“Falar mal do turismo é o mesmo que reclamar do trânsito sentado no carro.”

Geoff Dyer, o escritor inglês que mistura relatos de viagem, memórias, ficção e ensaísmo em uma prosa deliciosamente inclassificável, tem seu primeiro romance lançado no Brasil. No Outlook de 6-8
Sabe quando você termina um livro e pensa “aí está um cara com quem eu gostaria de tomar uma cerveja”? Essa sensação relativamente rara (nem sempre a gente quer ser amigo de quem admira) é obtida a cada mergulho na prosa do inglês Geoff Dyer, 59. Autor dos inclassificáveis Ioga para quem não está nem aí e Instante contínuo – Uma história particular da fotografia (Companhia das Letras), que emendam lembranças de viagem, digressões sobre arte, literatura, música ou fotografia, iluminações estritamente pessoais – tudo com muito humor e aquela palavra que só existe na língua inglesa: wit, algo como charme, classe –, Dyer comparece agora em um romance de ficção, Jeff em Veneza / Morte em Varanasi (Intrínseca, trad. José Rubens Siqueira).
Se em Ioga Geoff afirmava que “tudo realmente aconteceu, mas algumas das coisas que aconteceram só aconteceram na minha cabeça; da mesma forma, todas as coisas que não aconteceram também não aconteceram lá“, neste romance a máxima pode ser invertida, mantendo o mesmo prazer na leitura. São duas narrativas que conversam por rimas, coincidências, paralelismos sutis e surpreendentes. O jornalista picareta Jeff Atman vai a Veneza cobrir a Bienal de artes. Geoff, ops, Jeff é um everyman do nosso tempo: o jornalista freelance, sofisticado, com belo texto e cheio de curiosidade sobre o mundo, cuja erudição aleatória o faz especialista em qualquer assunto cultural, mas sem foco suficiente para criar uma obra ou se levar a sério – ele prefere ir atrás de uma festa ou de um par de pernas do que lutar pelo jornalismo. A missão de Jeff em Veneza é simples: entrevistar a velha musa de um grande artista, fotografá-la e comprar o retrato que o artista fez da coroa para publicar em um perfil numa revista classuda de Londres. Mas não consegue nada disso: aceita um baseado da velha dama, atrapalha-se com o gravador e perde as melhores frases, não consegue convencê-la a vender o retrato e ainda por cima se esquece de fotografá-la. Só que Jeff é um sortudo e sua ligação sobrenatural com a serendipity faz com que conheça a misteriosa Laura, uma californiana sensacional, que, como ele, não tem celular, e sua viagem vira do avesso.
Em outro momento, menos erótico e mais espiritual, Jeff vai às margens do Ganges, onde, entre os cadáveres que bóiam no rio sagrado e a multidão que clama por oitocentos deuses, tem uma epifania suja e irreparável. É um livro de viagem, mas não é um livro de turismo. Autor também de ensaios literários e pelo menos um volume essencial sobre música, But Beautiful (segundo o pianista Keith Jarret, o melhor texto sobre jazz jamais escrito), Geoff vive em Londres, “mas sonha em um dia se mudar para a Califórnia“. A seguir, a entrevista com este viajante insatisfeito – Dyer mandou suas respostas por e-mail diretamente de um parque em Utah, EUA.
Pelo que se lê no Ioga, parece que você é um latebloomer [um talento que aparece tarde], um quarentão que age como uma criança impetuosa frente às descobertas nas viagens. Porém, aos 40 a maioria das pessoas relaxa no conformismo. Como praticar esse olho para a curiosidade sem perder a capacidade de divertir-se com sabedoria? Bem, realmente fiz coisas muito mais tarde do que o comum – mas e daí? Por exemplo, nunca tinha entrado num avião até os 22 anos. Acho que ser perpetuamente curioso me rejuvenesce. Porém, não estou tão seguro a respeito da minha relação futura com o marvilhamento ou a curiosidade. É possível que um dia eu simplesmente perca essa capacidade. Já a respeito de sabedoria, é como citei Blake no Ioga: “É encontrada em um mercado deserto, onde poucos vêm comprar“.
Você se vê como um caçador de epifanias? Não ativamente, mas estou receptivo a elas. As experiências mais intensas, como as que lembrei em Ioga, são o que fazem minha vida valer a pena. Mas também gosto da acolhedora e cotidiana harmonia doméstica. E amo a rotina, onde quer que esteja (estou em Zion, Utah, e há 15 minutos acabei de tomar meu café da manhã no simpático Mean Bean).
Que acha de críticos que classificam sua obra como “inclassificável”? Existe algum tipo de método para escrever assim? Lembra do filme Apocalypse Now? Martin Sheen escutando que “os métodos do Coronel Kurz se tornaram doentios“? Aí, quando ele chega no covil de Kurtz, diz que “não havia nenhum método ali“? Então: o mesmo acontece com as coisas que escrevo. Não há método. Começo a escrever e espero que em determinado ponto o material me dê chance de arranjá-lo de um jeito que aquilo gere uma maneira mais apropriada para uma experiência ou o assunto que estou discutindo.
O aumento exagerado do turismo alguma vez te incomodou? Não. É uma coisa que faz parte do nosso tempo. Falar mal do turismo é como reclamar do trânsito sentado no carro.
Qual seria sua dica para as pessoas agirem menos como turistas e mais como viajantes? Obviamente, quanto mais independente, melhor. O problema é que mesmo a independência é pré-planejada em algum grau, uma vez que para ser independente você tem que confiar nos guias de viagem, assim acaba indo aos lugares que eles te recomendam. Viajar por sua própria conta é sempre uma boa idéia (a não ser que algo dê errado, e aí rapidamente isso vai parecer uma péssima idéia). Agora, não há como fugir do consumismo turístico; a questão é simplesmente que nível de consumo ou de facilidades do desenvolvimento funcionam melhor para você e para o lugar onde você está. Por exemplo, existe um lugar muito bacana em Ibiza chamado Blue Marlin: um bar de beira da praia, que muitas pessoas consideram classudo. Mas eu o acho simplesmente terrível: minha idéia de bar bacana à beira-mar é nada mais que uma barraca hippie com umas luzinhas de fadas e música legal onde as pessoas se divertem. Acho que o segredo é aceitar que não dá pra voltar o relógio para trás. Pense… Algumas barracas abertas. É adorável, dificilmente alguém conhece esse lugar fantástico. Aí, um pouco mais de barracas. E então, umas barracas maiores. E então o primeiro lugar de alvenaria. E daí uma estrada que se conecta com a cidade que costumava ser sensacional dez anos atrás, mas hoje está completamente arruinada – e assim vai. Todo mundo que bebeu um drinque naquela barraca hippie lá atrás faz parte do processo todo.
Em alguns textos você menciona o uso de LSD, ecstasy ou maconha. Em que sentido essas drogas te ajudaram ou te atrapalharam, durante suas viagens? Minhas experiências com drogas foram de 90 a 100 por cento benéficas. Quase sempre elas me levaram a aditivar a experiência que eu estava tendo – embora deva dizer que faz muito tempo que não tomo LSD, e não estou com muita pressa de fazer isso de novo. Maconha eu considero particularmente útil, não somente para influir na experência – melhorando o que é bom ou piorando o que é ruim –, mas, geralmente, durante a escrita. Contudo, de novo, penso que essa resposta tenha de ser vista através da lente reversa de um telescópio… afinal, maconha é algo que, quanto mais velho fico, uso menos – cada vez menos a acho útil e estimulante.
Qual o lugar mais perigoso em que já esteve? Uma das lições mais adoráveis de viajar é que o mundo é um lugar surpreendentemente não-hostil e que as pessoas são muito legais em todo lugar – especialmente em lugares onde há grandes desníveis de riqueza. Não sou ingênuo: não estou dizendo que vou para Fallujah ou para a Chechênia abanando uma carteira cheia de dólares. Mas talvez eu não tenha ido a lugares realmente perigosos (mais à frente falo sobre isso…).
Qual o lugar ao mesmo tempo mais incrível e barato do mundo? Incrível? Dead Vlei, na Namíbia. Imagine: um leito de lago completamente seco, de um branco ofuscante, algumas árvores mortas no meio, rodeado por essas enormes dunas de um vermelho quase ocre. Leptis Magna, na Líbia, também estaria no topo dessa lista. Barato? Itália costumava ser bem barata, além da Índia e algumas partes da Ásia. Pensando bem, a Índia é a melhor combinação entre incrível e barato. E Varanasi realmente me deixou alucinado. Metade do meu último romance se passa lá.
Que lugar gostaria de conhecer muito, mas ainda não teve a chance? Queria ir para Montana. Venho desse superpopulado pedregulho no meio do Atlântico, então sempre sonhei em conhecer grandes espaços abertos. E também gostaria de ir à Ilha de Páscoa, mas ali estaria a quilômetros de qualquer lugar – mesmo quando você está quase perto está incrivelmente muito longe.
Já esteve no Brasil? Sim, no começo dos anos 90. Fui numa viagem bancada pelo British Council, com outros dois escritores, Louise de Berniere e Paul Bailey. Na nossa primeira noite, o cara do British Council nos dizia que o Rio era um lugar potencialmente perigoso etc etc e eu meio que dei uma ignorada nele – afinal, morei em Brixton, Inglaterra, e em Alphabet City, Nova York, nos anos 80. Então saímos para jantar. Paul e eu estávamos andando e de repente escutamos uma balbúrdia atrás de nós. Uns garotos de rua tentaram roubar Louis – apontando uma arma – e Louis deu uns tapas neles (aparentemente, a arma não tinha balas). Nessa altura, eu já pensava “Que merda, nós só saímos do hotel por quize minutos e já estamos sendo assaltados. Essa realmente é uma cidade perigosa!“. Mas, na real, nos divertimos muito depois. Também fomos para uma casa nas montanhas onde Elizabeth Bishop viveu um tempo, mas não conheci mais do que isso do país.
Tem algum objeto místico que gosta de levar nas viagens? Um relógio muito confiável. Costumava também levar um canivete suíço, mas na África aprendi a abrir uma garrafa usando uma outra garrafa, aí agora prefiro fazer assim. É incrivelmente útil e também – como eu gosto de pensar – uma habilidade sexualmente fascinante.
livrão!