Trabalhadores felizes, uni-vos
Em A chave-estrela, o escritor italiano Primo Levi narra os doze trabalhos de um Hércules moderno: um operário que pensa e ama o próprio labor

Primo Levi é um CDF. O leitor perdoe o linguajar grosso, a vida é dura – mas não parece ter pesado para este químico que levava seu trampo na flauta. De ascendência judaica, tendo vivido quase a vida toda em Turim, do nascimento em 1919 à morte em 1987, Levi era um apaixonado pelo trabalho. Em Auschwitz, onde “descolou” um estágio de um ano (usou a temporada no inferno como laboratório criativo para seu excepcional É isto um homem?), encantava-se por um pedreiro que mesmo no campo de concentração orgulhava-se da labuta. Sísifo pervertido, posto que o pedreiro logo seria aposentado por invalidez social pelos patrões e padrões nazistas:
“A necessidade do lavoro ben fatto é tão forte que induz as pessoas a fazer ‘direito’ até mesmo o trabalho de escravo. O pedreiro italiano que salvou minha vida (…) odiava os nazistas (…), mas fazia paredes sólidas e a prumo, não por obediência, mas por dignidade profissional”, conta Levi a Philip Roth na saborosa entrevista de Entre nós (Companhia das Letras, trad. Paulo Henriques Britto).
Em A chave-estrela (Cia das Letras, 172 págs., trad. Maurício Santana Dias), Levi aprofunda, flexiona, adensa e destila sua concepção de dignidade profissional. Curioso que a forma do romance se aproxime à da conversa entre Levi e Roth: é estruturado na arte da entrevista. A chave-estrela é uma coleção de vários encontros entre o químico-intelectual e Faussone, um especialista na montagem de grandes estruturas pesadas.
A cada capítulo, Faussone, um quarentão comum, meio careca, meio de esquerda, discorre sobre suas incríveis aventuras pelo mundo montando pontes, torres e barragens enquanto coleciona namoradas e foge de qualquer compromisso sério. Entusiasma-nos seu amor incondicional à lida e sua autoconsciência quase inverossímil – no que lembra o Riobaldo de Grande sertão: veredas. Contudo, a originalidade do personagem criado por Levi talvez resida no perfil deste operário como último romântico. Não à toa, a epígrafe que encerra o livro vem emprestada de Joseph Conrad – aclarando sua tese do operário como o marinheiro do século 20.
Assim como Faussone se recusa ser encoleirado por uma dama, também escapa de carteiras assinadas. Ele é dono de seu próprio saber: aluga-o para um patrão, porém jamais o vende – a síntese do profissional liberal, o operário globetrotter como pistoleiro de aluguel: o sujeito que vai lá, faz seu serviço, cobra seu ganho e, um-dois, sumiu na neblina. Não há em A chave-estrela a noção de mecanicidade do trabalho, da estupidez do apertador de parafusos ou teclas, do babaovo cumpridor de ordens, do zé-mané que equilibra o batente entre o cafezinho e o computador.
Aqui, o trabalhador como profeta do previsível é quase um oxímoro: Faussone é um deslumbrado com as possibilidades do fazer e as requisita de modo autoral, aproximando a idéia da arte do conceito da técnica – quando o homem, por fazedor, já é um demiurgo de sua própria vida.
O trabalho liberta
Como um fazer ainda não fragmentado e dissolvido na lógica capitalista, o trabalho para Faussone concretiza-se via narrativa. Assim, cada canteiro de obras assume proporções épicas. Os doze capítulos desse Hércules moderno são minuciosas descrições de suas jornadas levantando obras colossais, entre Índia, Alaska, África, EUA, Europa, sempre a carregar a chave-estrela “pendurada na cintura – porque ela é para nós como a espada para os cavaleiros de antigamente”. Mesmo que hora ou outra o labor de Faussone pareça enfadonho, a descrição ligeira e colorida de Levi tranforma metais pesados em seres expressivos: “Era como se, sob aquele sopro de vento, também a ponte estivesse despertando”.
Humanizando torres, diques e pontes, por todo o livro são trabalhadas analogias entre o ofício de domar a palavra e o exercício de moldar a química da matéria, no que ecoa muitas vezes João Cabral ao rimar poesia e metalurgia, verso e ferro – “domo-o, dobro-o, até o onde quero”.
O apaixonado Faussone confessa gostar de revisitar uma obra que ajudou a construir só para contemplá-la: “Se faço um trabalho (…), arranjo um jeito de ir revê-lo de vez em quando”. Suas favoritas são as pontes, “o inverso das fronteiras, e é nas fronteiras que acontecem as guerras”. A estupidez bélica é pano de fundo, por contraste, à nobreza do trabalho – e ressoa, Levi não nos deixa esquecer, o absurdo lema de Auschwitz, “O trabalho liberta”. A principal tarefa do escritor italiano é recuperar a inocência perdida do trabalho, corrompida pelo sarcasmo nazista.
Conforme dito, Levi era um CDF que amava se ocupar – no caso, como químico; isso o distancia de qualquer defensor pelo Trabalho como entidade abstrata – “os que mais falam são justamente os que nunca o experimentaram”, afirma Levi a certa altura, e seria ocioso para esta resenha relacionar à sua ironia o canteiro de obras que passam pelo Manifesto Comunista às trapalhadas de algum loquaz companheiro petista.
“Minha militanza na fábrica – o serviço compulsório e honrado que prestei lá – me manteve em contato com o mundo das coisas reais”, confessa a Philip Roth, pouco antes de tecer a genealogia dos escritores-químicos, ao lado de Sherwood Anderson, que largou fábrica e família para se tornar escritor, e Italo Svevo, que tomou aulas com James Joyce justamente para poder se comunicar com os clientes da fábrica em que trabalhava.
Ao dialogar o fazer intelectual do ganha-pão operário, colocando o narrador letrado abaixo do personagem artesão, Levi desmistifica o labor da literatura e eleva qualquer simples batente ao patamar da invenção artística. Em tempos de desemprego global a taxas oficiais de 7%, A chave-estrela devolve às discussões trabalhistas um conceito tão revolucionário e nobre quanto ausente das áridas estatísticas – o fazer enquanto prazer.
TRECHO
Ficamos de acordo quanto às coisas boas que temos em comum. Sobre a vantagem de poder medir-se, de não depender de outros para medir-se, de poder espelhar-se na própria obra. Sobre o prazer de ver crescer sua criatura, placa sobre placa, parafuso após parafuso, sólida, necessária, simétrica e adaptada ao escopo, e, depois de terminada, de contemplá-la e pensar que talvez viva mais do que você e talvez sirva a alguém que você não conhece e que não o conhece. Talvez possa voltar a vê-la quando estiver velho, e lhe parecerá bela, e no fim não importa se parece bela somente a você, e pode dizer a si mesmo ‘talvez um outro não tivesse conseguido’.
esse trecho do “entre nós”, que você postou, me deu ainda mais vontade de ler o livro. ainda bem que em breve ele chegará nas minhas mãos. abração, bressane.