Eu bebo sim

Saiu hoje n’O Globo a risonha que escrevi sobre o A fila sem fim dos demônios descontentes, de Bruna Beber. O livro por certo é muito melhor que esse pobre texto pretensamente crítico. Mas espero que o recado tenha sido dado. Segue ae a long extended version.

Hormônios imprevidentes

Aos 23 anos, a carioca Bruna Beber estréia com um livro de poesia de voz original, com uma mensagem nítida: apaixone-se – enquanto você ainda está vivo

por Ronaldo Bressane

O que faz de um texto poesia da boa? Arriscando-me ao erro, busco uma fórmula: rigor que vem do vigor – um anti vigor mortis. Alguma coisa que nasça da vida como ela era e fixe em palavras a vida como ela seria se ela não fosse como ela é. Em outras palavras, um código que pareça vivo, talvez porque bebeu da vida e da arte, e não que se impusesse arte via arte, se esquecendo da vida… bom, pelo tom confuso de minha desregrada tentativa de rótulo, o leitor sentirá que não foi nada fácil resenhar um dos lançamentos mais intrigantes em 2006, A fila sem fim dos demônios descontentes (7Letras), primeiro livro de poesia da carioca Bruna Beber, 22 anos.

Conhecia e apreciava a poesia de BB por seu blog Bife Sujo, mas em livro o que era treino vira FlaFlu – veja-se aí a quantidade de escritores que não sustentaram a troca dos pixels pela celulose. Quando se tem seu livro nas mãos é que se vê o alcance do projeto (a poesia pára em pé, anda e fala sozinha), a filiação da moça (excelente família de ovelhas negras) e o diálogo com seus contemporâneos (sim, Beber sai para declinar seu verbo pessoal, não fica só ruminando versos no escuro do quarto – embora também o faça). Começando pelo último quesito, sente-se na pegada de Bruna uma cócega: ela tem raiva e paixão. Mas ó, maravilhas – também tem humor. O que é alvissareiro (palavra engraçadinha) numa terra que anda meio esgotada por um excesso de salamaleques poéticos na base de formalismo, racionalismo, solenismo em excesso.

Não que não se sinta, no humor beberiano, um tom ácido, inda que embalado numa doçura ilusionista, como em “A Novíssima Literatura”: “você quer um dia/ ser estudado/ numa sala de aula qualquer/ por uma turma de pirralhos/ que vão zoar suas roupas hoje modernas/ falar que o que você escreveu é chato pra caralho/ fazer chifrinho na sua foto/ interrogação./ queira morrer antes/ comendo caramelos/ a estranha paixão de Hitler/ caramelos”. A ambição da posteridade engessa nossos contemporâneos – um mal tão banal quanto fundamentalistas que queimam crianças enquanto chupam balas. Do outro lado da página, no poema “Nabokov”, a lolita sugere que a criação não é plano para virar estátua, mas estratégia de sedução: “nos papéis eterrnizo/ minha máquina de escrever/ e a vontade de ficar/ pra sempre/ parada/ ao lado da bicicleta/ no canto esquerdo da garagem/ esperando que algo nos encoraje/ a cruzar a folha em branco/ do caminho”.

Melhor “sair à rua e brincar”, como propunha Cortázar. Mas diversão é quase um Belzebu para nossa hirsuta e rara crítica. Claro, o poema-piada oswaldiano e os trocadilhos leminskianos vitimaram poetas promissores, que terminaram seus dias criando slogans para corporações, o dedo entediado girando o gelo dentro do copo de uísque. E ok, pressente-se nos versos livres beberianos algo da Nuvem Cigana (aquele libertário grupamento poético carioca setentista), algo de Chacal, de Ledusha, de Cazuza, de Ana Cristina César: ela ginga entre gíria e liras sofisticadas, um pé no meio-fio do prosaico, outro no metro raro do cânone. Só que o fácil aqui é véu, como em “Jerry” (o camundongo?): “estou indo pruma esquina/ onde não corre vento/ nem bate sol/ um lugar secreto/ onde as pessoas não falam/ não ouvem/ e não enxergam/ a calha úmida da cidade/ que liga o esgoto/ ao céu”. O humor é só pano de fundo para a melancolia dessa garota, há 22 anos “ninada pelo disco/ arranhado/ do ventilador do teto“.

Dizia da filiação e do diálogo com os contemporâneos. São citados no livro John Cage (título do poema de abertura), Tom, Vinicius, Braguinha, Paulo Mendes Campos, Verlaine, Bukowski, Maiakóvski, Pound, Graciliano, Satie, Neil Young, Odair José, Aretha Franklin, Ângela Rô Rô, Regina Spektor, Nara Leão e o anônimo que grafitou “a fila sem fim dos demônios descontentes no amor” num muro do Viaduto do Caju em frente ao Armazém 5 do cais do porto do Rio de Janeiro [Correção: após publicado este artigo, o anônimo ganhou cara – é o artista plástico plástico Gustavo Esperidião]. Contudo, o espectro multireferencial de Bruna nunca deforma seu estilo afiado, sempre com versos curtos, exígua pontuação, toque narrativo e tom confessional – mas um tom contido, sem exclamação: “beibe/ eu sou um blues nacional/ cheio de exagero/ e corações roubados/ marginal nos 70’s/ equivocado nos 80’s/ insensível, burro/ e raso como as preocupações do Posto 9/ que não se chega de saudade/ e dolorido de tristeza/ mas original e animado/ como toda a jovem guarda em si”.

Amor e restos desumanos

Quer no espanto com as paixões e o tempo incessante, quer no atulhar de migalhas de linguagem e fragmentos sensoriais de uma realidade sempre insatisfatória, dividem a mesa de Bruna poetas como a haikoólatra gaúcha Angélica Freitas (Rilkeshake, no prelo) e seu conterrâneo, o surreal skater Paulo Scott (A Timidez do Monstro), ou paulistas do naipe do jogador de pôquer Sergio Mello (No Banheiro um Espelho Trincado) e do cavalheiro grunge Marcelo Montenegro (Orfanato Portátil).

Quase me esquecia, mas o leitor notou: o amor, a perda, a ausência, o desejo são o motor de Bruna. Seja “chorando dentro dum conta-gotas”, “seja dormindo no lodo/ da vala confortável onde dormem/ os apaixonados”, em sua investigação do mais velho dos temas BB descobre coisas como “a despedida é tão intrigante/ quanto a saudade/ desnecessária” ou “paixões são urgentes/ explodem hecatombes/ …/ eu finjo que não é comigo/ finjo que estou distraído/ e de repente POW”).

Fingindo que não é com ela, Bruna tensiona o sentimento com a contenção de versos sem exclamações, e assim os subtemas quedam-se suspensos, na miúda. “Dos barulhos afinados/ estancados das sirenes do corpo/ de bombeiros”, tirando leite da pedra tosca do cotidiano, Bruna sugere ao leitor que viva sua vida apaixonado. Com urgência: desfaça-se deste jornal e embarque num navio de papel antes que ele suma em alguma obtusa chuva de verão.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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