Enquanto tolos & totós inimputáveis maltratam os teclados bancados por suas mamães, a caravana se garante, assinando tudo com o próprio nome. Daí que segue outra pensata-playground pra pagar a Germana das crianças. É a capa da Vida Simples do mês, edição Vaidade. Vai o texto original – mas sugiro ir às bancas conferir a matéria editada pelo Leandro Sarmatz, jornalista da rara estirpe editor-barbeiro, aquele que lida bem com a tesoura e faz seu texto se parecer mais com você mesmo. Bueno, findos alfinetes & confetes, eis o bolo; bom apetite.
A Era da Hipervaidade
Enquanto psiquiatras norte-americanos se assustam com o narcisismo dos adolescentes viciados em Facebook e filósofos franceses debatem a influência do comprimento das saias da primeira-dama sobre o zeitgeist, as revistas de celebridades exaltam: além das aparências, não há nada mais. E ainda bem
“Bacana teu óculos”, falei. Leves, classudos, num tom esportivamente escuro, cada lente com uma sombra que subia de baixo para cima, tornavam misterioso o olhar do amigo, um jovem editor. Comentei que nunca o tinha visto de óculos. Ele devolveu: “Pois é, mas eu estava com a vista cada vez mais cansada… até que fui ao oculista e ele me disse que precisava usar… Dois graus de miopia. Excesso de leitura. Fazer o quê…”, compungiu-se, o olhar vago, empurrando o par de lentes nariz acima com um charme intelectualmente sofrido. Mês depois, encontrei uma amiga cujo pai é oftalmologista. Entre anedota e outra, ela me contou que um curioso cliente do pai havia pedido um modelo de óculos sem grau. É, era ele mesmo – o editor.
Talvez influência da aura cerebral do meu amigo, o fato me lembrou o conto “O espelho”, de Machado de Assis (da coletânea Papéis avulsos). Uma das raras narrativas fantásticas do bruxo dos oclinhos, conta um estranho evento na vida de um oficial do exército. O sujeito havia recém obtido a posição de alferes, hoje segundo-tenente – pouco acima de cabo. Fascinado pelo uniforme, pegou a mania de ficar se namorando no belo espelho da fazenda de uma tia. O novo status logo lhe subiu ao quepe. Começou a destratar todo mundo, parentes, amigos, escravos. Certa vez, a tia precisou viajar, e o alferes viu-se a sós com os escravos – que não paravam de lhe puxar o saco, “Nhô alferes é muito bonito”…
Distraído, nem se tocou que os escravos tocaiavam uma fuga. E ficou só na fazenda. De repente, bateu uma opressão terrível. Uma sensação de morte. Caiu em depressão. Até que um dia, ao se mirar no famoso espelho, não conseguiu ver nada: “O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não se estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Aterrorizado, sem lograr refletir-se, o alferes resolveu cair fora da roça. Foi vestir o uniforme… mas, quando estava arrumado, reconheceu-se de novo. Só podia se ver ao espelho no papel de alferes: “Não era mais um autômato; era um ente animado”.
A moral machadiana é cristalina como as nebulosas lentes do óculos do meu amigo, e tão ridiculamente inofensiva quanto. Ridiculamente inofensiva, enfim, é a vaidade – essa propriedade vaga que todos nós temos em pelo menos dois graus, culpa, por certo, de nosso excessivo apreço à cultura. Parece fácil, mas vaidade, como parâmetro norteador desta época, é algo bastante volátil para definir. Vai longe o tempo em que ser vaidoso bastava para condenar um cidadão, alferes ou editor, ao inferno. No início da cristandade, a vaidade, sob a alcunha de vanglória, foi pecado capital; por volta de 1500, integrou a lista na forma de orgulho ou soberba; ainda é a mais diabólica contravenção para os cristãos ortodoxos; segue relacionada à Prostituta da Babilônia no Apocalipse.
Foi o que conduziu Lúcifer, mais belo dos anjos, do lado direito do Senhor aos portões do inferno, por rejeitar a imagem de Deus em benefício da própria. Vanitas vanitatum, omnia vanitatum, diz o Qohélet (Eclesiastes), sobre o sentido da vida – a tradução corrente é “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, porém o poeta e transdutor Haroldo de Campos prefere cercar a expressão “vacuidade” do hebraico ao termo “ilusão”. E, quando iniciamos o passeio pelo significado da palavra, este se adensa, ao mesmo tempo que esfumaça… Bem, estamos falando de aparências.
Pelo Dicionário Analógico da Língua Portuguesa de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, inexplicavelmente esgotado desde 1984, “vaidade” tem 71 substantivos afins, incluindo “ânsia incontida de despertar a admiração”, “parlapatonice”, “exibicionismo”, “pretensão”, “megalomania”, “egoísmo”, “inchaço”, e, claro, “narcisismo”. (Um dicionário analógico não traz sinônimos, e sim conceitos dispersos pelo campo semântico das palavras; este do lendário Santos Azevedo, mestre de Sergio Buarque de Hollanda, estrutura-se em exatos mil verbetes, começando em “existência” e terminando em “templo”; “vaidade” está entre “ostentação” e “orgulho”.)
Meu sinônimo favorito, o que ilumina nosso tempo, é “inchaço”. Até por conta da característica física da palavra – como se o vaidoso estivesse “cheio de si”. Mas que seria concretamente esse “si”? O ser, ou o nada? Batom, botox ou fotos bacanas no Facebook? Sapatos Gucci, um iPod novo ou um belo currículo na Casa do Saber? O cabelo do Justus, a peruca da Dilma, os pneus de Ronaldo, o bigode do Sarney, o retrato de Dorian Gray? A obsessão pela juventude dos sessentões vampirescos, a susanavieirização do mulherio? A vaidade sempre seria ruim, ou poderia ser um componente positivo da competitividade, um estímulo à auto-afirmação? Ou seria mesmo um vício – e um vício letal, matando tanto anônimos que tentam ficar lindos na mesa da lipoaspiração quanto os Michael Jacksons que lutam pela glória através de remédios contra a dor e horas de torturantes exercícios físicos?
Síndrome do Pequeno Imperador
Óbvio que, na sua psiquiatrização do cotidiano, os norte-americanos já tratam a vaidade como patologia. Em 2006, a psicóloga Kali H. Trzesniewski lançou um calhamaço de pesquisas feitas com adolescentes desde 1978, que originou o livro Generation Me: Why today’s Americans are more confident, assertive, entitled – and more miserable than ever before (Free Press), da também psicóloga Jean Twenge.
A pesquisadora crê que a autoconfiante geração nascida em 1980 – que passa horas entre o Facebook e o Myspace – é muito mais narcisista do que as gerações anteriores. A doutora Twenge trabalhou com o colega W. Keith Campbell no recém-lançado best-seller a analisar os miolos moles dos yankees: The Narcissism Epidemic – Living in the Age of Entitlement (Hardcover). Para a dupla, a coisa ficou preta e o espelho trincou – e o resultado, ora vejam, é a crise econômica.
Parece meio infame, tanto quanto o transtorno obsessivo narcisista [box abaixo]. Mas faz sentido – sobretudo para a alma norte-americana, sempre tão disposta a diagnosticar-se e tratar-se e partir para o próximo transtorno como se não houvesse amanhã, caso a doença mexa no bolso. Em entrevista à revista de educação US World Report, Campbell afirma ter comparado as pesquisas com jovens entre narcisistas e obesos: “os resultados foram bem semelhantes”, diz. Numa amostragem de 35 mil jovens, a dupla de psicólogos descobriu que 6% sofriam de transtorno obsessivo narcisista. Contudo, somente 3% das pessoas acima de 65 anos tinham esse transtorno. “Um dado a comprovar que estamos em uma epidemia fora de controle”, assevera o psicólogo.
Ele enumera quatro causas: a educação dos pais, a cultura de celebridades, a mídia e o crédito barato. “Muitos pais tratam seus filhos como reis”, critica. “Reality shows são altamente narcisistas, e supõe-se que são a vida real; neles, subentende-se que o narcisismo é algo normal.” Campbell é especialmente duro com a rede: “As pessoas nunca falam que lêem Guerra e paz, de Tolstói, no Myspace”, reflete. “Em vez disso, colocam fotos sensuais, a coleção de amigos, as músicas legais. Para piorar, crédito barato faz com que os jovens gastem para se parecerem melhores do que realmente são”, adiciona. “Eles têm coisas que não fizeram força nenhuma para pagar.”
Para a dupla de psicólogos, o fenômeno é mundial. “Na China, há a Síndrome do Pequeno Imperador [nos centros urbanos, cada família só pode ter um filho único, que se tornam miniditadores]. Na Escandinávia, estudos provam que nos jornais aumenta o número de palavras individualistas em detrimento de palavras comunitárias. Mas claro que os EUA são o número 1 em narcisismo. Não necessariamente em termos de performance, mas pensamos que somos os primeiros”, analisa Campbell – um tanto narcisisticamente, eu diria.
A burqa de Rubem Fonseca
Provavelmente, a valorização do discurso da auto-estima e a febre da auto-ajuda são culpadas dessa apoteose ao me-achismo. Porém, como depois da tempestade sempre vem a ambulância, conforme deduziria o pensador Vicente Matheus, imagino que daqui a alguns anos a loucura narcísica dará valor à auto-casca-de-banana, auto-epa, auto-fail: aprenderemos a puxar em público nosso próprio tapete. Como bem o faz esse grande vaidoso que é Woody Allen (vai dizer que deixar de ir receber um Oscar porque a data caía no mesmo dia em que ele toca com sua banda de jazz não é o extremo da vaidade?). Esse culto desenfreado ao amor-próprio ainda vai produzir coisas estranhas… em breve, abrirão inscrições para os Vaidosos Anônimos. Pode escrever.
Por enquanto, vamos vivendo a grande época da vaidade, o pecado favorito de Al Pacino em O advogado do diabo. A imodéstia saiu do armário: não à toa a burqa foi proibida na França pelo presidente Sarkozy (cuja soberba se estende dos saltos nos sapatos que o elevam à não menos digna de vaidade primeira-dama Carla Bruni). Mas… não seria também a burqa, ao esconder a figura feminina (ou os filhos de Michael Jackson), sinal de extrema vaidade? Não é cinismo: segundo o islã, o véu torna as mulheres atraentes porque sutilmente apela à sua vaidade. Não importa quão feia ou velha é a muçulmana: qualquer homem fica louco à mera visão de seus cabelos descobertos. Assim, sob seu modesto esconderijo, uma muçulmana é a mais desejável das criaturas.
Já as pobres ocidentais, agindo livres, encontrando-se com homens em situações prosaicas, acabam, pela rotina, se tornando sem graça. A não ser que sejam jovens e belas, cairão fatalmente sob o olhar indiferente dos pares – deixarão de ser tratadas como objeto de mistério para virarem meros objetos sexuais. O que me faz pensar na pretensa vaidade de sujeitos como Thomas Pynchon, JD Salinger, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Todos escritores que fogem de entrevistas e retratos como Madonna do anonimato: o véu que os cobre não os tornará mais valorizados?
Na outra ponta do estudo do narcisismo, o filósofo francês Gilles Lipovetsky faz uma abordagem ao mesmo tempo eufórica e catastrófica – espelho fiel do espírito da época, a que ele nomeia A Era do Vazio. O próprio texto de Lipovetsky é hiperbólico, contaminado pela velocidade e adrenalina do consumo. Uma escrita extremamente vaidosa, ciosa de si. Mas deliciosa, e crivada de teses brilhantes. Em O império do efêmero (Companhia das Letras), Lipovetsky faz uma leitura original da cultura contemporânea através da importância crescente da moda. Muito gaulesmente, diz que a moda – especificamente a florescida em Paris – condensa na idéia de individualidade os ideais da Revolução: liberdade, igualdade, fraternidade.
“A promoção das frivolidades só se pôde efetuar porque novas normas se impuseram, desqualificando o culto heróico de essência feudal e a moral cristã tradicional, que considera as frivolidades como signos do pecado do orgulho”, afirma. “Da idéia de altivez relativa à dignificação das coisas terrestres saiu o culto moderno da moda, uma das manifestações (…) da humanização do sublime.” O filósofo não separa a moda – e assim, o fascínio pelo Novo – da ideologia individualista, do culto ao bem-estar, aos gozos materiais, ao desejo de liberdade, à vontade de enfraquecer a autoridade e as coações morais, ao triunfo da ideologia do prazer.
No entanto, ele lembra que a busca dos valores individuais trazem um fenômeno mais estranho que o estudado pelos senhores psicólogos acima: a “solidão em massa” refletida no número cada vez maior de suicídios. “A era da moda consumada é inseparável da fratura na comunidade e do déficit de comunicação: as pessoas se queixam de não serem compreendidas ou ouvidas, de não saberem se exprimir” – uma festa de autistas que lembra um pouco uma rave impulsionada por ecstasy, ou uma sessão furibunda de Twitter movida a banda larga.
Lipovetsky sugere que vivemos um segundo momento da Era do Vazio, em que a “a busca da riqueza não tem nenhum objetivo senão excitar admiração ou inveja”. Nesse mundo ultracompetitivo, o Outro só faz sentido se viabilizar o sucesso do Eu. No sombrio e triunfante A Era do Vazio (Manole), Lipovetsky aproxima os conceitos de vacuidade e vaidade, vazio e Narciso: “Que outra imagem é melhor para significar a emergência de individualismo na sensibilidade psicológica, centrada sobre a realização emocional de si mesma, ávida de juventude, de esportes, de ritmo? (…) O neonarcisismo é psicologia pop: a expressão sem retoques, a prioridade do ato de comunicação sobre a natureza do comunicado, a indiferença em relação aos conteúdos, a assimilação lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade e sem público, o remetente transformado em seu principal destinatário”.
Em uma imagem: o alferes satisfeito por reencontrar sua identidade no espelho, conforme Machado previa há mais de cem anos. Ou meu elegante amigo observando-me superior por trás das lentes falsas, feliz da vida por enganar a si mesmo.
SE ENXERGA
Você precisa estar no centro das atenções (médicas) se…
1 Possui senso grandioso de auto-importância (supervaloriza realizações e talentos, espera ser reconhecido como superior sem que tenha feito ações à altura)
2 Preocupa-se com fantasias de sucesso, poder, brilho, beleza ou amor ideal ilimitados
3 Acredita que é “especial” e único e que só pode ser compreendido por outras pessoas (ou instituições) especiais ou de status elevado
4 Precisa de admiração excessiva
5 Sente-se em uma posição de possuir direitos, isto é, tem expectativas irrazoáveis de receber tratamento favorável ou de aceitação automática das duas expectativas
6 Aproveita-se de relacionamentos interpessoais; isto é, manipula os demais para atingir seus próprios objetivos
7 Não demonstra empatia; não tem disposição para reconhecer os sentimentos e as necessidades alheias ou identificar-se com isso
8 Muitas vezes inveja os demais ou acredita que os outros o invejam
9 Demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes
10 Leu este teste observando-se ao espelho (ops, esse é falso, brincadeira…)
Fonte: DSM-IV, Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, ©American Psychiatric Association
gostoso!
o texto, lógico.
beijo,
tt
É sempre uma delícia acompanhar sua escrita. Mas acho que você não precisa ficar com essas indiretas, dando ouvidos a picuinhas. Fiquemos na literatura, darling, deixa os chatos pra lá.
beijo, saudade
Raffa
ótimo! me vi no teu texto, kkkk
bjks
giu
“o véu que os cobre não os tornará mais valorizados?”
Claro.
acho que conheço esse editor…
Sua matéria ta mto foda, o que me fez ir a banca, comprar a revista e conferir a elogiada edição. Mas o que salva da revista é só essa matéria a meu ver… Prefiro o blog. Parabéns, curto mto sua escrita.
Curioso, gostei do seu texto, mas logo abaixo tem um anúncio de uma clínica de cirurgia plástica. Até tu Brutus? A busca incansável pela beleza: como escapar?
bj