Cuidado: tóxico

Nick Tosches não quer saber de vinhos, só de opiáceos
Nick Tosches não quer saber de vinhos, só de opiáceos

Com a inclassificável noveleta A última casa de ópio, o lendário Nick Tosches é afinal lançado no Brasil. Perfil para O Globo

por Ronaldo Bressane

Uma bexiga de cobra sendo comida viva numa rua de Hong Kong. Uma cebola de 35 dólares degustada com luxúria num restaurante fino de Nova York. Uma fuga da polícia na garupa de um motoqueiro dopado no Camboja. Em Bangcoc, uma prostituta massageia a virilha do narrador; em Sham Shui Po, vendem-lhe cédulas de 100 dólares com marca d’água, fita de segurança e entalhe perfeitos. Como aperitivo, um monólogo furioso contra um connaisseur que logra detectar um traço de pimentão a se ocultar por trás do aroma de cassis num Chateau Margâux 1978 porém não percebe a sutil nota de esterco que impregna o vinho. Perca as esperanças de vida fácil – adentramos o mundo de Nick Tosches.

Com A última casa de ópio, a editora Conrad suprime uma falha em nossas livrarias: não havia tradução em português para a escrita desse grande contemporâneo norte-americano. Crítico musical responsável, ao lado de gente como Lester Bangs (o crítico do filme Quase famosos), por levar o jornalismo rock’n’roll ao status de texto literário, Tosches, 56, é também biógrafo respeitado. Dele é a considerada a melhor biografia de um roqueiro já escrita, Hellfire, em que vira Jerry Lee Lewis do avesso. Para além do gênero, Tosches se interessou por figuras notáveis em campos diversos, como o entertainer Dean Martin (Dino), o boxeur Sonny Liston (The Devil and Sonny Liston) e o mafioso Arnold Rothenstein (King of Jews). Colaborador do New York Times e das revistas Rolling Stone e Vanity Fair, foi para esta última que escreveu a reportagem A última casa de ópio – o artigo ficou longo demais e virou esta belezinha de livro.

Que se lê num só fôlego: parente do gonzo journalism de Hunter S. Thompson, o texto de Tosches comunga com ele as impressões vívidas de estranhas experiências mas é tecido com elegância quase proustiana, sem descuidar de um anárquico humor negro que lembra o melhor Millôr em sua revolta com a massificação da estupidez. É precisamente de uma invectiva contra o que denomina “a era do pseudoconhecimento”, “o modo pelo qual tentamos tolamente nos diferenciar da maioria medíocre”, detonada por uma cebola que custa 20 vezes o seu preço real, inflacionada pelos neo-cafoni, “otários pseudo-sofisticados, incapazes de reconhecer as melhores coisas da vida”, que Tosches resolve tomar ópio. Mas, é claro, ele não encontra ópio em Nova York, pois a droga – matéria-prima da demonizada heroína – está há muito tempo ultraproibida. É então que Tosches parte em busca de uma casa em que ele possa consumir o fumo obtido da papoula, do mesmo modo que a ingeriam Charles Baudelaire, Thomas de Quincey, Jean Cocteau, Samuel Coleridge e até mesmo Homero – e nisso o autor acaba registrando uma verdadeira história literária da substância.

“Visões de locais escuros, de decadência luxuosa, com cortinas de brocado e almofadas de veludo, recendendo a uma mistura de fumaça e aroma de incensos e da própria substância celestial, proibida, fabulosa […]. Atemporalidade. Santuário. Membros adoráveis despontando das vestes entreabertas de relaxadas e exóticas concubinas, docemente intoxicadas […]. Eu nasci para fumar ópio numa casa de ópio”, escreve ele.

Escrever é magia negra

Sua busca por ópio pode ser lida como a fuga de uma sociedade dominada pela mediocridade?, perguntou O Globo a Tosches, em entrevista por e-mail. “Acho que esse escape está se tornando cada vez mais difícil”, afirma o autor. “Para onde formos nesse mundo, é mais e mais o mesmo estéril mundo consumista. E sim, claro, o ópio é uma fuga – uma bela fuga. As pessoas falam de escapismo como se fosse ruim. Talvez assistir à TV ou ler maus livros possam, sim, ser um escapismo tolo. Mas fugir de uma prisão… inferno, quem quer estar em uma prisão? E é nisso o que a moderna civilização está se tornando, para todos nós – exceto para a aristocracia, que pode ser descrita como as pessoas que presidem a ilusão da democracia: uma prisão. Podem não haver barras de ferro, mas nossas almas e imaginações e desejos estão presos pelas forças da civilização – que, afinal, não é assim tão civilizada”, politiza Tosches, defensor da legalização de todas as drogas. Mas em um mundo de drogas legalizadas, elas não poderiam ser usadas politicamente para criar exércitos de zumbis? “O mundo já está bastante cheio de zumbis”, diz, lacônico.

Ao lado da crítica da “era do pseudoconhecimento”, Tosches também dispara contra o confortável campo do turismo – e, tendo passado real risco de morte para dar uma tragadinha numa pocilga do Laos, parece saber o que diz. “Aventuras ‘de verdade’ estão quase impossíveis de achar. O que é ‘de verdade’ hoje em dia? As pessoas compram ‘aventuras’ pagas do mesmo jeito como compram leite. Seguras, homogêneas, previsíveis. Uma aventura real é algo que ninguém vende”, afirma o escritor, que diz ter sido a sua maior aventura “talvez aquele passeio de moto que eu descrevo no livro, aquele selvagem passeio no meio da noite dos pântanos cambojanos até Phnom Penh, furando um bloqueio policial, com ópio na cabeça e no bolso, tomando tiros dos tiras. Mas, no fundo, rindo de tudo”.Tosches breve terá lançado aqui um capítulo de seu calhamaço <em>Country</em>, considerado a suma do estilo nascido em Nashville – algo como se Zé Ramos Tinhorão tivesse se debruçado sobre o gênero. Como explica uma música caipira yankee ser a grande inspiração de milionários cantores bregas brasileiros? “Não consigo entender. Nem mesmo consigo compreender como o mesma country pop limpinha dos EUA é chamada de country music. A verdadeira, boa e velha música country – que é a que descrevo em meu livro – vai continuar para sempre, porém somente nos vinis. Havia músicas maravilhosas. A maioria da música atual é feita por máquinas”, atira ele, que hoje diz só apreciar Rolling Stones e o compositor minimalista estoniano Arvo Pärt.

O fleumático novaiorquino nascido em Newark, New Jersey, guarda munição ainda contra o jornalismo atual: “Acho que muitos jornalistas estão se tornando cada vez mais parte do mundo do entretenimento, ou, pior ainda, parte da máquina política. Muitos jornalistas escrevem o que lhes dizem para escrever, ou o que dizem que eles deveriam escrever, assim como muitas pessoas acreditam no que lhes dizem para acreditar, ou no que acham que deveriam acreditar”, diz ele, que, embora seja partidário de mergulhar na ação atrás de histórias, não se vê como um jornalista gonzo. “Deixei este título para o querido e saudoso Dr. Thompson”, declara, a quem, diz, nunca encontrou. “Realmente nem mesmo sei o que quer dizer ‘gonzo’. Para o assim chamado ‘new journalism‘, me lembro, voltando aos 1960’s e 1970’s, se referia a jornalismo com técnicas literárias. Mas se era ‘novo’ há 30 ou 40 anos, é velho agora. Eu acho que é meio maluco ficar dando nomes a tudo. Só chamo isso de escrever. É isso o que faço: eu escrevo.”

Por falar em escrever, Tosches preserva sob negro silêncio suas novas aventuras. “Estou trabalhando em dois novos livros, um de ficção, outro de não-ficção. Mas realmente não posso falar sobre eles. Gostaria de mantê-lo em segredo. Prefiro trabalhar com discrição. Meus livros estão ficando cada vez mais profundos, abrangendo lugares secretos. Só posso trazê-los à luz quando estão prontos. Este novo provavelmente vai levar mais dois anos para que eu o termine. Então o segredo termina. É estranho: a maior parte é um segredo para mim também. Quase sempre nem sei o que vai acontecer na próxima página. É um tipo de magia negra.”

Autor de livros de poesia e ficção (seu In the hand of Dante foi chamado pelo Guardian de grande romance criminal dos últimos anos), ex-viciado em drogas, autodidata erudito, adito em Hesíodo, Safo, Marlowe, Beckett, Pound e Borges, mulherengo dândi conhecido por chutar o traseiro de traficantes de Manhattan com seus mocassins de pele de leopardo, Tosches come todo dia no mesmo lugar: Da Silvano, o restaurante das cebolas de 35 dólares. E, interessado em contrastes sociais, embora não se creia um animal político (“A vida é muito curta para envolver-se com o inevitável e com o imutável”), o autor planeja vir ao Brasil. “Onde há violência, há vida, como há fogo no sangue. Onde milionários temem e dão as costas aos pobres, há senso de revolução no ar – como uma trovoada sem chuva”, finaliza.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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