiro romance

Rivoli é um arquiteto paulistano, mas mais parece um sueco que tivesse saído de um filme de Jacques Tati: altão, louro e de olhos azuis, tem uma aura permanente de bebê espantado. Seu escudeiro, Tortoni, é o oposto: baixinho, troncudo, o taxista portenho é solícito e esperto. Ambos se irmanam nesse ar distraído, de clochard, de quem está fora do lugar. E estão: perdidos no meio da Argentina, procuram um incerto “hotel do fim do mundo” na Patagônia. Mesmo antípodas, criam uma amizade que lhes será cara, mais tarde, quando as ditaduras de ambos os países começarem a pegar pesado. Estamos nos anos 70, no romance Pessoas Que Passam Pelos Sonhos, que mostra outra faceta da caleidoscópica obra de Cadão Volpato.
A trajetória do artista começa na cena independente do rock dos anos 80, liderando a banda mais cultuada do período, Fellini, que gravou seis álbuns pouco vendidos, mas inspirou dúzias de músicos — entre eles, Chico Science. Anos depois, aquele roqueiro meio nonsense notabilizou-se como apresentador de TV (Metrópolis) e colaborador de vários veículos (como este Valor). Talvez música e jornalismo tenham ocultado seu coté contista, que rendeu quatro livros, todos habitados por um embate entre leveza e peso: Dezembro de um verão maravilhoso, Ronda noturna, Questionário, Relógio sem sol. Os caminhos paralelos no realismo na reportagem e no surrealismo da arte cruzam-se neste primeiro livrão de Cadão, uma narrativa de 300 páginas.
“Escrevi o livro em um mês“, conta Cadão, fatiando um filé à parmegiana no Ugue’s, lendário boteco de Santa Cecília, bairro onde tem um escritório em uma sala dividida em co-working com outros artistas. “É uma história de homens distraídos. Aliás, esta é uma característica bem masculina: já reparou como as mulheres sempre reclamam que nós homens somos distraídos?“, ri. Convidado pela editora Babel para publicar um livro, Cadão deu-se o deadline de quatro páginas por dia, até que, aos poucos, aquele artista feito nas formas breves do conto, da canção e do desenho viu sua narrativa capturada por um fôlego maior. E estruturou um romance em imagens e cenas, sutis como os desenhos de Sempé ou Saul Steinberg. Influências sentidas, aliás, nas ilustrações de seu infanto-juvenil Meu Filho Meu Besouro e nas imagens que em breve reunirá em uma exposição em São Paulo (algumas podem ser vistas em seu site).
Livro entregue, a editora Babel cumpriu o destino prefigurado em seu ambicioso nome e esfacelou-se. Felizmente o autor salvou o rebento da tragédia e o reencaminhou às mãos da Cosac Naify, que envelopou a história no belo projeto gráfico de Flávia Castanheira, usando as “constelações imaginadas” da artista Marsha Cottrell. Trata-se de “uma epopeia fantasmagórica” conforme o crítico de arte Rodrigo Naves etiqueta o livro na orelha: à força de descorporificar seus personagens, a narrativa os volatiliza no limite do traço, aparições, como “pessoas que passam pelos sonhos“.
Narrando na terceira pessoa, a câmera de Cadão acompanha os personagens com a estranheza de um Google Street View, perto e longe, a uma altura flutuante, mantendo seus rostos visíveis o suficiente para que com eles nos familiarizemos, mas borrados, para que não possam ser reconhecidos de bate-pronto. “A natureza dos fantasmas é muito fluida“, insinua o narrador. Apesar de inexistir tensão ou conflito evidentes, aos poucos nota-se que o embate na trama se dá entre leveza e peso. “Por delicadeza perdi minha vida“, diria Rimbaud, definindo estes personagens ligeiros demais para enfrentar o Leviatã: as ditaduras que estremeceram Argentina e Brasil nos anos 70. A violência é mais espessa por não ser vista. Para uma criança, militantes que apanham em um corredor polonês podem parecer como recém-casados que protegem a cabeça ao receber o arroz na saída da igreja. Assim, uma ternura mediterrânea, meio doida, meio tola, atravessa essas vidas sem pendão para o épico: de Lao, o estudante de arquitetura escalpelado pelos milicos; Gábi, a botticelliana adolescente que enlouquece uma cidadezinha paulista; Asia, a enigmática mulher do arquiteto peruano; Francesco, o carente craque canhoto; e…

“Há um segredo no livro“, sugere Cadão. “Está escondido, não chamo a atenção pra ele. Vou te dizer, mas você não pode escrever sobre, hein?“, pede. O segredo de que fala é o que torna a narrativa tão angustiante — uma realidade assustadora que pode deixar sem chão o leitor, ao desvendá-la. Seu tom aproxima a escrita do terreno de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e Conversa na Sicília, de Elio Vittorini. E também distancia o livro de duas tendências arraigadas na literatura contemporânea: o realismo e a autoficção.
Talvez por ser jornalista, Cadão guarda alguma repulsa pela “vontade de exaurir a fisicalidade” de descrições e psicologia, como supõe o realismo, e a “mania de falar de si mesmo” presente na autoficção. “Gosto de deixar um espaço para a imaginação do leitor“, explica, já pedindo o segundo café. A despeito de sua viagem pelas ditaduras latino-americanas ter muito de verdade, não há no livro pontes imediatas com “fatos reais” nem com a experiência do autor. Sim, Cadão foi militante da Libelu, movimento estudantil trotskista. Mas é outra vertente de sua vida que atravessa as páginas de Pessoas Que Passam Pelos Sonhos: o surrealismo. O mesmo que o fez encarnar, em um seminário concorridíssimo na USP dos anos 1980, o cineasta suíço Jean-Luc Godard — que, estranhamente, só falava em português.
Ou quem sabe fosse mesmo Godard, de passagem por algum sonho de Cadão. Mas esta já é outra história.
[Perfil para o Valor Econômico]