Ficção homeopata

Em romance ora previsível ora inventivo, José Saramago

Mais de 200 anos de leituras no clique de Renato Parada: Saramago & Mindlin
Mais de 200 anos de leituras no clique de Renato Parada: Saramago & Mindlin
outra vez usa parábolas cristãs para – outra vez – atacar a Igreja

José Saramago no clic de Renato Parada. Why so serious?
José Saramago no clic de Renato Parada. Why so serious?

Em Caim, Saramago prossegue seu esporte favorito: jogar pedra na cruz. O sistemático ataque do Nobel de 87 anos à Igreja usa os ardis da crença cristã – mais ou menos como se um desafeto da axé music recorresse à harmonia da baianidade para enxovalhar o eufórico gênero. Uma ficção assim corre o risco de trazer ao leitor os mesmos resultados do princípio médico similia similibus curantur, o semelhante cura o semelhante: um efeito inócuo. Cristãos sairiam da leitura tão cristãos quanto antes, bem como os ateus. Mas mudar crenças talvez não seja exatamente o alvo de Saramago.

Sob a pena do neo-Voltaire, o assassino de Abel ganha vida de cinema: fantasia-se o que lhe teria acontecido depois que Deus o condena a “ser um vagabundo na terra”, ao mesmo tempo amaldiçoando quem ousasse matá-lo. Saramago rouba esse grão de enredo e inventa um périplo de Caim pelo Gênesis. Seu primeiro desafio é Lilith – na mitologia feminina, a fêmea primordial mesopotâmica, demônio que seduz e destrói os homens. Mas o primogênito de Adão tira Lilith de letra e, qual um Forrest Gump bíblico, sai pelo mundo cruzando gente como Abraão, Isaac, Moisés e , presenciando da queda da Torre de Babel à destruição de Sodoma e Gomorra.

As peripécias vão acumulando no homicida descrenças na justiça divina – até que se acende uma ira santa contra o Senhor. O encadeamento de encontros chega a parecer maneirismo, quando enfim Caim resolve dar uma força a Noé para erguer a arca; e aí Saramago tira da cartola uma solução tão engenhosa e engraçada que por si vale o romance. Batem cartão no livro as metáforas, parábolas e orações caudalosas, os nomes próprios em caixa baixa, os saborosos ditos populares que, no que dizem, parecem dizer o seu contrário graças à ironia, a pontuação quase monótona de tão exata, bem como a extraordinária capacidade fabulatória do autor de Evangelho segundo Jesus Cristo.

Anti-fundamentalismo
Curiosamente, ao narrar na onisciente terceira pessoa, Saramago maneja Caim como títere ao deus-dará e expõe a arbitrariedade do “rancoroso” Deus judaico-cristão – ao mesmo tempo em que a aceita. Em outras palavras, com este procedimento narrativo o escritor português se coloca na mesma posição do seu odiado Deus (ou deus, como prefere). Se ironia ou tiro no pé, ainda não decidi. De qualquer forma, nessa arrogância vislumbro o paradoxo “homeopático” do livro. E daí intuo que, segundo escreveu o amigo Umberto Eco no El País, o ateu autor esteja atrás de outro escalpo: “Saramago não se dirige contra Deus: seu desgosto se dirige contra as religiões (e por essa razão o atacam desde várias frentes: negar a Deus é algo que se concede a todo mundo, já polemizar com as religiões põe em discussão as estruturas sociais)“. O discurso se esclarece quando Saramago cutuca o arquiinimigo Bento XVI, como semana passada em Turim: “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas seu absoluto cinismo intelectual!“, detonou.

Ou seja – para além de um aparente materialismo fascinado pela mitologia cristã, mais seguro seria afirmar no Caim de Saramago uma profissão de fé no homem. Contudo, para não bater na mesma tecla no próximo livro (e esperamos que muitos venham ainda), talvez não fosse demasiada impertinência do resenhista sugerir que o nobre Nobel abandonasse o euro e o teocentrismo e dirigisse suas vírgulas e pontos a outros fundamentalismos tão obscurantistas quanto, do islamismo ao neopentecostalismo e outros ismos, como, sei lá, o nauseante credo do neoverdeamarelismo – em vez de malhar Deus, que tal dar uns croques no Lula, no Kaká e no Galvão Bueno?

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

3 pensamentos

  1. gente, agora vão querer dar palpites sobre os interesses do autor? deixe o saramago malhar quem ele bem quiser, o autor é o deus de sua própria obra, é ou não é?

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