Sandman

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> Essa saiu na Trip do mês, a 146.  

Just a dreamer?

Ele largou os EUA, onde participava de um dos mais importantes laboratórios de neurociência do mundo, para vir fundar um instituto de decodificação do processo de sono e memória. Em conversa com a TRIP, o brasiliense Sidarta Ribeiro fala de sonhos lúcidos, da ligação entre biologia e psicanálise, critica a preguiça nacional e afirma que transformar o Brasil em superpotência científica não é coisa de sonhador

por Ronaldo Bressane

O sonho é uma simulação do futuro. Vou lhe dar um exemplo. Sempre que tenho uma situação de pressão, presto atenção aos sonhos e tenho boas respostas. Nos EUA, trabalhava numa estação de campo e dividia o carro com um colega. Uma vez, cheguei para buscar o carro, o cara o levou e foi pra casa. Não pude ir à estação. Fiquei puto! Liguei para o cara e ele veio com um ‘ah, esqueci’. Me enfureci e trabalhei o dia inteiro pensando em pegar o sujeito. Tenho 1,70 metro, mesmo assim achava que poderia dar uma bela descompostura nele, com seus dois metros de altura. Fui dormir emputecido. Então sonhei o que tinha planejado. No sonho, o cara me enchia de porrada. Lógico! Aí, acordei, e deixei pra lá – quando o mal está feito, não tem o que fazer, melhor passar um KY nisso. Assim os sonhos nos ensinam.”

O parágrafo acima não parece saído da boca de um dos mais importantes neurocientistas do mundo. Bem – não seria mesmo um dos melhores se fosse um cara comum. A começar pelo nome, tirado do clássico de Herman Hesse. O romance que conta a trajetória de um inquieto brâmane, xará de Sidarta Gautama, o Buda, em busca da iluminação, era um dos favoritos dos pais – um casal de taquígrafos que transcreviam discursos políticos no Congresso, em Brasília. Quando se descobre que a principal diversão de Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro, 35, é a capoeira, ele vai surgindo como um sujeito ainda mais peculiar. E Sidarta entrou na roda, perceba, não no Brasil, mas em Nova York, há sete anos, guiado por dois mestres exilados – Boneco, na capoeira-regional, e João Grande, na capoeira-angola. “Capoeira é filosofia de vida: saber cair, ser mandigueiro”, descreve.

O candango chegou aos EUA depois do mestrado em biofísica, no Rio de Janeiro, para estudar Neurociência na Universidade Rockefeller, em NY. Pouco depois, lançou um livro de contos, <em>Entendendo as coisas</em> (L&PM, 1998), e levou suas mandingas para a Carolina do Norte, em Durham, onde fica a Universidade Duke. Atraiu-o o famoso laboratório dirigido pelo paulistano Miguel Nicolelis, outro cérebro expatriado. “Achava que era megalomaníaco até conhecer o Miguel. Ele é o Pelé da ciência brasileira”, elogia. Após publicar vários trabalhos ao lado do camisa 10 – no mais célebre, provaram que a memória é consolidada durante o sono profundo –, notou que seguiam direções diversas. Ao amostrar simultaneamente sinais elétricos de centenas de neurônios de ratos, e com os sinais controlar movimentos de braços robóticos, Nicolelis atingiu a pole position da neuroprotética. Já o interesse de Sidarta reside no processo de formação do sonho e da memória, foco do doutorado com o também brasileiro Claudio Mello, da Universidade do Oregon. Para impulsionar as pesquisas, o trio de exilados, figurinhas carimbadas em respeitadas revistas científicas como Nature, Science e PloS Biology, teve a onírica idéia de criar um instituto de neurobiologia… no Brasil. Assim nasceu o ambicioso Instituto Internacional de Neurociência de Natal. Orçado em US$ 20 milhões, o dobro do custo da patriotada espacial brasuca – e com perspectivas muito superiores. Do tipo: saber como funciona o cérebro durante o sonho lúcido. Construir interfaces cérebro-máquina capazes até de controlar funções do corpo pela internet. Ou, ainda, simplesmente, desvendar a língua falada por macacos. Com os primeiros investimentos pingando de empresas e instituições ao redor do mundo, Sidarta retornou à terrinha.

O sonho de criar uma ilha de excelência em um paraíso tropical poderia virar pesadelo, não fosse o comportamento obsessivo e ao mesmo tempo zen do candango. Interessado em envolver os locais no NatalNeuro – que deverá abrigar escola para 250 crianças e clínica de saúde mental –, o neurobiólogo foi caçar alunos numa favela. “Começamos com os filhos de catadores da Favela Via Sul, meninos de rua mesmo. Só que os pais não os deixavam vir porque estavam perdendo dinheiro! Não sabia que seria tão difícil… Já registrei neurônio de rato sonhando, mas tentar ensinar algo para essas crianças é muito mais complexo”, ri. “Resolvi dar aula de capoeira para os moleques. O buraco era mais embaixo: vi que tinha primeiro que ensinar a não xingar… Mas tem de investir neles. Da capoeira, vão aos computadores”, acredita o entusiasmado Sidarta, que teve seu sonho postergado por atrasos nos investimentos e em sucessivos entraves burocráticos.

O cientista compensa o incômodo pela “falta de urgência” nacional retomando laços com o tal jeitinho. Dá diariamente aulas de capoeira, ouve na praia seus sons favoritos – Chico Science, Zeca Pagodinho –, se enfia nos contos de Guimarães Rosa ou em suas próprias narrativas. Adora carnaval – este ano, foi a Olinda entrar debaixo do dragão rubro-amarelo do bloco Eu Acho é Pouco. E pratica mergulho sempre que pode. Paixão mesmo, só pela capoeira, onde ganhou o apelido de Piloto, por usar óculos de jogador de basquete. Tudo sem largar as pesquisas, até as quatro da manhã, interrompidas por perrengues de desordem prática. Mais que a burocracia, só uma coisa aperreia Piloto. É a tese de doutorado da mulher, a também neurobióloga Janaína Hernandez Pantoja – ela a concluiria em maio, mas terá de ficar até o fim de 2006 na Carolina do Norte. “Tá bravo, viu!”, resigna-se o candango. A seguir, a conversa com o falante Sidarta. Fique frio: agnóstico, ele detesta papo-cabeça. E adora dormir – religiosamente, oito horas por dia.

Trip. Em seu celebrado artigo na Plos Biology, você afirma que o sono está para a memória como a digestão para o alimento. Quem dorme mais aprende mais?

Sidarta Ribeiro. Sem dúvida. Quanto melhor a qualidade do sono, melhor a memória. Durante o sono surgem ideias importantes do dia a dia. Minha pesquisa acontece na confluência entre sonho, sono, memória e aprendizagem. Entre os integrantes da tribo Senoi, na Malásia, havia o costume de todo dia as crianças relatarem seus sonhos para os pais, que lhes davam conselhos, pois o controle do sonho seria muito importante para a pessoa e a coletividade.

Há pessoas que se lembram de seus sonhos com exatidão e outras que mal se lembram da última vez que sonharam. Como se explica? Todos os adultos têm sono REM [de “rapid eye movement”, estágio do sono em que ocorrem os sonhos] e, se você acordar alguém durante esse sono, ele vai dizer o que estava sonhando. Lembrar-se do sonho é outra história. Sugiro que todos mantenham um diário de sonhos, o sonhário. Na primeira manhã, você lembra só de uma frase. Se faz uma autossugestão antes de dormir, em duas semanas sai de uma frase para muitas páginas. Tem que criar condições para que a memória se forme, para reter a experiência.

E agora?

Sidarta deixou o Instituto Internacional de Neurociência de Natal para a criação do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2011. Ele faz uma balanço dos últimos 12 anos: “Fizemos descobertas científicas importantes e sobrevivemos (até aqui) ao desmonte impiedoso da estrutura brasileira de ciência e tecnologia”, conta. Entre as principais descobertas, ele destaca a demonstração da eficácia da soneca pós-aprendizado para aumentar o desempenho escolar de jovens de baixa renda. Sidarta passou a exercer neste ano o cargo de coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. “Tenho atuado com muita energia antiproibicionista no debate público sobre drogas.” Publicou um livro híbrido de divulgação científica e crônicas, Limiar, teve dois filhos e segue “firmíssimo” dando aulas de capoeira (é corda roxa).

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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