Vilma Arêas não esquece nunca, jamais

Para comemorar o lançamento de Todos Juntos (Fósforo), reunião de todas as suas ficções, do livro Partidas ao inédito Tigrão, um perfil (atualizado) que escrevi em 2012


Vilma Arêas é um azougue. Aos 75 anos, a professora aposentada de literatura brasileira na Unicamp, fluminense de Campos de Goytacazes, parece ter bem uns 20 a menos, tal o entusiasmo que sustenta suas frases rápidas, chispadas por leve sotaque carioca. Miúda, lépida, a autora de sete livros não para quieta; no sofá em que se posta para a conversa, joga o corpo para a frente, depois empertiga-se, então senta-se sobre uma perna, daí muda para a outra.

Tinha acabado de chegar de um ciclo de palestras em Bruxelas quando recebeu o Pernambuco para uma tarde agradável, pontuada por café forte e alfajores no ponto, em seu apartamento no bairro de Higienópolis, São Paulo. Ali, vive sozinha. Ou quase: uns cinco mil volumes lhe fazem companhia – livros em quase todas as paredes, algumas ocupadas por quadros de Sérgio Sister e Paulo Pasta; outras, por fotos dos três filhos e do segundo e último marido, o jornalista Fausto Cupertino, morto em 1984 — depois, Vilma jamais se casou novamente.

Ainda hoje fala com enlevo de namorada do ex-editor do Jornal do Brasil — que, pela militância comunista, foi preso e torturado pela ditadura em 1975. O terceiro filho, Francisco — as duas primeiras filhas, Fernanda e Virginia, são do casamento anterior, com o promotor Ferdinando Peixoto —, foi “produzido” em pleno cárcere.

“Quando liberaram a visita íntima, Fausto disse: ‘bora?’”, ri. “Mas não bote que eu fui comunista, porque não era: tinha pavor daquelas reuniões intermináveis do Partidão”, diz, lembrando a época em que deu aula de Literatura na PUC/Rio. “Hoje me assumo como anarcoburguesa”, sorri, enquanto aponta uma foto enquadradinha para elogiar a elegância do finado esposo. “Ele estava sempre lendo, como nessa foto… Foi o último homem que amei de verdade”, confessa, para já emendar uma história.

“Quando me separei do pai das minhas filhas, minha avó perguntou o motivo. Disse que não o amava mais. ‘Mas então o amor é necessário?’, me devolveu ela”, conta, citando uma frase de seu conto “Thereza”. “A vó tinha frases assim. Fui guardando. Outra que usei também reflete essa descrença no casamento: ‘Quem é cativo não ama’. Ela tinha grandes aforismos. Foi uma cativa, certamente”, conta Vilma.

Várias dessas histórias pairam em Vento Sul, seu livro de contos recém-lançado pela Companhia das Letras (110 págs.), o primeiro após dez anos de silêncio narrativo. Mulheres cativas e fêmeas cativantes são protagonistas de seus violentíssimos relatos. No terrível “República Velha”, por exemplo, a prisioneira é a mulher de um coronel-fazendeiro da região de Campos, pega no flagra com um funcionário deste, um pistoleiro negro. O coronel passa fogo nele e dá um passa fora nela, tratada como puta. De vingança, ele passa a transar com toda garota negra que encontra. Até que… A história lhe havia sido relatada por alguém, há muitos anos.

“Nunca me esqueci daquele homem poderoso e do modo como resolveu o problema”, diz a professora. “Eu tinha o adultério, a naturalidade do assassinato do amante, a esquisita expulsão da mulher, que ele poupou. Daí pus a história no tempo da República Velha, pesquisei jornais de Campos, observei o jogo das classes e a politicagem da terra, criei a guarnição da anedota, o caráter do fazendeiro. Acabei achando um lugar razoável para a dramaticidade de seu conservadorismo. Mas foi o personagem, que é bem inteligente, quem arrastou a escrita”, descreve Vilma.

O processo de criação revela: Vilma não tem a menor pressa de escrever seus finíssimos livros — sua literatura não é pontuada pelo zeitgeist da moda. Seu livro de estreia, Partidas, foi publicado em 1976, quando já tinha 40 anos. São apenas sete livros escritos em 50 anos. “Vou juntando as ideias, tem coisas muito antigas, retomo com calma. O último texto desse livro (o enigmático “O vivo o morto”), levei cinco anos pra fechar, quase desisti, e tudo pra escrever duas páginas. Aí li o prefácio de um livro do José Antonio Pasta e achei o fio”, relata.

Escritora mulher, não necessariamente escritora feminista. Talvez uma protofeminista. Seu texto tem uma poesia áspera, mas nunca panfletária ou engajada, e menos ainda daquilo que negativamente se diz de “poesia feminina” — algo que a má crítica definiria por rarefeito, fluido, macio. Tributária da prosa seca e aguda da italiana Natalia Ginzburg, Vilma tomou um susto quando leu Clarice Lispector.

“A primeira coisa que li, A Legião Estrangeira, me deu um susto com a qualidade dos contos. Tive, sim, uma fase de aprender com ela, em especial o ritmo. O ritmo é fundamental na vida: sem ritmo, nada feito. Mas não me influenciou”, diz — e, de fato, nada menos parecido com a escrita sugestiva de Clarice do que as imagens lapidares de Vilma. Que refuta qualquer comprometimento “feminino” de sua escrita. “A questão de gêneros na literatura é uma tolice”, exalta-se. “Sou mulher, mas para escrever é preciso independência sob todos os pontos de vista, sexual e econômica. Mulher tem de trabalhar, escolher maridos ou amantes, optar por filhos ou abortos, beber, comer bifes sangrentos… e escrever. Aliás, como os homens, os gays, as lésbicas, os transexuais em todas variações. Não será insensatez falar em sexo dos textos, quando a noção de sexo sofre tamanha revolução?”, questiona.

Sobre Clarice, Vilma Arêas, autora do livro de ensaios Clarice Lispector Com a Ponta dos Dedos critica a festejada biografia escrita pelo texano Benjamin Moser, publicada pela editora Cosac Naify. “Não gosto nada. O único dado novo que ele trouxe foi a história da mãe. Ele chupou muita coisa da Nádia Battella Gotlib (autora da biografia Clarice, Uma Vida que se Conta). Moser é sedutor, jovem, interessante, mora na Holanda, deve ter um ótimo agente. O livro é bem escrito. Mas tudo o que ele interpretou da Clarice está errado. E ele não conhece o Brasil. Ora, essa história do judaísmo… Clarice não se considerava judia. Era pernambucana, carioca, bruxa, jornalista, socialite, diva, artista, dona de casa, era uma mistura, uma brasileira. Lembro de uma blague que ela soltou quando lhe perguntaram: ‘Você acha que os judeus são o povo escolhido?’. Foi ferina: ‘Não, o povo escolhido são os alemães. Afinal, fizeram o que fizeram!’. Frase incrível, não?”, delicia-se.

A admiração pela autora de A Hora da Estrela não permite que a santifique. Na Unicamp, sugeriu proibir por dez anos que os alunos escrevessem teses sobre a Clarice. “Só escrevem platitudes. Clarice é pouco conhecida. Virou santa como foi Fernando Pessoa, só se aproximam dela para adorar… daí, o texto escapa. É preciso ler sua escrita, abandonar o mito”, pede Vilma Arêas.

Entre as memórias de Campos sempre sopra o vento sul. Um tema constante em todos os seus livros. “É minha madeleine: o vento me traz as histórias de menina. Era terrível, soprava forte, estragava a plantação, trazia aquela chuvarada…”, recorda. A violência da natureza é sub-reptícia nos confrontos de suas breves narrativas — o patrão contra o empregado, a mulher contra o homem, o homem contra o próprio instinto. Alguns desfechos, de tão brutais, tiram o fôlego do leitor.

Contudo, a estratégia da escrita de Vilma é lacunar: opta pela elipse, pela síntese, pelo não-dito. Nisso, sua linguagem se aparenta à de um amigo a quem dedica o livro: o poeta mineiro Francisco Alvim. Falamos sobre um dos poemas de Alvim de que este repórter mais é devoto: o radical Mas, que contém um único verso — “é limpinha”. A professora Vilma faz questão de situar o verso naqueles usuais conselhos do baixo coronelato da classe média, quando trata de recomendar uma empregada doméstica: “Ela é negra, mas é limpinha”.

O preconceito racial — e em Vilma o estigma é tratado como enigma, por falar pelo interdito — é território que ela relaciona ao jogo de poder ainda colonialista no Brasil do século 21. Como em seu conto “Acervo”, do livro Trouxa Frouxa, em que certo senador maranhense ensina como tratar com presos políticos. O relato finaliza com sentença tirada de antiga legislação do Brasil-Colônia: “Que a prata, a seda e o pão não sejam tocados pelos negros”. Ou como numa narrativa deste Vento Sul, a melancólica Linhas e trilhos, sobre uma memória de um romance em um trem de subúrbio carioca entre uma professora branca e um negro “azul de tão retinto”, que a ensina com galanteria como descer do vagão às seis da tarde.

Vilma Arêas cruza o jogo sadomasoquista dos escravocratas colonialistas à tradicional cultura “cordial” brasileira, que trata na manha e na maciota o preconceito racial, transformado em preconceito sexual, de classe, econômico — e político. “Lembro quando a empregada doméstica ganhou o domingo, não faz muito tempo, foi nos anos 60. Uma vez escutei a amiga da minha mãe se referindo à empregada: ‘Ela está no quarto dela, me vê trabalhando, e não vem ajudar! Essa gente não tem amizade’. Que tal? Vou colocar isso num conto. Fora que os caras passavam a empregada na cara, né, coisa normal…” Vilma Arêas não esquece.

Ela tem terror de esquecer. “Alzheimer é meu pavor. E tudo conspira a favor do esquecimento. A civilização hoje é contra a memória. As máquinas estão tomando lugar, as pessoas confiam tudo ao Google”, critica a elétrica senhora — que ainda escreve suas histórias na máquina de escrever, para depois revisá-las no computador. Se não se olvida de velhos traumas, Vilma Arêas também é fiel depositária de antigas tradições — que incluem a ética. Daí seu texto apontar para outra escrita tão seca esteticamente quanto reta na moral: Graciliano Ramos.

“Um homem como não se faz mais hoje. Vou lhe contar uma história. Está vendo esse relógio de parede? Meu pai comprou numa barbearia no interior de Minas. Arrumou, e ficou uma maravilha. Resolveu depois mandar avaliar. E descobriu que tinha pago bem menos do que o relógio valia. Sabe o que fez? Viajou de volta até a cidadezinha do barbeiro para dar o resto do valor do relógio ao cara — que quase morreu, não acreditou. Isso não existe hoje, meu pai seria considerado um idiota. Graciliano devolvia o dinheiro que não usava à prefeitura. Fora que sabia escrever seus orçamentos com classe e exatidão”, elogia Vilma.

Sua paixão é a concisão. Por isso refuta escrever romances. “Os editores me pedem um livro com enredo, grande, a sedução do melodrama, do folhetim… Mas teria de achar outro fôlego, outra maneira de respirar. Acho a concisão melhor, não embroma o leitor. Não gosto de enrolação. Eu sou uma contista”, afirma-se. Critica o culto ao romance. “Li o Philip RothO Animal Agonizante, não conhecia. Tem passagens que não são tão boas… Mas ele tem força. Só que não confunda dança com ginástica, por favor: o Roth é um ginasta. Tudo o que faz é construído para atingir o leitor, para causar efeito. Dos modernos, o Elizabeth Costello, do Coetzee, aquele sim é um grande livro, muito melhor que Desonra”, diz a escritora, que entre os contemporâneos brasileiros prefere Cadão Volpato e Nuno Ramos.

Autora de páginas como “A Paixão de Lia”, uma excruciante descrição dos últimos dias de uma pobre anciã de 90 anos, Vilma diz relevar Roth e Coeetze por tratarem de um tema que lhe é caro. O qual, para si, refuta com fúria. “Todo mundo está preocupado com a velhice. É porque nunca houve tantos velhos. Já pensou que chatura a velhice acabar, se todo mundo ficar jovem pra sempre, e não nascer mais gente? Freud dizia que as duas experiências básicas da vida, nascimento e morte, estão fora de alcance. Tenho muita curiosidade em relação à morte.”

Sobre a Danada, Vilma não duvida: se atrapalhar seu caminho, pula fora antes. “Hoje nado, faço ginástica, caminho, leio, faço tudo. Você me dá 75 anos? Mas já combinei com uma médica amiga: se entrar em um túnel sem saída, me dê uma injeção de ar, por favor. Não dói nada — e você morre. Claro! Outro café?”, convida. Claro. Quem não quer mais um café com Vilma Arêas?

[Publicado originalmente no Suplemento Pernambuco de abril de 2012. Leia também a série de correspondências que troquei com Vilma no Blog do IMS]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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