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Esse viveu
Esse viveu

Escrita depois do diagnóstico de câncer terminal, autobiografia de J. G. Ballard joga luz sobre uma vida tão extraordinária quanto a obra

Ninguém num romance de Virginia Woolf jamais encheu o tanque do carro
Ninguém num romance de Virginia Woolf jamais encheu o tanque do carro

Biografias de escritores costumam ser um tanto chatas. A não ser no caso de inquietos como Jack London, Joseph Conrad ou Paulo Leminski, aventuras e agruras de um escritor se passam estritamente no plano psicológico. Quanto a autobiografias, bem… é preciso sempre ficar atento à mitomania: afinal, são escritores, seres por natureza inconfiáveis. Mas exagero passa longe deste Milagres da vida (Companhia das Letras, 247 págs.), livro que o inglês Ballard finalizou pouco antes de morrer de câncer de próstata, em 2008.

“Com uma vida dessas, até eu escrevia” é a frase que ecoa o tempo todo durante a leitura: Ballard experienciou fatos tão raros que simplesmente contá-los sem ênfase já os torna incríveis. Ao final do livro, o leitor percebe uma curiosa sensação de flutuação, trazida pelo violento contraste entre a serenidade com que é narrada a biografia e o estranhamento que esta lhe causa – uma assombração que se traduz em obras de impacto como Crash.

O pai de Ballard era um industrial idealista, um químico intelectual que gostava de HG Wells e abriu uma filial de uma fábrica de estamparias em Shangai. Nascido na China, Ballard passou a infância em uma mansão britânica servida por meia-dúzia de empregados chineses e um par de babás russas – uma família ocidental burguesa, exceção em uma metrópole vibrante, de cinco milhões de pessoas, em que somente 50 mil não eram chinesas, população majoratoriamente miserável. “Shangai me impressionava como um lugar mágico (…). Creio que grande parte da minha ficção é uma tentativa de evocar essas coisas todas, por outro meio que não a memória.”

Entre tantas cenas memoráveis, Ballard descreve a sensação de irrealidade que o tomou quando foi, com o pai, pedalar até um cassino – um nada prosaico passeio, afinal a cidade havia sido recém-tomada pelos japoneses. Quando chegaram, viram o cassino completamente dilapidado, e o outrora glorioso fausto ocidental se convertera em lixo: nisso Ballard intuía “a sensação de que a própria realidade era um cenário que podia ser desmontado a qualquer momento, e que, por mais magnífico que parecesse, podia ser varrido a qualquer momento e atirado na lata de lixo do passado“, simbolismo que será determinante em sua ficção.

Então o Japão declarou guerra à China, e a boa vida na mansão foi subitamente deletada. A família Ballard foi levada a um campo de refugiados ocidentais, Lunghia, e ali permaneceu até o fim da guerra – nos últimos meses, a fome, a morte e a doença eram constantes nessa prisão. Apesar disso, Ballard se refere aos anos como interno como uma época feliz: “Do que mais gostava era que qualquer pessoa, de qualquer idade, podia conversar com qualquer um“. Ao contrário da infância burguesa resguardada pelos passeios no Packard familiar e raras incursões de bicicleta pela esquisita realidade da “mais pervertida das cidades“, no campo de Lunghua o menino se sentiu absolutamente livre.

Por este motivo, em seu romance O império do sol (BestBooks) ele preferiu internar o pequeno James sozinho no campo de refugiados, vivendo longe dos pais. Assim se sentia: humilhados pela inutilidade social com que a guerra havia os rebaixado – o pai mal conseguia uma porção de chá preto para a esposa, que, deprimida, não saía da janela, e chegou a ver o filho se alimentando de larvas –, os pais de Ballard deixaram que o garoto se virasse como quisesse, travando contato com bandidos, militares, garotas e excluídos em geral: “Toda uma gama de adultos que a minha vida anterior em Shanghai mantinha longe de mim“.

Curiosamente, ao contrário do romance – esplendidamente adaptado por Spielberg, com Christian “Batman” Bale como protagonista –, Ballard nunca esteve tão próximo dos pais como quando viveu em um miserável quarto.

Corta para 20 anos depois, quando Ballard se converteu em um verdadeiro “pãe” – com a morte da primeira esposa, é forçado a cuidar dos três filhos, os tais “milagres da vida” do título. Ao contrário da mansão na Chinesa, Ballard viveu em sua casa de subúrbio em Shepperton até o fim da vida, cuidando de tudo praticamente sozinho, sem babás ou parentes para lhe dar uma mão. Uma experiência natural nos anos 00, mas ainda rara na Inglaterra dos 60 – e a meiga “fofura” com que o escritor fala dos filhos pode impressionar um leitor que espere do narrador das perversidades sexuais de Crash uma personalidade bizarra.

Ballard era um sujeito careta, pouco afeito a aventuras, viagens, drogas psicodélicas ou mesmo álcool, caseiro, que logo engatou um segundo e longo casamento. Talvez o contraste entre as singulares infância e adolescência e uma rotina regrada expliquem a limpidez com que o escritor descreve o horror do futuro suburbanamente vazio de O reino do amanhã.

Antes dessa vivência “normal”, contudo, Ballard teve um vislumbre de outra vida possível: foi piloto da Royal Air Force. O menino apaixonado pelos kamikazes que sobrevoavam Shanghai (no filme de Spielberg, uma das seqüências mais belas é do jovem James fantasiando voar num Zero) se tornou de fato piloto de caça. Por pouco tempo: para preencher o tédio do treinamento no desolado Canadá, Ballard viciou-se na leitura de revistas de ficção-científica. Nessas desprezadas narrativas, ele intuiu estar um campo inexplorado pela ficção contemporânea adulta, “uma forma de ficção que realmente tratava do tempo presente, e com freqüência era tão elíptica e ambígua como a ficção de Kafka (…) Ninguém num romance de Virginia Woolf jamais encheu o tanque do carro (…) A chamada ‘ficção séria’ só tratavam dela própria (…), e era a sociedade de consumo que poderia fazer um passeio a outro Auschwitz ou outra Hiroshima que a ficção científica estava explorando“.

Ballard preferiu então focar no “espaço interior” da ficção científica. Com A exposição de atrocidades (coleção de contos de 1966, sem tradução no Brasil), Ballard atinge esse espaço entre os horrores da guerra passada e os horrores do cotidiano futuro. Mais tarde, realiza uma polêmica exposição de carros acidentados, por onde desfilam modelos nuas, “um teste psicológico disfarçado de arte”. Logo em seguida, escreverá Crash, que o coloca como um dos autores mais importantes da ficção inglesa do século 20. O resto é história – muitas, impossíveis de condensar em uma mera resenha, mas que Ballard resumiu em um livro agradavelmente perturbador.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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