Passageiro clandestino

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Especialista em viagens, o escritor britânico Geoff Dyer passa duas semanas a bordo do maior porta-aviões do mundo, o norte-americano George Bush

Poucos escritores contemporâneos têm trajetórias tão originais e são capazes de transitar por tantos gêneros e falar de tantos assuntos. Depois de escrever sobre música (nos perfis de Todo Aquele Jazz), fotografia (O Instante Efêmero), viagens a lugares estranhos (Ioga Para Quem Não Está Nem Aí), a fixação moderna com espiritualidade (Jeff em Veneza/ Morte em Varanasi) e duas de suas próprias obsessões, o tênis e o cineasta russo Tarkóvski (Zona), não surpreende o objeto deste novo livro do inglês Geoff Dyer: a vida em um porta-aviões norte-americano. Este é o ambiente devassado no recém-lançado Um Dia Magnífico no Mar (Companhia das Letras, 232 páginas).

Em seu inclassificável estilo, que aproxima reportagem, ensaio, registro memorialista e boas doses de ficção, Dyer passou duas semanas a bordo de um lugar em tudo oposto à sua escrita: belicista, competitivo, técnico. Alto, vive batendo a cabeça nos batentes dos corredores; seu apego à privacidade o faz ganhar um aposento privativo e a antipatia geral; suas restrições alimentares o impedem de se deliciar com as guloseimas dos grumetes; seu jeitão mordaz e irônico é recebido com desdém pelos marinheiros durões. No entanto, sua curiosidade invencível nos traz uma complexa investigação, cheia de detalhes contraditórios, sobre este microcosmo dos EUA fincado no Oriente Médio. Claro que o resultado é de morrer de rir — por pouco os milicos não atiram Dyer ao mar. É uma espécie de “Uma coisa supostamente divertida que jamais vou fazer de novo”, clássica reportagem de David Foster Wallace a bordo de um cruzeiro turístico. só que aqui a bordo de um navio militar.

“Foi uma experiência tão extrema quanto passar uma semana no festival Burning Man“, diz Geoff Dyer, em entrevista por Skype, enquanto aguardava o voo da Austrália de volta para sua casa — hoje ele mora em Los Angeles, onde é escritor residente na University of Southern California. “Foi muito bom meu retorno à terra firme — e ansiosamente antecipado, depois de duas semanas no mar. O que já motra o quanto sou fraquinho, tendo em vista que todos os demais ficam lá por sete meses”, conta Dyer.

Para quem imagina uma marinha e uma aeronática homogêneas, o cruzeiro do inglês demonstrou o contrário. É possível assistir a capitães proferirem discursos sofisticados, em que citam filósofos e historiadores. Há almirantes mulheres que combinam extrema simpatia a uma elegante autoridade. Há relatos escusos de usos de drogas, de experiências sexuais, de prisões por mau comportamento. Em tudo, um severo perfeccionismo — como a obsessão em deixar os metais brilhando e a prática, por todos a bordo, de marchas diárias em busca de mínimos objetos perdidos na pista do porta-aviões.

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Senso de dever é, de fato, estimulado às raias da religião. Um assunto ubiquamente tratado no navio, cercado por todos os lados tanto por água quanto por muçulmanos. Será que um escritor liberal e libertário como Dyer consegue imaginar um porta-aviões lotado de ateus? “Seria possível, uma vez que os EUA são um país secular; mas você tem razão, as pessoas no navio eram muito religiosas, e vejo que isso cumpre um grande papel em sua devoção ao conceito de servir”, reflete o britânico.

Estar ao lado de pessoas tão conservadoras dá algum sentido ao slogan do (então) candidato republicano à presidência, Donald Trump, ‘Make America Great Again’? “Este slogan não se sustenta quando olhado de perto, uma vez que as pessoas que falam isso não acreditam mesmo que a America já não é ‘grande’ — em contraste com a forma que nós ingleses sabemos que a ‘Grande’ Bretanha está em contínuo declínio há tempos, e a isso nos resignamos. Nos EUA é só um grito sem sentido em comícios, apelando o mais profundo significado da América ao senso comum de pessoas simplórias”, comenta, mantendo a elegância.

“Aliás, apesar de você certamente ganhar consciência em quão caro custa um porta-aviões e em como o dinheiro poderia ser melhor empregado, duvido que alguém fique mais pacifista em duas semanas a bordo”, diz Dyer, cujo entusiasmo infantil com o funcionamento dos aviões, da torre de comando e de armas supertecnológicas é genuíno ao longo do livro — talvez justamente por, na condição de inglês, se sentir um peixe fora d’água. Esse entusiasmo chegou a lhe dar vontade de se alistar no Exército? “Olha, desde que fiz oito anos, isso nunca me ocorreu”, sorri.

Viciado em viagens

As condições favoráveis fazem com que Dyer, embora preocupado em fazer entrevistas com todo tipo de militar, buscando anedotas e com seu jeito atrapalhado arrancando histórias surpreendentes, abra espaços para voos descritivos que mostram ser possível a intromissão de poesia na enérgica vida de uma caserna marinha.

“Mesmo sem visão noturna, era uma noite agradável: lua deitada, fiapos de nuvens, mar cintilante, poços de petróleo em chamas alaranjadas à distância, jatos atroando convés afora. Na escuridão, a violência das operações de voo se intensificava drasticamente. A turbina era um núcleo sólido de chama ardendo com tal ferocidade e força que parecia que o defletor de calor nas turbinas derreteria como chocolate reforçado (…) O mar era uma pradaria verde-cintilante. Lua e poço de petróleo ganharam círculos de luz branca ao redor. Lá em cima, onde antes não se via quase nada, havia uma multidão de estrelas, inimaginavelmente densas, mais luz do que céu, mais estrela do que não-estrela.”

Apesar de ser uma pessoa muito discreta — nem sequer tem página no Facebook — nos livros Geoff Dyer se mostra bastante. Até fala sobre seus hábitos no banheiro do navio… “É só escrita. Quando a coisa vai pra página impressa eu sinto que é independente de mim enquanto pessoa, de um jeito que o Facebook nunca tenta ser. Não faço nada nas redes sociais, provavelmente por preguiça e pelo desejo em não perder meu tempo olhando pra uma tela. Privacidade não é um problema para mim desde que eu não me sinta invadido, exceto naquele sentido em que o Jonathan Franzen vive reclamando: por exemplo, ser obrigado a escutar conversas pessoas — isto é, idiotas — de gente falando em lugares públicos”, critica o escritor.

Notório pelas viagens, tanto geográficas quanto existenciais, Dyer não parece ter sossegado seu apetite pela estrada. Tanto é que, aos 58 anos, topou na hora o convite do também escritor Alain de Botton para participar do programa Writers in Residence, que leva autores aos locais mais difíceis — foi de Dyer a ideia de viver a bordo de um porta-aviões. Hoje faço menos aquele tipo de viagem aos trancos e barrancos que fazia quando era mais novo, então tenho menos aventuras. A maioria das viagens agora são relatadas em livros, coisa que absolutamente amo”, diz.

Para Geoff Dyer, viajar é condição essencial para escrever. “Como um carro muito ineficiente que precisa de um monte de gasolina para andar alguns quilômetros, eu preciso de montes de experiência só para algumas páginas de escrita.”

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[Originalmente publicado na revista Airborne]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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