D’Salete preto no branco

Furando o bloqueio da desigualdade e da descriminação, o artista gráfico Marcelo D’Salete assombra o mundo dos quadrinhos com os álbuns Encruzilhada e Cumbe – e finaliza a impressionante saga Palmares, uma graphic novel de 400 páginas

Um dos álbuns de quadrinhos mais festejados dos últimos anos foi Cumbe, coletânea de ficções breves retratando a sociedade pautada pela violência no período colonial brasileiro. A narrativa ágil – quase sem texto, em um preto e branco muito classudo, estruturada em um original viés psicológico –, além de ser muito bem recebida por público e crítica no Brasil, teve calorosa recepção em Portugal, França, Itália, Alemanha e EUA.

As histórias do álbum, que tratam de perseguições a pessoas negras escravizadas em fuga, roubo de bebês e rebeliões de quilombos, são dramáticas e melancólicas, mas o traço elegante e os enquadramentos sofisticados de Marcelo D’Salete expandem as narrativas na direção do mágico e do alegórico: o autor sintetiza delicadeza e violência como poucos, alcançando um resultado extremamente emocional.

O trabalho impressiona mais quando se sabe se tratar de mero capítulo da saga do quilombo de Palmares. O quadrinista paulistano de 37 anos pretende concluir sua próxima graphic novel em 2017: terá 400 páginas, feito sem paralelo nos quadrinhos nacionais. D’Salete acaba de reeditar Encruzilhada, compêndio de histórias curtas em que percebemos que o olhar cinematográfico em retratar conflitos de classe do período colonial foi treinado em tretas idênticas na São Paulo do século 21: guardadores de carro X playboys boçais, policiais corruptos X bandidos pés de chinelo, mulheres destratadas X malandros potenciais. A diferença no olhar de D’Salete, além do óbvio talento narrativo, é a perspectiva do oprimido. Estilo original que o põe na mesma linhagem literária de Lima Barreto, João Antônio e Plínio Marcos.

D’Salete sabe muito bem do que está tratando. Nascido na região de São Mateus – extremo leste de Sâo Paulo, bairro cantado no álbum São Mateus Não É um Lugar Tão Longe Assim, de Rodrigo Campos ­– , o artista cresceu na periférica Artur Alvim. A mãe era tia de creche, o pai um eletricista que ficou 10 anos desempregado. O irmão mais velho desenhava e gostava muito de quadrinhos – chegava a andar dois quilômetros até a banca mais próxima, de onde trazia pra casa gibis do Hulk e do Homem-Aranha.

“Era aquela vida de periferia, né”, conta D’Salete, em um café em frente à estação de metrô Butantã, onde hoje mora, com a mulher a filha pequena. “No fundo de onde a gente morava tinha um matagal enorme, onde passava um cano. Regularmente as pessoas faziam excursões até o matagal para ver corpos desovados ali. Tinha muita chacina promovida pelo Esquadrão da Morte”, lembra o quadrinista, que se expressa com voz calma, vagarosa e o português correto de um professor – hoje ele ganha a vida dando aulas de artes para crianças e adolescentes na Escola de Aplicação da USP.

“Na periferia nunca pensei em ser artista, porque nunca vi um artista negro. Também nunca conheci um médico ou um dentista negros”, ressalta D’Salete, trocando em miúdos como funciona a desigualdade social.

Mesmo sem sonhar em ser artista, ele copiava o irmão – que copiava os desenhos dos gibis – e foi aprimorando a técnica. O universo do artista se expandiu quando foi estudar design gráfico na escola Carlos de Campos, no Brás, próximo ao centro de SP, e acabou acessando mangás, gibis de Frank Miller e Alan Moore e o filme Akira, de Katsuhiro Otomo. No Carlos de Campos também conheceu a street art de nomes como osgemeos, Speto e Onesto, e fez amizade com o multiartista Kiko Dinucci, seu parceiro em uma história de Encruzilhada.

“O Kiko me mostrou muita coisa legal, como Plínio Marcos, Geraldo Filme e histórias que ele pensava em transformar em curta-metragem. Comecei a desenhar HQs em cima das histórias dele, que publiquei na extinta revista Quadreca. No colégio tinha muita gente interessada em arte e quadrinhos: na hora do intervalo juntava uma galera desenhando com influência do grafite e do hip hop”, lembra D’Salete.

A música foi essencial na sua formação: além de ouvir o programa de rádio Espaço Rap, sua irmã, uma espécie de mentora para D’Salete, trabalhava na 24 de Maio e contava do movimento negro nas galerias e na cena rap da estação São Bento. “Em 1998 comecei a ler os Cadernos Negros, que foram essenciais”, diz.

Paralelo ao desenho, D’Salete trabalhou como office-boy no Sindicato dos Camelôs e no Banco Nacional. “Vivenciei várias cenas toscas de discriminação lá. Gente que me mandava usar o elevador de serviço… Em outro emprego, em uma editora pequena, da Vila Maria, em que eu desenhava oito horas por dia, cheguei cedo, fui na banca de jornal, peguei uma revista, o jornaleiro se levantou, tirou a revista da minha mão e colocou de volta. Acredita?”

Ele conta como o racismo sempre o pegou despreparado. “Quando eu era jovem, não tinha reação, pois estava tomando consciência ainda. Na fase de office-boy, em 1993, tinha uns arrastões na Sé – a molecada matava por causa de um tênis. Uma vez eu vi uma senhora branca com uma filha na minha frente: ela olhou pra trás, me viu, puxou a filha pra si e deu espaço pra que eu passasse. Eu estava bem arrumado, não passaria por um garoto de rua. Mas a senhora deve ter pensado que eu era uma ameaça pra ela. Nesse sentido, ouvir Racionais MCs foi importante para amplificar a consciência dessas agressões”, lembra.

D’Salete trata do tema da discriminação racial e da desigualdade social com franqueza,sem emocionalismo nem militância – um artista aponta as coisas como são. Quer que desenhe?

“Na ideologia há uma estrutura de discriminação em que mesmo os negros aceitam que não podem ser artistas, médicos ou empresários. O mesmo acontece quando você vê mulheres repetindo o discurso machista. Uma coisa forte da minha família era a expressão ‘clarear a raça’, para ‘afinar o sangue’, quando um negro casava com alguém mais claro. É uma ideologia que vem de cima pra baixo. No fim do século 19, o governo pensava o Brasil como um país branco no fim do século 20, daí o incentivo à imigração de europeus”, explica.

O cartunista é lúcido quando atualiza, na moderna figura do policial militar, a sombria figura do capitão do mato. “O capitão do mato mantinha a ordem: tinha de repreender negros fugidos. É uma figura ambígua. O capitão de mato é um intermediário entre dois mundos, assim como o capataz e o gerente da lavoura. Apesar de serem mestiços aliados à elite branca, há capitães de mato conscientes que ajudaram os revoltosos negros. Tem um leque enorme de histórias e personagens para contar, assim como as origens do samba, da capoeira e das expressões religiosas”, conta D’Salete, que, apesar de ter mergulhado na pesquisa do candomblé e da umbanda, não se considera religioso.

A pesquisa histórica sobre os movimentos negros não levou o artista a transformar seu trabalho em quadrinhos em mera transposição. Embora consciente da perspectiva histórica, seu norte, na ficção, são sempre a ação e o intimismo com que aborda os personagens.

“Um romance que me influenciou foi A Noite dos Cristais, do Luís Fulano de Tal, que conta a revolta dos malês em Salvador. Ali entendi como aproximar a narrativa histórica da aventura – assim como fizeram o Vagabond, do Inoue, o Lobo Solitário, do Okami, e os 300 do Frank Miller. Sempre quis pegar um tema histórico e atualizar em um formato diferente, com pouco texto.”

Estudar na ECA/USP e mestrar-se em artes plásticas, ao mesmo tempo em que trabalhava no Museu Afro-Brasil, trouxe a D’Salete a consciência de outros patamares de desiguldade – às vezes mais sutis, mas tão violentos quanto. “Uma vez eu estava na Psicologia comendo com alguns colegas. Uma garota não quis mais seu cachorro-quente e ficou olhando para os lados procurando ver se achava um moleque de rua pra dar o lanche que não havia comido. A gente não percebe a violência disso: achar que um garoto que passa a necessidade é um coadjuvante para levar nossos restos”, comenta ele, que usou o episódio em um conto de Encruzilhada.

Embora não tenha sido cotista, D’Salete nota a diferença radical que a política de ação afirmativa produziu na universidade. “O vestibular é uma forma de cercear e escolher quem entra na universidade: pobres, negros e indígenas são excluídos pelo argumento do mérito, mas na verdade isso serve para ajudar um grupo bem preciso. Formação de network é importante: muita gente tem emprego por causa dos amigos do colégio e da universidade, e assim a gente mantém o poder nas mesmas mãos – é assim que se forma uma oligarquia. Grande parte das pessoas que entram na USP mora na zona oeste. Eu e meu irmão fomos os primeiros a fazer faculdade, e em toda a USP só encontrei uma única pessoa que tinha feito o mesmo colégio que eu. Houve uma mudança grande, mas ainda pequena: há 20 anos, só 1% dos universitários eram negros – hoje, 12 anos depois das cotas, são cerca de 7% nas universidades públicas. Curioso é que não há diferença significativa entre as notas de alunos cotistas e outros – mas em alguns casos há um coeficiente maior por parte dos cotistas”, contabiliza.

A USP foi a época em que descobriu o Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, um dos raros quadrinistas a falar da periferia (então morava na zona leste), livros de roteiro para cinema, Hitchcock, realismo italiano, nouvelle vague, Antonioni e cinema africano, e a época em que percebeu a importância de narrar por imagens.

Felizmente, no meio dos quadinhos, quase sempre tomado por homens brancos, D’Salete não encontrou nenhum tipo de discriminação. Depois da Quadreca, publicou na revista Front e aproximou-se de artistas como Marcelo Kipper, Samuel Casal, André Kitagawa, Maringoni, Orlando. Em 2008, juntou as histórias publicadas em várias revistas no álbum Noite Luz (Via Lettera). Hoje reeditado pela Veneta, seu Encruzilhada saiu originalmente pela Barba Negra. Enquanto trabalhava no Museu Afro-Brasil, conheceu muitos artistas negros e encontrou o tema de seu mestrado.

Em um curso do historiador Petronio Domingues, conheceu a história de Palmares e captou elementos para uma grande saga. “Cheguei a relatos de escravizados, conflitos com a polícia, e encontrei histórias particulares, personagens menores, narrativas particulares. Nunca quis fazer uma coisa macro. Meu foco é na história pessoal. Uso muita ficção, não história documentais. Às vezes eu pego um parágrafo e crio uma história”, conta.

O estilo do artista é todo estruturado na psicologia e na ação, daí a busca de D’Salete por imagens únicas. “Se cresci copiando super-herói, a desconstrução veio com Mutarelli, Michelanxo Prado, Laerte. Nunca quis ter um desenho rebuscado. Gosto muito do preto e branco por causa do Muñoz (Billie Holiday) e do Breccia, e tentei me aprofundar nisso. A gente está tão saturado de imagens que a leitura não se aprofunda. Por isso gosto também de trabalhar com dubiedade e ambiguidade de trabalho, algo de que só as HQ é capaz. Isso eu descobri com o Peter Kuper, que nunca utiliza texto, alia um desenho simples a uma estrutura narrativa complexa. HQ é mais que um desenho bonitinho. É você criar uma ordem que instigue no leitor”, define.

Comemorando o grande momento que vivem os quadrinhos nacionais – “muito legal ver gente de todas as gerações com tal variedade de temas e estilos” – D’Salete afirma que ganhou um espaço próprio pelo foco de suas histórias. “Muitos vêm atrás de Cumbe por causa do tema: resistência negra. Acredito que os quadrinhos estejam ganhando a atenção de leitores negros por causa do meu trabalho”, diz.

Seu método não tem segredo. Vai anotando ideias, coisas que ouve na rua, cruza conceitos, falas de amigos, recortes de jornal, e escreve o roteiro; depois faz os storyboards a lápis, então esboça os personagens, para só aí finalizar com nanquim e acrílica. Palmares levará só nanquim e terá 400 páginas: o primeiro roteiro ele fez em 2006, e ainda faltam 100 páginas por serem finalizadas. São narrativas longas próximas de um romance.

Uma forma de contar influenciada pelos filmes Cidade de Deus e Amores Perros, além das Histórias das Quebradas do Mundaréu, de Plínio Marcos. “Zumbi aparece, claro, mas não é o único foco. Tem personagens que estão em mais de uma história. Tem o Domingos Jorge Velho aparece, um soldado branco que é braço-direito de Zumbi, muitas mulheres. Tento falar dos últimos 50 anos de um quilombo que durou um século. Quem gostou de Cumbe vai adorar Palmares”, promete D’Salete, pouco antes de entrar no metrô a caminho da Comic-Con.

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*originalmente publicado na Revista da Cultura de fevereiro de 2017

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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