
Um índio e um alemão explicam por que comer a carne do nosso semelhante, apesar de ser o supremo tabu da civilização, não é um costume tão estranho quanto parece
1. “Cunhambebe tinha diante de si uma cesta cheia de carne humana. Naquele momento, ele estava comendo a carne de um osso, que segurou defronte ao meu nariz, enquanto perguntava se eu também queria um pedaço. Respondi: ‘Mesmo um animal irracional raramente devora os seus semelhantes, por que então um homem iria devorar os outros?’. Deu uma mordida e disse: ‘Jau ware sehe. Sou uma onça. Está gostoso’. Então deixei-o.”
2. “Decorei a mesa com velas simpáticas”, ele disse. “Usei minha melhor louça, esquentei alcatra – uma fatia da dorsal –, adicionei batatas duquesas, couve-de-bruxelas, molho de pimenta e sal. Preparado o jantar, comi. A primeira mordida foi, claro, bem estranha. Um sentimento que não sei descrever. Passei quarenta anos sonhando com isso. E agora tinha a sensação de estar atingindo uma conexão perfeita e íntima através de sua carne. Tem gosto de porco, mas mais forte.”
3. O que diferencia o alemão do primeiro parágrafo do alemão do segundo? Pouco menos de 500 anos.
O primeiro alemão é Hans Staden; o trecho aparece no capítulo 43 de A Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Ferozes Devoradores de Homens, um dos grandes romances de aventura do século 16, ao lado do Dom Quixote de Cervantes. Narrado com clareza e riqueza de detalhes, o relato de viagem de Staden é hoje considerado pela antropologia como o livro fundador da ideia do outro, que estabelece um confronto claro entre civilizações em tudo dessemelhantes. Soldado alemão a serviço dos portugueses, o cristão Staden ficou oito meses no Brasil feito escravo dos tamoios, agradecendo todos os dias ao Senhor por não ser devorado.
O diálogo em que descreve o banquete do cacique Cunhambebe foi a maior referência para Oswald de Andrade escrever seu Manifesto Antropófago, cabal peça literária da cultura brasileira. Sagaz, Oswald capturou no papo entre Staden e Cunhambebe a lógica que origina a nossa identidade de devoradores e processadores de todas as culturas – europeias, africanas, orientais, americanas. O europeu, ao questionar um hábito “selvagem” como sendo um comportamento, além de não cristão, nada humano, recebe de volta o cala-boca: mas eu não sou um homem; eu sou uma onça.
Em 1548, o Brasil é a terra em que um homem pode ser uma onça: é a terra em que a natureza (onça) e a cultura (homem) ainda são a mesma coisa; é a terra em que o índio come o europeu para ganhar a sua força e tornar-se, ele também, europeu. “Tudo é gente”, explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, formulando o perspectivismo ameríndio em Metáforas Canibais. “Tudo é índio – menos quem não é.”
Elevando o modernismo antropofágico ao grau máximo, Guimarães Rosa irá revisitar nosso mito original em “Meu tio o Iauaretê”, novela narrada por um caçador de onças que se transforma, ele mesmo, em onça, e tenta devorar o ouvinte a quem conta sua história. A forma mestiça do texto de Rosa, um monólogo que incorpora as sintaxes de várias línguas, incluindo o alemão, o latim, o iorubá e o guarani, resgata o ritual tupinambá, ao invocar na carne do outro a possibilidade de absorção de outros saberes & sabores (“está gostoso”).
4. Cunhambebe, um cacique de dois metros de altura, de fala gaga e arrastada, caiu no caô dos jesuítas portugueses, desceu a guarda e selou a Paz de Yperoig, o tratado que deu aos cavaleiros de Cristo o direito de colonizar o litoral. O chefe foi comido pelos imperialistas: “pacificados”, os tamoios tiveram roubados seu pau-brasil, seu ouro e suas terras. Sentindo-se humilhado e traído, no fim da vida Cunhambebe lançou sobre os europeus a maldição: tudo o que o invasor começasse a construir não teria fim; tudo fracassaria.
Dizem que a maldição explica o motivo por que Paraty – centro do território tupinambá – seja a segunda cidade mais violenta do Rio de Janeiro e em pleno 2017 não disponha sequer de saneamento básico.
5. Ou talvez a maldição de Cunhambebe tenha alcançado dimensão mais simbólica, conforme adverte Nick Cave na canção “Cannibal’s Hymn”: “If you’re gonna dine with the cannibals/ Sooner or later, darling, you’re gonna get eaten” (“Se você jantar com os canibais/ Cedo ou tarde, querido, você vai ser comido”). Parece que os civilizados europeus aprenderam direitinho: quinhentos anos depois de Cunhambebe, o canibal mais famoso do mundo é o alemão Arvin Meiwes, o Mestre Açougueiro, o Canibal de Rotenburg.
Engenheiros e técnicos em informática quarentões, Meiwes e Bernd Brandes se conheceram na rede em 2001, no Cannibal Cafe, fórum para fetichistas sexuais, de acordo com o livro Interview With A Cannibal, do jornalista Günter Stampf. Foi o encontro da fome com a vontade de comer, já que o fetiche de Brandes era ser comido e o de Meiwes alimentar-se de carne humana. Juntos, os fetiches realizariam a fantasia suprema: a fusão com o outro.
Meiwes e Brandes marcaram um date – e mantiveram uma câmera para deixar claro à posteridade que agiam consensualmente. Os nerds leram trechos de um livro da série Star Trek e beberam schnapps pra relaxar antes de transar. Nos preparativos da grande ceia, para mitigar sua dor e mantê-lo consciente, Meiwes deu a Brandes xarope e pílulas para dormir.
A pedido de Brandes, cortou seu pênis; como se trata de uma carne cheia de nervos, teve de ir pro fogo, temperado com sal, alho, óleo e pimenta. Ambos dividiram o antepasto mas acharam duro de roer então jogaram o peru cozido para o cão de Meiwes. Cansado, Brandes foi para uma banheira; Meiwes leu Star Trek até que o amigo apagasse.
De manhã, afinal o engenheiro Meiwes aplicaria tudo o que aprendeu na internet sobre o carneamento em humanos. Sem cabeça, sangue, pele, gordura, ossos e cartilagens, Brandes foi pro freezer, sendo consumido nos meses seguintes. Um colega do fórum canibal avisou a polícia – e Meiwes entregou nove horas de vídeo revelando a inusitada ceia.
No documentário Interview With a Cannibal, gravado na cadeia onde Meiwes ficará até morrer, ele parece um cara legal: passa aquele sentimento de pessoa realizada, demonstra a paz de quem chegou lá, sabe assim?
6. É uma expressão facial em toda diversa do Albert Spica em O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e O Amante, filme de Peter Greenway (1989). O gângster Spica, vivido pelo fantástico Michael Gambon (o Dumbledore de Harry Potter), leva o amante de sua mulher para o forno após flagrá-la com a boca na botija. Como convém a uma comédia de humor negro, o marido traído devolve a gentileza degustando raivosamente o coq au vin – embora a vingança, supõe-se, coma-se em prato frio.
O filme tem inúmeras camadas simbólicas. Uma delas, sugerida pelo próprio Greenway, atribui ao Ladrão o papel de Capital, o Amante como a Cultura e a Mulher como a própria Inglaterra. Outra camada indica a boca como um portal alquímico em que toda substância entra para se transformar em algo diverso.
7. O sonho de Bernd Brandes era ser devorado vivo para virar outra coisa. “Ele queria a experiência total”, lembra Meiwes. “Queria desaparecer completamente dentro de mim. Não queria deixar nada: nem um osso, nem um pedaço de carne. Queria manter uma conexão mental comigo. ‘Vou me tornar parte das suas células’, ele dizia. ‘Quando você me consumir vivo, vou experimentar o prazer máximo. Será o clímax de toda a minha vida.”
Um masoquista típico, que só atinge a felicidade quando experimenta uma dor excruciante? A experiência do ponto de vista de Brandes resultou no saboroso curta-metragem An Appetite for Bernard Brady, uma das centenas de obras de arte que surgiram inspiradas naquele banquete em Rotenburg.
8. A obra-prima de Greenway é um filme de cabeceira do canibal alemão, que o assistiu aos 11 anos, mesma época em que viu outro filme crucial para alimentar suas fantasias gastronômicas: Robinson Crusoe. Meiwes diz preferir Greenway à série de obras estreladas por Hannibal Lecter, a quem considera “um psicopata vulgar”. O engenheiro alemão percebe o canibalismo antes como uma cerimônia espiritual de transfusão e sobreposição de almas do que como somente uma satisfação carnal, uma tosca visita a uma praça de alimentação de shopping center – mesmo que se trate da ceia de um gênio refinado como o do psiquiatra de O Silêncio dos Inocentes.
“Gosto de imaginar que a pessoa que eu como fica comigo pra sempre”, diz ele em Interview With a Cannibal. “Canibalismo não é sobre matar ou estripar. Canibalismo é sobre estar em um relacionamento. Minha grande fantasia é procurar uma pessoa que queira ser abatida e comida. Desde criança meu desejo era encontrar um ‘irmão’ a quem eu pudesse assimilar, uma pessoa que fizesse parte de mim.”
9. Sempre me comoveu pensar nos jesuítas tentando explicar aos tupinambás o conceito cristão de comunhão, “Tomai e comei, este é o meu corpo”: imagine as carinhas confusas dos nossos antepassados… Para os bons selvagens, comer o outro não era nem símbolo nem tabu: era transmissão concreta de energia. “Só me interessa o que não é meu”, justificou Oswald de Andrade.
Ainda que o canibalismo seja tão antigo quanto a espécie humana, existe uma sutil distinção entre o canibalismo e a antropofagia: o canibal come carne humana para se alimentar, o antropófago a ingere em uma cerimônia. Onívoros e apreciadores de vários alimentos, nossos antepassados só comiam a carne dos inimigos por vingança – porque os inimigos haviam comido antes seus parentes – e também por acreditarem estar absorvendo a força dos outros.
10. O simpático Arvin Meiwes parou de comer carne e virou vegano. Mas, tal como o doutor Hannibal Lecter, de sua jaula o Canibal de Rotenburg já ajudou a polícia a solucionar crimes envolvendo canibalismo. Ele calcula existirem oitocentos antropófagos em atividade na Alemanha. Cunhambebe lamberia os beiços.
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*Reportagem publicada originalmente na revista The President
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