O maratonista

A trilogia 1Q84, do japonês Haruki Murakami, tem seu primeiro volume publicado no Brasil. Uma corrida de longa distância (1200 páginas) que vale a pena vencer

Haruki Murakami é louco por corridas de longa distância. Depois da maratona de Kafka à beira-mar (Alfaguara, 2006, 576 págs.), chega ao Brasil a trilogia 1Q84, um verdadeiro Ultraman – os livros 1 e 2 têm 737 páginas, na edição em espanhol da Tusquets. A edição da trilogia em inglês sai em outubro, pela Knopf, em 928 páginas, capa de Chipp Kidd; em português, a Alfaguara acaba de lançar o primeiro volume – o 2º e o 3º estão prometidos para 2013. No Japão, o primeiro livro vendeu um milhão de exemplares só no primeiro mês; até o momento, cinco milhões foram vendidos – e já existem rumores de que Murakami estaria escrevendo um quarto volume.

Números à parte, não podemos nos apartar dos números para falar da obra. Os livros 1 e 2 foram estruturados tendo O Cravo Bem-Temperado, de J. S. Bach, como inspiração (cada um tem 24 capítulos, 12 com narrativa em Aomame, 12 em Tengo, 24 prelúdios e fugas em todos os tons, maiores e menores). Tengo e Aomame são típicos personagens de Murakami: solitários, obsessivos, idiossincráticos, fascinados por música e pelo ideal da precisão. Tengo é um professor de matemática trintão que vive sozinho (mas tem uma namorada que é casada, tal como o K de Minha querida Sputnik) e faz uns bicos como preparador de texto para um editor. Aomame é uma professora de artes marciais, trintona, que vive sozinha (mas costuma sair à noite para caçar homens maduros) e faz uns frilas como assassina de aluguel.

A rotina de Tengo começa a mudar quando ele recebe a incumbência de reeditar – praticamente reescrever – um livro misterioso que chegou à editora, escrito por Fukaeri, uma sedutora adolescente de 17 anos:  Crisálida no Ar. A rotina de Aomame começa a mudar quando ela recebe a incumbência de matar um homem tão poderoso quanto bizarro. Rigorosa feito um relógio, a máquina narrativa de Murakami vai sutilmente encadeando as narrativas vividas por Tengo e Aomame até o fim – quando, contrariamente ao teorema, as duas paralelas se encontram. No terceiro volume, Murakami se aproxima dialeticamente de Tengo e Aomame via Ushikawa, um investigador que persegue a dupla de protagonistas. O engenhoso modo de narrar, melodioso e algumas vezes construído sobre repetições (ou refrões?) praticamente impõe o leitor à página seguinte, o que explica o seu imenso sucesso pop.

Já o sucesso de crítica se entende, além da conhecida precisão nipônica, pelas diversas intertextualidades que o pós-moderno Murakami evoca em sua escrita. A música, presente mais como princípio ordenador do que como mera trilha de fundo, comparece na obsessão pela Sinfonieta de Leoš Janáček, além do gosto de Tengo por jazz dos anos 40 e 50 (refletindo o gosto do próprio Murakami). Relatos obscuros de Checov – além da máxima checoviana “Se uma arma aparece no início de um relato, ele deverá ser disparado até seu fim” – sem falar, claro, em George Orwell, agregam diversas camadas à narrativa, que se passa no ano de 1984. Quer dizer, se passa e não se passa, ao mesmo tempo – por conta de um contato com enigmáticas criaturas chamadas Little People, citadas no livro  Crisálida no Ar, algumas personagens passam a viver em um tempo-espaço chamado 1Q84. Orfandade, seitas obscuras, conflitos entre realidade e fantasia, embates com a memória, crítica ao burocratismo japonês e pitadas de cultura pop, sexo e violência são outros subtemas murakamianos.

Fôlego longo

O imenso sucesso do livro parece ter tornado Murakami ainda mais ermitão do que ele já é. Não chega a ser um Dalton Trevisan ou Thomas Pynchon, uma vez que já concedeu entrevistas, sempre raras – a última foi em 2009. Tal como acontece com grandes escritores, o melhor caminho para conhecer o homem por trás da escrita parece ser, paradoxalmente, sua própria obra. É o que acontece com seu livro mais autobiográfico: Do que eu falo quando eu falo de corrida, talvez o melhor livro de auto-ajuda já escrito (muito porque foi escrito por um escritor de verdade). Japonês residente do Havaí, Murakami começou a correr aos 30 anos, em 1982, quando largou a boemia como dono de bar de jazz em Tóquio, abraçou a carreira de escritor – e parou de fumar. Um ano depois, completava a mítica rota entre Atenas e Marathona, na Grécia. Quase 30 anos depois, mantém a rotina de correr 10 km por dia e pelo menos uma maratona por ano. Neste livro, o triatleta prova como o exercício da corrida se associou ao exercício da escrita de modo tão bem-sucedido – mesclando sentido da vida, filosofia e educação física, o livro oferece lições e reflexões tanto a leitores quanto a corredores.

A primeira “lição” de Murakami é ter um mantra durante a corrida. O dele é: “A dor é inevitável. Sofrer é opcional”. Outro ponto destacado por Murakami como ligação entre escrita e corrida é o fato de seu único adversário ser o próprio corredor, o que faz da atividade uma prática 100% solitária – justamente o que motiva tanto escritores quanto atletas. No seu mundinho, o que Murakami gosta quando está dentro de seu amado par de Mizunos é o silêncio: “Tudo que tenho a fazer é olhar a paisagem que passa por mim. E não penso em nada que seja digno de mencionar”. No entanto, trilha sonora é fundamental: Murakami adora “Sympathy for the devil”, dos Stones. E correr, lembra o japonês, tem muito a ver com… tropeçar. Micos são inevitáveis. O embaraço do escritor é singelo: “Me sentia constrangido que os vizinhos me vissem correndo – a mesma sensação que tive ao ver pela primeira vez o título ‘romancista’ colocado entre parênteses depois do meu nome”.

Ficção X realidade

Ainda que raras, há boas entrevistas com Murakami que ajudam a compreender seu modo de pensar – e como ele chegou à perfeição formal de 1Q84. “Sempre quis escrever um romance sobre um passado recente, inspirado em Orwell”, disse, falando na única entrevista que deu depois do lançamento da trilogia, ao jornal Yomiuri Shimbum. “Outra fonte foi o incidente envolvendo a seita Aum Shinrikyo; já havia escrito sobre as 60 vítimas do ataque de gás sarin em Tóquio e fui a vários julgamentos. Mas minha raiva sobre esse incidente não passava. Queria escrever sobre Hayashi Yasuo, que foi capturado depois de matar oito pessoas. Ele entrou na Aum Shinrikyo, recebeu lavagem cerebral, acabou virando um assassino e foi parar no corredor da morte. Você pode achar que seria uma pena justa, mas ele não era um criminoso exatamente. Então comecei a pensar em um homem deixado sozinho do outro lado da lua, em como ele sentia medo da morte. Esse foi o ponto de partida de 1Q84. O muro que separa o criminoso do inocente é mais fino que pensamos – como ficção e realidade.”

O papel do escritor, para Murakami, é o de criar histórias opondo-se a posições do fundamentalismo e mistificações. Ele se vê como um contador de histórias. “Uma história permanece”, disse, “se encontrar um espaço no coração de alguém. Pode não ser efetiva como uma história oral, mas cresce ao longo do tempo – especialmente desde que a internet vive uma enxurrada de opiniões, é mais importante do que nunca que a história seja poderosa. Um romancista contém, com sua linguagem, a superfície das coisas que resistem à expressão fácil, e entrega o resultado ao leitor. Se o leitor descobre a verdade que está embalada na linguagem do romancista, não há alegria maior.”

Sobre o processo de escrita de 1Q84, Murakami é ao mesmo tempo claro – e vago. Ele não deixa de se demonstrar profundamente grato ao sistema matemático de Bach em O cravo bem-temperado, mas também abre espaço para a indefinição própria à inspiração. Quando começou a escrever o livro no Havaí, no outono de 2006, tinha pouco mais que os nomes dos personagens e uma ligeira ideia do argumento. “Decidi alternar as histórias de Aomame e Tengo em tons maiores e menores”, conta, a respeito do tanto de música barroca que há na trilogia. “Uma vez vi em um cardápio um prato com ‘aomame’ [pera azul], e achei perfeito. Simultaneamente me ocorreu o nome de Tengo – e foi como se o livro já tivesse sido escrito. Queria escrever uma história sobre um homem e uma mulher de 30 anos que tivessem se encontrado quanto tinham 10 anos mas ficaram muito distantes. Se tenho um argumento fixo, não consigo escrever bem. Preciso de uma ideia imprecisa, de uma imagem, uma suspeita de que algo vai acontecer. Não acho que tem graça passar dois anos em uma história com um argumento pré-determinado.”

Muitos leitores poderão se surpreender com a onipresente juventude dos personagens de Murakami – quase como se ele só se ocupasse mesmo de gente nova, talvez um dos motivos por ele ser considerado um autor pop por excelência. “Quando um escritor envelhece, acaba escrevendo sobre sua faixa etária – e os leitores também envelhecem com o escritor”, explica. “Mas tenho mais interesse na juventude de hoje. Não que tenha amigos de 20 e poucos, nem assisto animações ou gosto de ler literatura pra celular. Mas descobri que podia escrever sobre um garoto de 15 anos em Kafka à beira-mar, e sobre uma garota de 19 em After dark, quase como se eles fossem eu. Em 1Q84, eu tinha que pensar em como seria a psique de Aomame aos 10 anos. Precisei cavar nos processos cognitivos e emocionais de uma mulher, e tentar escrever da sua perspectiva.”

Sempre foram temas importantes em sua obra o sexo e a violência, motores em 1Q84 – a cena culminante do segundo livro impacta por combinar de modo surpreendente crueza e beleza (calma, não vamos tirar a sua surpresa, leitor). “Em 1Q84, não há uma descrição de gente arrancando pele humana (como The Wind-Up Bird Chronicle) ou matando um gato (como em Kafka à beira-mar), mas há cenas de sexo e violência. Deve haver leitores que não gostam, mas para a história elas são necessárias.” Outro ponto a destacar nos dois primeiros volumes de 1Q84 é o fato de Murakami narrar, pela primeira vez, na terceira pessoa. “Sempre tento criar um novo sistema de linguagem para cada trabalho. Fiquei feliz com a terceira pessoa pois senti como se o mundo tivesse ficado maior. De acordo com Wittgenstein, há dois tipos de linguagem: objetiva, lógica e facilmente compreendida por qualquer um, e privada, que é difícil de explicar via linguagen. Bem cedo na minha carreira, pensei que um romancista tem os dois pés no reino da linguagem privada, que ele deve transferir mensagens do pensamento ou da linguagem privada para criar suas histórias. Mas desde que – não sei quando – descobri que a linguagem em um romance ganha uma força especial se habilidosamente conseguir misturar e alternar ambas as linguagens, a história mesma ganha mais dimensões.”

Embora fale de modo tão particular à sociedade de hoje, é compreensível que um autor tão recluso, adepto de esportes outdoor e declaradamente obcecado pelo jazz dos anos 40 seja distante da internet a ponto de quase nunca acessar o próprio e-mail e ainda escrever em velhos processadores de texto. “O progresso da tecnologia criou novas divisões na sociedade”, afirma o escritor. “Há necessidade de uma vasta classe de trabalhadores intelectuais – os programadores. Por vivermos tão conectados a computadores, me preocupa que nossa criatividade acabe amarrada em nós mesmos, em nossos mundos – como um rascunho do 1984 de Orwell. Outro problema é ser quase impossível viver sem depender da internet e do inglês em algum nível. Precisamos de um sistema que deixe que diferentes países mostrem suas culturas únicas para conter essa tendência à homogeneização do pensamento”, defende Haruki Murakami.

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*Originalmente publicado na Revista da Cultura de novembro de 2012

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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