Cildo Meireles, o primeiro artista brasileiro a ter uma retrospectiva na Tate Modern londrina fala de relâmpagos, sorte, discos voadores, pede a dissolução da Bienal de São Paulo e é tema de documentário que ganha sessão de gala no Festival do Rio de Janeiro. Perfil (não-publicado) para a revista Serafina
Cildo Meirelles é um extraterrestre cordial. Repara. Comecemos nos fiando nas aparências – o único porto seguro para pessoas sensatas. Ele usa roupas comuns. Comuns demais. Altura mediana, barriguinha incipiente. Careca, tem as orelhas um pouco pensas pros lados, os olhos um tanto tristes; neles, às vezes pousa um relâmpago. Falaremos muito de relâmpagos. Os lábios grossos fazem movimentos estranhos a cada súbita reviravolta nas idéias. E decididamente suas idéias são de outro planeta.
Não à toa um de seus filhos é batizado Orson: o tributo é menos ao diretor de Cidadão Kane que ao célebre narrador radiofônico de A guerra dos mundos, de HG Wells, feito que ultrapassou as fronteiras entre realidade e ficção – muita gente entrou em pânico ao acreditar que a Terra estava mesmo sendo invadida por marcianos. Ao observar Cildo passeando por Botafogo suavemente, sub-repticiamente, enquanto entabula de leve uma conversa sobre arte conceitual ou perde o olhar em um par de tênis jogados nos fios dos postes, talvez pensando em uma futura obra, você não duvida – a Terra já é habitada por extraterrestres.
O próprio confirma. Em duas ocasiões o passeio de um disco-voador brilhou em suas retinas. “Na primeira vez, em 1970, morava no Jardim Botânico, a varanda do meu apartamento dava pro Cristo. Um dia eu tava saindo, cinco da tarde, vi um objeto luminoso ali perto do Corcovado – achei que era um Boeing pegando fogo. Aí a coisa sumiu. Só eu vi isso”, lembra este carioca de 61 anos.
“Na segunda, todo mundo viu, menos eu. Quando morava em Santa Teresa, descia de bonde, pegava um ônibus e ia parar em Niterói, onde tomava um café olhando aquela paisagem que cartão postal nenhum resume. No percurso, anotava idéias… Perto da Presidente Vargas, todo mundo desce e fica apontando pro céu. Nem me toquei. Já em Niterói, perguntei pro motorista o que tinha sido aquilo, ele falou meio mole: ‘ah, foi um disco voador aí’” ri o artista, para quem a aparição de OVNIs parece algo tão prosaico quanto uma média com pão com manteiga – acepipe sem o qual Cildo não consegue começar um dia, e sobre cuja feitura ele consegue discorrer por longos minutos.

Um bom papo furado faz sua alegria. Grande conversador, Cildo Meireles papeou com o Impostor por quatro horas em seu ateliê, em Botafogo, “a coisa mais cara que já comprei”, diz ele – cujas obras Zero cruzeiro e Zero dollar ele não vende nem por todo o dinheiro do mundo. Questão de coerência: os trabalhos brincam com a relação entre valores e coisas, e, se postos à venda, perderiam o valor icônico. O mesmo ocorre com as célebres notas carimbadas com as frases “Yankees Go Home” e “Quem Matou Herzog?”, também dos anos 1970, cuja conotação política acabou sombreando toda a obra deste artista completamente avesso a partidos, movimentos ou aglomerações.
“Em artes plásticas, cada relâmpago novo te permite usar materiais, procedimentos, conteúdos e gramáticas diferentes. Por isso nunca restringi meu trabalho à leitura política. Instintivamente, procurei trabalhar sob esta norma. A política tradicional no Brasil é lamentável, nunca me filiei a nada. E sempre tendi a privilegiar o indivíduo em minhas obras. Só em futebol é que eu suportava o convívio do jogo”, conta ele, que, torcedor do Fluminense, quando adolescente chegou a treinar no Flamengo e no Botafogo como meia-direita.
“Nunca gostei de ir a festa em grupo, não curto mesas grandes, aglomerações de gente… Minha posição política sempre foi à parte dessa coisa de espírito de corpo, de confraria, de movimento. Olha, se serve mais aí…”, oferece gentil, apontando a garrafa de uísque, um pacote de amendoins e um cacho de banana, aperitivos frugais para um sábado ensolarado no Rio de Janeiro. E acende outro cigarro – serão onze ao longo da entrevista. “Dá câncer, né? Tem vezes que eu paro seis meses, aí volto. Disciplina é difícil, né?”

Sorte e azar S/A
A aversão à rotina fez com que Cildo fugisse da faculdade. Em casa perdia-se na bela biblioteca do pai, Francisco Meirelles – um dos primeiros antrópologos a denunciar os massacres indígenas no Norte, fato marcante na obra do artista, que morou 10 anos no Pará (o irmão, de Cildo, Apoena, ex-presidente da Funai, foi assassinado em 2004; o crime, nunca esclarecido, aponta para as investigações que Apoena fazia sobre chacinas promovidas por garimpeiros). Mais tarde, vivendo em Brasília, Cildo estudou com o artista peruano Félix Barrenechea. Com somente 19 anos fez a primeira exposição individual, no MAM baiano. Passou por duas escolas de arte no Rio, em um total de 5 meses de estudo.
“Pra mim sempre foi complicada essa coisa de ensino da arte. O que as pessoas esperam de você, como artista, deveria ser o que não existe. E o que não existe você não pode instrumentalizar. ‘Artista plástico profissional’ é uma contradição em termos”, afirma. Um ano desliza em um ateliê em Paraty, e, em 1971, Cildo vai a Nova York, onde mora até 1973, seu “período rimbaudiano”, como diz – em que trabalha com pintura em veludo com uns jamaicanos mucho locos e como mensageiro de bike, reunindo os trocos necessários para freqüentar museus e galerias, ver documentários de boxe e filmes de arte, comer empadinhas macrobióticas e participar de festas ao lado de gente como Hélio Oiticica e Júlio Bressane.
A nascente Brasília teve um impacto essencial em sua obra. “Imagina você ser menino e ver um pneu de 4 metros. Jogar bola em um lugar que virou um lago imenso. Entrar em um cano e sair quilômetros depois”, conta ele no belo documentário Cildo, de Gustavo Rosa de Moura. Viver em uma cidade em conflito de escala entre prédios monumentais e céu onipresente lhe deu a permanente sensação liliputiana. O jogo entre tamanhos e escalas vai aparecer em Cruzeiro do Sul (um cubo de madeira de 9mm cercado por 200 m de nada), ou Deserto (um anel de ouro em formato de pirâmide, de cujo topo, em safira transparente, se vê um único grão de areia), obras dos anos 70, e na recente Glovetrotter – Admiráveis mundos novos, de 1991 (várias bolas, de diferentes tamanhos, envoltas por uma malha de aço, semelhando planetas que caíram numa rede de pescador). Isso sem falar na impressionante Babel, torre feita de rádios – cada um sintonizado numa diferente estação – cuja inspiração Cildo teve passeando pelas barracas de eletrônicos usados em Portobello Road, Londres.

Em outra dimensão, menos física que metafísica, a arte de Cildo tem muito a ver com o arbitrário – e este, sua ligação com a sorte. Em sua nada glamourosa mesa de trabalho é emoldurada pelo inestimável Zero Dollar, por um calendário vagabundo e dois relógios chineses, cada um errado em uma hora – ambos eram acompanhados por mais 998 relógios na instalação Fontes –, este carioca pouco afeito a religiosidade reflete ser impossível não acreditar em sorte, né. “Me acontecem coisas“, diz. “Um tempo atrás eu tava parado na esquina da Voluntários com a Real Grandeza. De repente eu falei para a Caherine [Bompuis, sua mulher, pesquisadora de arte], ‘vamos ali comer um doce’. Dois passos depois chega um ônibus, avança um sinal e afunda inteiramente bem onde a gente estava!… Outro lance curioso é o ritual da folha caída. Em determinados momentos, quando preciso de uma confirmação de algo, deixo cair uma folha oficio. Tem vezes que ela cai assim de pé. Aconteceu várias vezes, sei que é raríssimo, pela probabilidade. Já rolou até em lugar onde venta… às vezes não estou nem pensando nisso e acontece.”
Pelo fim da Bienal
Observar o mundo de outro ponto de vista também é imagem recorrente na vida de quem tinha 21 anos ao presenciar o homem pisar na Lua. Contudo o ângulo favorito de Cildo não é o dos astronautas Armstrong e Aldrin, e sim o de Michael Collins – o que ficou na nave, enquanto os colegas passeavam pelo satélite e eram vistos por quase toda a humanidade. “Este é o lugar do artista”, diz.
Mesmo entre seus pares Cildo é um ET. Aquele palavrório que acompanha toda arte conceitual – há obras que necessitam de bulas para serem compreendidas, experenciadas ou sentidas – não tem vez na arte cildiana. Ao contrário, ele retira a arte conceitual de seu cabecismo através do humor. Uma obra como Babel é autoexplicativa: uma torre circular formada por rádios dos mais variados tipos, cada um ligado em uma estação diversa. Simples, né? Ele conta como um amigo o comoveu ao contar que, na cadeia, criava obras de arte com caixas de fósforo. “Aquilo me deu o relâmpago de que a arte conceitual é a mais democrática das artes. Basta ter uma idéia!”, ensina.
Os bem-humorados relâmpagos de Cildo têm ganhado o planeta. Após o documentário de Rosa de Moura, que ganha sessão de gala no Festival do Rio neste próximo domingo, em outubro as idéias surgem em “voz escrita” em um livro de entrevistas organizadas por Felipe Scovino para a editora Azougue, na série Encontros. No início de 2009 Cildo foi o primeiro artista brasileiro a ganhar retrospectiva na Tate Modern, em Londres. Carimbou os passaportes de suas obras monumentais na Documenta de Kassel, nas Bienais de Veneza (nesta de 2009 e em outras três), Sidney, Johannesburg e Paris. Mesmo com todo o sucesso internacional, o chateia saber que não teve exposição do mesmo porte no Brasil. Numa das raras ocasiões em que se mostra contrariado, ao abordar o assunto Bienal do Vazio (em 2008, a organização da Bienal deixou um andar inteiro desabitado), sugere acabar com o modelo paulistano.
“O vazio legitimou uma incompetência administrativa. Era melhor ter deixado a Bienal em branco mesmo. Numa cidade como 20 milhões de habitantes como São Paulo, não tem sentido fazer uma Bienal com 240 artistas durante 2 meses. Seria muito mais produtivo pegar os mesmos 240 e fazer 10 exposições por mês durante 2 anos. Isso dinamizaria a cena artística, tornaria a coisa produtiva pro estudante, haveria workshops. A gente transformaria o evento em programa, usando o mesmo espaço da Bienal, e até fora da Bienal, integrando a comunidade. Bom, mas talvez com essa idéia a gente simplesmente dissolveria a Bienal…”, ri Cildo, enquanto fecha o ateliê com uma constelação de chaves. Ele põe o repórter no táxi e sai andando devagar ao lado da mulher Catherine, espiando vagamente o céu brilhante que ressurge entre nuvens, árvores e fios de postes. Talvez fosse efeito do uísque matutino… mas o artista parece mesmo caminhar a meio centímetro do chão.
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Cildo, dirigido por Gustavo Rosa de Moura. Sessão de Gala: 27 de setembro [domingo] às 17h15, Odeon Petrobras, Praça Mahatma Gandhi n°7 Cinelândia, RSVP cildo@matizar.com.br. Sessões: 29 de setembro [terça-feira] às 13h50, Vivo Gávea 1, 29 de setembro [terça-feira] às 18h_ Vivo Gávea 3, 01 de outubro [quinta-feira] às 19h, Cinema Nosso [Lapa], 03 de outubro [sábado] às 18h, Ponto Cine Guadalupe.
por favor, estou precisando entrar em contato com cildo meireles, pois faremos uma homenagem a ele junto a caixa economica federal. tem algum contato, telefone, email que eu consiga entrar em contato com ele.
muito obrigada