10 anos depois

Não me lembro mais quem entrou em casa com a notícia. Ed, Jarbas, Gustavo, eu? Lembro do silêncio depois. Da sensação de inverossimilhança, de impossibilidade inexprimível. Não era possível. E se era possível, fudeu. Fudeu, fudeu, fudeu. Quase meia-noite, imediatamente mandamos o nosso quarto exemplar de Afrociberdelia no CDplayer da sala [os outros três haviam sido detonados nas festas que fazíamos] e, imersa em profunda fumaça, pela primeira vez a república do Divan do Dinaëll ouvia sem dançar, sem pular, sem cantar em uníssono o manguebeat que nos havia juntado, as canções de nosso ídolo e guru, Franciso de Assis França. O domingo já tinha sido meio cinza, cinza seguia, até mesmo a noite ficou cinzenta, assim como foi gris o carnaval seguinte – o primeiro em que iríamos para Recife. Mudamos os planos. Chico Science tinha morrido, e, com ele, pensávamos, se havia ido nossa “última esperança”.

Já disse várias vezes que só entendi mesmo o que era e o que poderia ser o Brasil quando vi Chico mandar “Da Lama ao Caos” vestido com as roupas e as armas de um caboclo de lança, num show da Nação Zumbi em 1993. Um passo à frente – e a gente já não estava mais no mesmo lugar. Na mesma época havia começado a ler Grande Sertão: Veredas e PanAmérica, mas a ficha ainda não tinha caído. No batuque marcial da Nação é que saquei a linhagem direta da nossa única e genial fuleiragem, e entrevi algum orgulhoso futuro. Os brasileiros têm esse macambúzio complexo de viralatas; volta e meia tem de aparecer algum Chico para dar uma cutucada, demonstrar que rimar inteligência e paudurescência não faz vergonha. Nos anos 1990, quando ainda começava a batucar esse treco que chamo de literatura, muito do norte da minha caneta foi magnetizado pelo nascente manguebeat – e esse é um aditivo à minha formação que nunca me esquivarei de afirmar.

Chico, quem viu ao vivo sabe, era engraçado, elétrico, gentil e com um tipo sintético de inteligência muito raro nesse lado barroco do mundo: política, ética, poética, dança e gréia eram arranjados no mesmo inédito groove. Claro, devia ter algum defeito, mas não cheguei a conhecer. Não chegamos a tomar uma no mesmo balcão, aliás – só nos esbarramos algumas vezes no Matrix, na Vila Madalena, onde ele chegou a discotecar. Por isso, talvez, aquele domingo se empoeirasse e se esfumaçasse dando ao ar das semanas seguintes um peso que custou a se desvanescer: e agora? Sem Chico Science, quem poderia liderar a revolução, posto que o manguebeat foi o único movimento cultural de peso, desde a tropicália? Como percebemos de dez anos para cá, ninguém – não surgiu um só artista que reunisse tantas qualidades e potencialidades, nem na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas, no teatro. Ninguém que pusesse dar sangue novo ao velho panteão onde até hoje dão as cartas Caetano, Chico Buarque e mais meia-dúzia.

Na porrada, porém, acabamos aprendendo que não havia necessidade de um único líder, um solitário guru. A própria Nação Zumbi – que, mesmo abalada pela morte de seu fundador, jamais deixou de ser a maior banda do país – é exemplo de que é viável continuar. E, dos 90 aos 00, surgiram escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas, jornalistas que, se não têm o brilho de Chico, impuseram um ambiente cultural várias vezes mais criativo e múltiplo do que nas décadas de 70 e 80. Assim percebíamos que um país talvez não precise de heróis, mas sim de mitos, e que Chico, infelizmente, aos 32 anos tinha dado um stage-diving para virar um deles – um satélite mandando incessantes sinais para nossas cabeças enlameadas. Life’s a bitch, e, porque tem que, seguimos aqui.

Apesar das cicatrizes curadas, das coisas criadas, dez anos depois, e por muitas décadas mais, vou continuar me perguntando, como já nos perguntávamos encachaçados e enfumaçados naquela antiga república, naquele cinza domingo de Iemanjá, 2 de fevereiro de 1997: o que será que Chico Science estaria inventando hoje?

Chico Science by Fred Jordão

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

7 pensamentos

  1. bonito texto, hermano. e dez anos depois, onde tu vai passar o carnaval mesmo? voltei, Recife, foi a saudade. saudade, lá se vão dez anos. tomar umas e outras e cair. abrazzz.

  2. …eh, às vezes sinto que a música brasileira está emoldurada por uma turva neblina. A contemporâneidade de Mombojó, Mundo Livre e Nação,
    me vem como raio de esperança, então abro a janela sorrindo…
    Abs.

  3. arrepiou. os pelos das coxas com tanta força que nem a calça jeans segurou. e senti que nisso tem alguma coisa que nos liga -, eu, você e todos que páram tudo pra falar dele. saudade de tu, po!

  4. “Chico se encantou” citando Guimaraes Rosa. Que legal que vc lembrou da data. Quando le moreu eu tinha 16 anos, ele era a minha maior referencia musical brasileira e eu tb achava e ainda acho que foi a melhor coisa que aconteceu ai nos ultimos vinte e poucos anos. Acho que essa data deveria de ser lembrada todos os naos com festa. Valeu pelo texto.

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