Luiz Gê-nio

Com a republicação da HQ Avenida Paulista, marco dos anos 80, o artista paulistano volta à melhor forma, abandona a longa reclusão dos quadrinhos, promete novo álbum, um site – e até uma revista

Cercado por aviões, navios, livros, discos e gatos, Luiz Gê está feliz: desenha. Parece um meninão que se diverte entre seus brinquedos – bem, está desenhando um trenzinho. Não qualquer trenzinho: é um trem tarado, prestes a passar por cima de uma linda garota presa aos dormentes. É o quadrinho final de Eu quero ser uma locomotiva, história de 1984 sobre um maquinista obcecado por sexo. Feito em dez minutos com a reles caneta do repórter, o desenho sugere que, aos 60 anos, Gê conserva a mão segura – e safada. Revela: está de volta aos quadrinhos. E mais: de volta ao passado. Em um momento suspenso, como o quadrinho em que o trem se encontra a um apito de triturar a mocinha.

Luiz Gê retorna à praça com um álbum lançado em dezembro de 1991, Avenida Paulista. A primeira versão foi publicada na extinta Revista Goodyear, uma das melhores customizadas do país, celeiro de craques como Humberto Werneck, Ivan Angelo, Otto Lara Resende, Ruy Castro. Para a edição especial de dezembro, a editora Rosangela Petta teve a ideia: e se encomendassem a Luiz Gê uma história sobre a Paulista, que completava 100 anos? Formado em arquitetura pela FAU/USP, obcecado pela história de São Paulo, Gê topou e mostrou uma gigantesca pesquisa sobre o tema. Em uma aposta ousada, a redação decidiu que a HQ ocuparia quase todo o especial.

Gê alugou um estúdio para o job (“que, em época de Plano Collor, foi muito bem pago e me salvou”, lembra), contratou três assistentes e em três meses intensos produziu as 66 assombrosas páginas intituladas Fragmentos completos. Um sucesso: “A revista recebeu 30 mil pedidos”, recorda. Há 20 anos disputadíssima em sebos, a HQ é agora relançada pela Companhia das Letras – Gê reescreveu a maioria dos textos, incluiu duas páginas de desenhos e um prefácio. É seu primeiro grande lançamento em muitos anos. Por que demorou tanto para voltar ao ambiente em que, dizem, é um dos mais geniais do país?

Como poucos, Gê dominou todos os espaços da comunicação visual. Fundou no começo dos 70 a revista de quadrinhos Balão, foi editor da masculina Status e da Circo, esta ao lado de Laerte – dos grandes êxitos do cartum nacional, vendia 40 mil exemplares mensais. Em seguida vieram os álbuns Macambúzios e sorumbáticos e Quadrinhos em fúria. Ligou-se à vanguarda paulistana – movimento liderado por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção – ao desenhar as HQs que inspiraram os melhores álbuns de Arrigo: Clara Crocodilo e Tubarões Voadores. Depois da Paulista publicou a antologia Território de bravos (1993) e trabalhos que expandiram as quatro linhas: a concepção de O homem dos crocodilos e a direção de Até que se apaguem os avisos luminosos, óperas do parceiro Arrigo. Gê foi roteirista do TV Colosso, programa infantil da Globo, do longa Cidade oculta, de Chico Botelho, desenhou a animação Santos-Dumont e adaptou o romance O Guarani à HQ – uma obra plural que ganhou abordagem semiótica em Análise Textual da História em Quadrinhos, de Antonio Pietroforte.

“Hal Foster, Winsor McCay, Hergé, Robert Crumb e Moebius”, responde Gê sobre os cinco grandes quadrinistas do século. São inspirações: de Foster (O Príncipe Valente), vem o apelo à ação; de McCay (Little Nemo), a fantasia lúdica; de Hergé (Tintin), o aventuresco; de Crumb, a voz irônica e o olhar urbano; de Moebius, a exploração da arquitetura ao estruturar narrativas fantásticas. Luiz Gê criou uma obra sem personagens fáceis, menos pop e mais cerebral que seus parceiros de geração, de quem se distanciou (só encontra Angeli na Folha de S.Paulo, não via Glauco há tempos quando soube que morreu, e a última vez que falou com Laerte já faz uns dois anos). Com ênfase na espacialidade, suas histórias vagam da crítica social à investigação psicanalítica, em situações nonsense que tangenciam o surrealismo, a ficção científica e um anti-realismo violento, em tom sempre mordaz.

Além das aventuras pelo audiovisual, Gê se deu bem na carreira acadêmica: hoje é doutor em comunicações e artes pela USP e dá aulas diárias de desenho industrial e quadrinhos no Mackenzie. Os alunos o veneram – mas também o temem, pelo rigor e jeitão carrancudo. De fato, uma das faces de Gê é reservada. Sorridente, impõe respeito quando fecha a cara. Diz que o contrato com a Companhia das Letras prevê, além do Avenida Paulista, um álbum inédito – e não diz mais do que isso. “O livro segue uma HQ que saiu no último número da Chiclete com Banana, a Viagem ao Centro do Universo. Vai ser uma ficção científica de 100 páginas. Fico angustiado com esse projeto, pra falar a verdade… Desenho menos do que deveria”, confessa.

É provável que a multiplicação de Gês em variados formatos lhe tenha nublado o foco na HQ. Além da academia, culpa o ecletismo pelo fato de ter a obra mal divulgada. “Acham que parei de desenhar, mas nesses anos eu fiz TV, cinema, teatro, ópera, show, animação, charge, ilustração, brinquedo… Criei até uma batalha naval!”, diz, chamando o repórter para conhecer sua bela frota esculpida em madeira. Os navios ficam em uma grande estante ao lado de uma espetacular coleção de aviõezinhos da Segunda Guerra, que, vigiados pelos três gatos (um deles, a manequim Borba Gata) fornecem ao apartamento de 180 m2 no edifício Copan uma atmosfera de loja de brinquedos. “Estou sempre bolando coisas malucas. Com a Borba Gata, quis fazer quadrinho tridimensional… O desenho te leva a cada coisa louca! Só que sobreviver é difícil, daí não conseguir me concentrar nas HQs”, se explica.

Ao lado da criatividade multifacetada, que o convida à dispersão – sem falar na voracidade com que se entrega à leitura de obras de filosofia, história e arte –, nos últimos vinte anos Gê teve crises pessoais. “Foi uma luta começar a fazer quadrinhos de novo… uma dificuldade foi se somando a outra, minha vida teve umas coisas muito complicadas…”, insinua, sem citar diretamente a falta de um estúdio onde se concentrar, a tendência à depressão, as separações amorosas e as atribulações com a filha Flora, que culminaram com sua morte em 2008. Sobre esses assuntos, o artista cala. “Não me pinte como coitadinho, hein?”, orienta.

Gê prefere focar a energia na crítica à feiúra de São Paulo. “Falta de imaginação em conservar a cidade? Mas a sociedade paulistana é conservadora – no mau sentido [risos]. Se deixa levar pela força do dinheiro, e a especulação imobiliária toma conta de tudo”, detona. “Na Paulista sobraram uns casarões sem-gracíssima – como o que virou um banco, onde as pessoas ficam tirando foto no Natal. O último casarão interessante é da década de 10, só que os herdeiros não o conservam, querem que o telhado desabe pra vender o terreno. Por que não fazer o Museu da Avenida Paulista ali?”, sugere, elogiando o caráter simbólico da via. “A cidade tem outros centros de negócios na Faria Lima e na Berrini, mas as manifestações políticas nascem mesmo é na Paulista”, lembra. Gê, que acaba de voltar de um giro por EUA e Portugal, é duro com o empobrecimento da arquitetura brasileira. “Nossas cidades são descuidadas, estamos ficando para trás de todas as metrópoles do mundo. Até Lisboa, cidade muito mais velha que São Paulo, tem edifícios mais modernos! Aqui temos a arquitetura de padaria desses neoclássicos, como aquela porcaria do Villa Europa, na Marginal. Bem que um avião podia se chocar ali!”, brinca.

Avenida Paulista, que traça a história da via mais importante da quarta maior cidade do mundo, retrata também a construção da memória dessa cidade – e, ainda, de sua fragmentação. Para combater o estilhaçamento da própria obra, Luiz Gê planeja criar um site onde exporá todas as suas publicações visuais. E sonha editar uma revista mensal, que teria cem páginas. O número zero é segredo. “Falta uma publicação de HQs que falem do Brasil. Quero muito fazer essa revista. Quadrinhos totalmente loucos… Não, não mostrei pra ninguém, nem vou te mostrar. Não vou ficar dando ideia pros outros!”, ri, antes de acolher outro pedido do repórter e fazer o que o mais deixa feliz: desenhar.

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*Perfil originalmente publicado no Suplemento Pernambuco de dezembro de 2011

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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