Lanço nesta terça-feira 8-8 meu novo romance
Sobre o que trata esse livro?, me perguntam. Eu mesmo me pergunto. É uma pergunta comum: sobre o que é um livro? Nem sempre alguma coisa é sobre outra coisa. Muitas vezes a coisa é sob a coisa. E às vezes a coisa não é sobre nada: a coisa é a coisa em si. No caso de Escalpo, a coisa é uma viagem. No começo da viagem eu achava que o livro fosse sobre violência. Afinal, as expressões, as causas e os atores da violência sempre me atraíram, desde meu primeiro livro, Os Infernos Possíveis (cujo conto de abertura, “Aos meus olhos de cão”, narra o assassinato gratuito de um cachorro).
Como eu vim obsessivamente editando este livro desde o momento em que o concluí – em 50 dias, 10 dias a menos do que a residência literária do Sesc Paraty me concedeu em 2015 – , aos poucos me distanciei dele a ponto de olhá-lo como um livro escrito por outra pessoa. Muitos momentos esse distanciamento incluiu uma certa aversão pelo narrador do romance (que não sou eu, sempre é bom lembrar). Em outros instantes o afastamento autor-narrador remeteu-se a uma espécie de intimidade ou até empatia pelo sujeito que contava a história (que são dois, Ian Montenegro e Miguel Ángel Flores).
Editar é tornar um objeto mais parecido com as intenções e condições que propiciaram o surgimento daquele objeto. Transformar uma coisa na coisa mais parecida com aquela coisa. Fazer o texto ficar mais texto. É quase o trabalho de equilibrar pedras de diferentes tamanhos em cima de uma rocha escorregadia e torcer para que a gravidade as mantenha coesas. No meu romance anterior, Mnemomáquina, eu busquei a dispersão entre as pedras, entre as peças, entre as linguagens que formam o corpo do livro, porque isso fazia parte do espírito que regia aqueles textos. Neste, busquei mais coesão e eletricidade pra não perder de vista as bússolas morais do protagonista, Ian, e de sua sombra/espelho, Miguel Ángel.
Ambos os personagens nascem da violência. Foram cuspidos para dentro do mundo, esculpidos a fórceps. Miguel Ángel foi separado de sua família e de seu país, e depois ainda sofreu por causa de um acidente. Ian perdeu o chão após um linchamento midiático, o desabamento de um caso amoroso e a perda de sua ferramenta de trabalho. Cada personagem teve de se confrontar com rupturas violentas, drásticas e às vezes definitivas.
Mas o que você faz quando é vítima?, eu tentei responder. Você pode incorporar o discurso do oprimido, do humilhado e do ofendido, e acreditar-se menor do que o mundo. Você pode trazer a violência para dentro de si, devolver a violência a quem o atacou, oferecer ao mundo mais violência. Você pode fingir que nada aconteceu e seguir tocando a vida. Você pode atrair-se pela melancolia e deprimir-se, desapaixonar-se pela vida, se tornar um sujeito apático. Você pode descobrir-se sobranceiro e superior à violência, por se sentir mais vivo ao ter sido atacado mas ainda sobreviver. Você pode refletir sobre o tapa. Você até pode perdoar o tapa. Ou você pode simplesmente fugir. São todas estratégias dignas e válidas, e não condeno quem tenha escolhido esta ou aquela.
Na jornada durante o livro eu narro várias situações dominadas ou impostas pela violência e também tempero muitas cenas com microagressões, com episódios passivo-agressivos ou com a mera sugestão de que nem mesmo a beleza está infensa à hostilidade, à vileza ou à traição – e talvez a beleza só exista enquanto beleza justamente por afrontar a condição natural do mundo: a de se deixar esculpir ou nascer da violência.
Então pude ir arrancando, também a fórceps, da violência com que a história foi exposta, a beleza de pequenos gestos – numa contemplação do instante fugaz, numa solidariedade gratuita, no desejo de autodissolução no outro e no mundo, e até mesmo em uma malandragem, em uma burla ou uma crítica cometidas em nome da liberdade. E daí fui percebendo outros elementos que nasciam de dentro da história da violência.
Um deles foi o ressentimento – o gozo masoquista na revisita à violência recebida, e como o ressentimento pode se tornar a pedra basal de uma identidade: pois revisitar a dor pode ser ao mesmo tempo louvação e delícia, mas também pode ser um modo de derrotá-la. Outro elemento foi a noção de que o pertencimento identitário – a uma nação, a um grupo, a um teto, a um relacionamento – é em si o berço de uma violência: uma violência que nos arranca do mundo e nos confina em uma bolha confortável, isolada e alienada.
Considerado um costume indígena, arrancar o escalpo foi na verdade hábito inserido na cultura americana por caçadores de cabeças – uma forma de provar que tinham matado os índios para garantir seu prêmio, afinal é mais prático transportar um couro cabeludo do que um corpo humano. Em represália aos caçadores de cabeças, os índios, em especial os apaches, devolveram a violência aos caras pálidas, mas agora com um status de de vitória.
Os índios apaches identificavam no couro cabeludo do inimigo branco a sua identidade morta: quando um pele vermelha escalpelava um cara pálida, deixava também seu cérebro descoberto à luz do sol. A violência contida no escalpo também trazia ao outro a noção de identidade. Aquele que escalpela é dono do escalpelado. Escalpelar-se, então, seria o modo de ganhar para si a própria identidade.
Foi o que propus a Ian e a Miguel Ángel.
A violência pode ser, paradoxalmente, justamente o ato que cria condições para o surgimento da não-violência. Assim, o que seria um livro sobre a violência foi se tornando, na faca fria da edição, uma jornada que nasce da violência na direção da não-violência.
Ou pelo menos é assim que eu vejo o livro, agora que ele está fora da minha cabeça.
Convido a todos a fazer esta viagem comigo, nesta terça-feira, 8-8, no Espaço Cult, quando, depois do bate-papo com os escritores e editores Anita Deak e Marcelo Nocelli, será lançado em São Paulo o Escalpo.
Nenhum pensamento