O milagre exige
Que via imaginarei
para seguir flutuando
& atravessar a selva sempre crescente
do grosseiro rio
O milagre exige
De meus ossos flor
& de minha mente frutos
Neste crepúsculo preciso
em que a nuca do sol
vai de focinho
O ouro sepulta a cinza
a praga ao mar
a magia a toda pressa
*
Poema de Mario Santiago Papasquiaro em Labirinto, seleta de poemas do companheiro de Roberto Bolaño no movimento Infra-Realismo [ou Real-Visceralismo, conforme Arturo Belano, Bolaño, e Ulises Lima, Papasquiaro, n’Os detetives selvagens].
Emocionante ler um congênere mexicano de Roberto Piva ou Herberto Helder, um beatnik surrealista cujas idéias fora de lugar são pela primeira vez publicadas no Brasil. A ousadia é da Dulcinéia Catadora, e a tradução, de Beatriz Bajo, que recém lançaram a antologia na Mercearia São Pedro, onde o livro cartonero pode ser achado [também vende-se no Sebo do Bac]. Mais um:
*
Devaneio
Já estive aqui / sem ter estado
(nas cordilheiras desta serenidade)
(dentro deste relógio de luzes que não estorvam)
As torres se iluminam no simples toque
o açúcar queimado/ o violino
perfumado do seu próprio corpo
Bioquímica-freejazz
Gruta sem 1 gota de cosméticos
Poesia natural/ como o esperma-aguaceiro do Amor
Já estive aqui/ sem ter estado
*
Em El secreto del mal [Anagrama], último livro em que trabalhava Bolaño – na verdade uma coletânea dos mais recentes arquivos encontrados em seu computador pelo editor e amigo Ignacio Echevarría – , o escritor chileno/chicano/hispânico, sempre sob a pele de Belano, conta uma visita que fez ao apartamento de Papasquiaro, aliás Lima [aliás José Alfredo Zendejas Pineda, seu nome de batismo], ao retornar à Cidade do México depois de décadas vivendo na Espanha.
Toca várias vezes a campainha, mesmo sabendo que seu amigo já está morto – atropelado por um sinistro Impala preto [curioso que, na cena final do Detetives, o carro da dupla seja um Impala branco]. De repente, da porta ao lado emergem três punks gordos e carecas. Apresentam-se como ‘os últimos discípulos de Ulises Lima’ e convidam Belano a entrar em seu apartamento, ouvir o disco de sua banda e beber algo.
Este permanece estático a mirar os joões-gordos e os pôsteres de bandas que decoram as paredes do apartamento, onde “garotos mexicanos o olham desde as fotos ou desde o inferno esgrimindo suas guitarras elétricas como se foram armas ou como se estivessem morrendo de frio“. Jamais se saberá se Bolaño continuaria este relato ou se ele termina assim, feito um viaduto inacabado precipitando-se sobre a saudade, como quase tudo o que escreveu [uma poética da inconclusão, definiu Echevarría]
Assim como a ética da amizade e da sinceridade olho-no-olho, porém em registro mais atmosférico, os vazios bolañescos também parecem se entranhar na poética de Papasquiaro, autor de fluxos de imagens sem juízo final – um autor sem juízo, pelo retrato que dele fez seu bróder:
“Ulises Lima era meu amigo Mario Santiago Papasquiaro, que morreu há um ano. Foi meu melhor amigo, meu melhor amigo de longe (…) um ser estranhíssimo, um leitor empedernido com coisas tão estranhas como meter-se sob o chuveiro e ficar lendo. Sempre via meus livros molhados e não sabia que havia ocorrido: será que o México é tão grande que pode chover em certas partes? Me perguntei até que o surpreendi lendo no chuveiro (…) Mario era um personagem fantástico, não tinha nenhuma disciplina. Era um poeta poeta, um ser fantástico, muito valioso”
*
Outro:
“Não creio mais que na queda de estrelas”
Sobre as pontes que descubro
1 cemitério de vidros
: o ex bendito chiqueiro :
Dormiu
o cheiro de tanto trator sangrento
/ de onde quebram a cintura dos acampamentos ciganos/
indícios de mim
que sustentam
& neles que digo: Não creio
de imediato nem nas chuvas de ouro velho nem de cabras
Nem na irrealidade deste rio
em que de santa gana me afogo
como se 1 adaga sem rumo
partisse ao sol dos meus ecos
*