
Comentário sobre As Coisas, de Georges Perec, para o Guia Livros da Folha
Ao romance As Coisas, o modesto Georges Perec aduziu um aposto: Uma História dos Anos Sessenta. Enganou-se: As Coisas nunca foi tão contemporâneo – leitura ideal para entender a sociedade de emergentes do Brasil. O jovem e confiante casalzinho Jérôme e Sylvie mora num apê charmoso ainda que apertado, vive de bicos por recusar um emprego das nove às seis, gasta os dias com amigos bacanas e programas idem, sem planos para o futuro – mas com muitos olhos às coisas que fariam sua existenciazinha ganhar qualquer transcendência. Sua bíblia é a L’Express, revista semanal que ensina aos franceses modernos como transar a vida numa boa sem ser hippie nem, por outro lado, cair no lugar-comum das tradicionais famílias burguesas: naquelas páginas nasceriam expressões vazias como “qualidade de vida” e “exclusivo”.
“L’Express lhes oferecia todos os signos do conforto: os grossos roupões de banho, as desmistificações brilhantes, as praias da moda, a culinária exótica, os objetos úteis, as análises inteligentes, os segredos dos deuses, os cantinhos baratos, as diferentes opiniões, as ideias novas, os vestidinhos em conta, os pratos congelados, os detalhes da elegância, os escândalos de bom-tom, os conselhos de último minuto”.
Marxista à medula, Perec demonstra o quanto a linguagem rouba ao homem o auto-conhecimento: Jêrôme e Sylvie são meras gotas na lata de óleo que azeita as engrenagens do capitalismo. Georges Perec tinha pouco mais de 25 anos quando escreveu o livro, primeiro exemplar de uma linhagem de espantosos experimentos. Mas atenção: contrariando a blague de William Burroughs – “Romances experimentais são aqueles que não deram certo” –, o livro é uma delícia de leitura, flui flaubertianamente.
O autor judeu-francês põe linguagem e estrutura em crise em obras como Um Homem que Dorme (em que o protagonista adormecido é narrado na segunda pessoa do singular, “você”), A Vida Modo de Usar (romance enciclopédico em 99 capítulos que se cruzam como num quebra-cabeças) e invenções desafiadoras como La Disparition (história policial escrita sem o uso da vogal “e”, mais frequente da língua francesa) ou Les Revenentes (em que todas as palavras têm a vogal “e”). Não à toa entre os pares de Perec estavam escritores igualmente inventivos: ele pertenceu à OuLiPo, Oficina de Literatura Potencial, grupo formado, entre outros, por Raymond Queneau e Italo Calvino.
Em As Coisas, a radicalidade se dá na recusa à psicologia: o casalzinho é visto como um caso analisado com a lupa irônica do cientista social – embora o olhar de Perec não seja destituído de ternura. A abertura descreve em minúcia, e só através de objetos do desejo, como seria o amplo e sofisticado apartamento dos sonhos – se o casalzinho, ao invés, não vivesse enlatado num espaço de 35m2.
“Orgulhavam-se de ter pagado alguma coisa mais barato, de tê-la conseguido por dois tostões, por quase nada. Orgulhavam-se mais ainda (mas sempre se paga um pouco caro demais pelo prazer de pagar caro demais) de ter pagado muito caro.” Reconheceu alguém?
Mais à frente, asfixiados pelo fastio boêmio e pela falta de trabalho, Jerôme e Sylvie vão viver na Tunísia, onde descobrem uma realidade miserável que, ao contrário de provocar uma mudança no lifestyle, só os faz morrer de vontade de voltar a Paris, loucos por um emprego careta. “No mundo deles, era quase regra desejar sempre mais do que se podia comprar”, escreve Perec sobre esses charmosos exilados da sociedade de consumo, nossos irmãos.
